Consta, nos velhos anais do futebol, que um grande time do Rio de Janeiro, apesar de contar com um bom elenco de jogadores, nitidamente superior ao dos seus adversários, vinha acumulando, anos a fio, fracassos nas competições esportivas. Desenganando-se de explicações racionais para os seus insucessos, registram aqueles anais, teria, então, recorrido a pesquisar o sobrenatural, uma vez que só nele poderia estar escondida a causa inexplicável dos seus males.
A hipótese, que ganhou a imaginação de alguns dos seus aficionados, foi a de que torcedores malévolos de um time rival teriam enterrado uma caveira de burro sob uma das balizas do campo da sua agremiação. Voltar aos tempos de suas antigas glórias demandava localizar a mandinga nefasta, afinal encontrada depois de muita escavação. Conta-se que, pouco tempo depois, o clube malsinado conquistou o campeonato.
Lenda ou não, já dá para desconfiar, no caso da história brasileira, de que esteja escondida, em algum ponto entre o Oiapoque e o Chuí, a caveira de burro que impede a democracia brasileira de se afirmar como um experimento novo, desembaraçando-se do seu passado - não necessariamente rompendo com ele - a fim de arremeter inovadoramente rumo ao futuro. Com efeito, na passagem da monarquia à república, lá estava ela conspirando para que o largo movimento da opinião pública em favor do abolicionismo, com a agenda de reformas sociais e políticas de publicistas como Joaquim Nabuco e André Rebouças, se perdesse no novo regime, como certificaria a guerra contra Canudos, um vilarejo de deserdados da terra no sertão brasileiro.
Nos anos 1920, talvez os anos dourados no processo de emergência da sociedade civil brasileira, mais uma vez lá está ela, com sua presença aziaga, a fechar os caminhos. Recuperemos apenas um ano, o de 1922: é nele que se funda o Partido Comunista, de extração genuinamente operária, criado por quadros atuantes nas greves de 1917/19 em torno de reivindicações por direitos sociais e políticos; presença moderna, pois, dos interesses dos setores subalternos no sentido de ampliar o demos, a fim de se garantir nele com voz e voto.
Nesse mesmo ano, sobrevém a rebelião da juventude militar, com o inaudito do levante do Forte de Copacabana contra as forças do Estado, em nome de exigências democráticas pela verdade do voto contra a corrupção e a fraude no processo eleitoral; na esteira desse movimento, que encontra respaldo e ressonância na opinião pública, seguem-se, em 1924, a rebelião em armas do tenentismo em São Paulo, e a chamada Coluna Prestes, que, sempre em nome de ideais da sociedade civil da época e com amplo apoio dela, lutam por abrir passagem ao moderno no país.
Entre os intelectuais, o movimento do modernismo traz à cena a presença da nossa paisagem social e física, em uma ida ao povo que vai amadurecer na obra, entre tantos, de um Mario de Andrade, Tarsila, Anita Malfatti, Di Cavalcante, talvez sobretudo em Villalobos. Embora tênue, há comunicação entre esses mundos, que o decurso do tempo prometia incrementar. Astrojildo Pereira, o líder dos comunistas, frequenta os tenentes, frequentados também por intelectuais modernistas, alguns deles, poucos anos mais tarde, como Oswald de Andrade e Pagu, terão fortes ligações com os comunistas.
Além disso, em particular na música popular, surgem manifestações de intelectuais formados no convívio com o mundo popular, o exemplo mais poderoso é o de Noel Rosa, que não à toa celebrou como uma de suas musas uma operária de uma fábrica de tecidos, que, aliás, era indiferente à buzina do seu carro. De empresários, como na ação social do capitão de indústria têxtil de São Paulo, Jorge Street, provinham igualmente sinais de mudanças.
A chamada revolução de 1930 reverteu esse processo tendencialmente virtuoso para os fins de se instituir uma república democrática. Sob a inspiração do racionalismo positivista, que medrara no Rio Grande do Sul, a agenda do moderno é capturada pelo Estado, que traz para si a administração da questão social - o Ministério do Trabalho, recém-criado, é denominado o Ministério da Revolução -, dando partida a uma legislação trabalhista que, a par de institucionalizar direitos, vai impor uma rígida tutela do Estado sobre a vida sindical.
O Estado se põe à frente do projeto de modernização do país, que ingressa no modelo corporativo, então em moda em países de capitalismo retardatário, como no caso da Itália fascista, cuja Carta del Lavoro servirá de inspiração para nossa legislação sindical, e se apresenta, diante de sua sociedade, como mais moderno que ela. A República se amplia, incorporando a ela novos setores sociais, ao alto preço, porém, da perda de autonomia da sua sociedade.
Essa precedência do Estado sobre a sua sociedade - conforme a conjuntura, em graus variados -, varou décadas de vida republicana, afiançando, salvo o curto interregno dos anos 1961/1964, o predomínio dos interesses conservadores e da sua expressão política, com o que se preservou, em um país que se modernizava rapidamente, a estrutura agrária de propriedade latifundiária.
Se vale o que está escrito, essa sombria tradição teria sido interrompida com a democratização do país, em 1985, que teve na valorização da sociedade civil um dos seus conceitos-chave, e, como tal, encontrou consagração institucional na Carta de 1988, endereçada à criação de uma república democrática entre nós.
Esqueceu-se, no entanto, em meio a tantos esforços para realizar esse generoso programa, de remover a caveira de burro que, com seus sortilégios, atenta contra a nossa sorte. E eis que ressurgem, pelas mãos de um governo, cujas origens partidárias estão fincadas no terreno da sociedade civil, as velhas assombrações da república autoritária brasileira, como o nacional-estatismo, o corporativismo, o viés anti-republicano em nome de imperativos da democracia substantiva, e, pior, os ideais grão-burgueses de potência mundial. Só pode ser a caveira de burro.