domingo, 19 de setembro de 2010

Participação de Roberto Romano no seminário internacional sobre ética, SESC/SP. Velho, velho....


Roberto Romano

O tema da mesa é a ética enquanto valor fundamental. Lembro que o apelo à ética faz-se, no Brasil e no mundo, tendo em vista a justiça e os direitos humanos. Raros pensadores e movimentos sociais procuram refletir sobre a ética sem estes elementos. A ética, entre nós, evoca justiça e direito, sobretudo o direito à vida. Num instante em que a morte de todos os humanos, através dos terrorismos gêmeos do Estado e dos grupos fundamentalistas apresenta sua face hedionda, quando a vingança assume o papel da justiça, é preciso muito cuidado com a manipulação do termo e do conteúdo das doutrinas sobre a ética. No Brasil, sobremodo, há hoje um abuso da palavra ética, servindo ela como uma espécie de “Abre-te Sésamo” para resolver problemas humanos antiqüíssimos como o do mal, da corrupção, etc.

Eu sugeriria buscarmos a ética aproximadamente como Platão recomenda que se procure a justiça. Na República, o maior livro ético que já tivemos, Sócrates compara a pesquisa da justiça a uma caça. Devemos pensar que a justiça é animal astucioso que se esconde numa touceira de mato. Ela pode fugir das nossas mãos, escapar sob nossas pernas. E mesmo quando agarrada, podemos perdê-la . Sua essência é fugidia. Assim, para chegar até à justiça é preciso atenção, muito cuidado. Quando imaginamos estar com a justiça nos braços ela pode estar longe de nós. É tolo imaginar que temos o monopólio da justiça, bem como o monopólio da moral e da ética.

A imagem da caça é relevante na obra de Platão porque em outro livro estratégico para a nossa cultura, As leis, ele diz que o ensino dos jovens deve prevenir e proibir sobretudo a caça. Existe a caça aos animais, mas também existe a caça aos homens. Assim como a primeira deve ser regulamentada, a segunda deve ser vista como algo indesejável. Caçar homens é dar-lhes o estatuto de feras. Se permitimos a caçada aos homens, permitimos que os jovens pensem que se trata de feras, monstros. Se eles pensarem assim, não pode surgir nenhuma amizade entre eles. Sem amizade, não há convívio, sem isto, qualquer organismo político está quebrado a partir de seu interior. A caça ao homem pode definir a guerra e a escravidão. Numa frase com frequência mal compreendida, Platão diz no mesmo livro que uma cidade só pode ser justa, se nela as dores e alegrias do indivíduo constituem as dores e alegrias de todos. E dores e alegrias de todos definem as dores e alegrias dos indivíduos. Se numa cidade muitos riem e alguns choram, isto marca a sua injustiça. Pior é quando, como no Brasil, muitos choram e meia dúzia de ricos, os que integram o “happy few”, riem às bandeiras despregadas.

A idéia de se monopolizar o bem, jogando o mal para os nossos adversários, para os que agem e pensam diferente de nós, acompanha a idéia de monopolizar a verdade. Vejamos na cena mundial. O governo americano proclama ser dono da “civilização” e do verdadeiro, os companheiros de Bin Laden agem e falam do mesmo jeito. Volto a Platão: cautela, assim como a justiça é fugidia, e não podemos ter certeza de possuí-la totalmente, a verdade diz, ele, é invisível para nós. “Se todos pudessem enxergar a verdade, todos se maravilhariam com ela”. E não existiria mentira nem males no mundo, nem coisas feias. Não é assim que se passa. Somos imersos no tempo e no espaço, e tudo o que é absoluto nos ultrapassa. Apenas os tirânicos donos do verdadeiro, que sempre mentem, decretam possuir o bem, o belo, o verdadeiro em seus corpos e almas, de modo imediato. Estes são capazes de matar milhões para que a sua verdade, a sua noção de bem ou de belo triunfem.

Ética, justiça, verdade, são ideais que norteiam a nossa vida. Mas nunca se encarnam em indivíduos ou povos excluindo os demais. E estes mesmos valores, como Dorian Gray, ou Dr. Jekill e Mister Hide, podem assumir faces opostas.

A ética de um povo pode ser excelente, mas ela também pode ser repulsiva, horrenda. Digo imediatamente: a ética é o conjunto de hábitos, de atitudes, de pensamentos, de formas culturais de um povo, adquiridas ao longo do tempo, durante longo tempo. Uma ética não surge de repente, brotando do nada. A ética, deste modo, vai se sedimentando na memória e na inteligência das pessoas, irradiando-se em atos que são feitos sem muitos esforços de reflexão ou crítica. A ética é o que se tornou quase uma segunda natureza das pessoas, de modo que seus valores são assumidos, digamos, automáticamente ou sem crítica.

Existem atitudes éticas que classes sociais ou povos assumem de modo irrefletido, porque foram aprendidas desde a mais tenra infância. No Brasil, o trânsito é bom exemplo do que é a ética. Aqui, o ético, o correto, é passar o sinal vermelho, atropelar pedestres nas faixas a eles destinadas, andar nas estradas numa velocidade acima dos 170 km por hora, desrespeitar regras de trânsito e de estacionamento. Este modo ético de agir é automático, aprendido na propaganda, nas reuniões sociais, na escola, na família. Recentemente um ministro dos transportes, em Brasilia, estava no carro com seu filho. O automóvel ministerial, dirigido em alta velocidade pelo moço, matou um pedestre sem que nenhum socorro lhe fosse prestado. Os deputados e senadores da república prestaram solidariedade ao ministro e não à familia do morto. Ainda mais recentemente, outro ministro dos transportes estacionou seu carro sobre a calçada. Foi multado pelo policial competente. E o policial foi punido, porque o ministro dos transportes julgou ser uma pessoa excepcional, pois era ministro. Se qualquer um disser a estes ministros, a estes politicos, aos donos de veículos brasileiros, que este comportamento é o de assassinos, eles ficarão chocados, pois se imaginam honestíssimos. Mas a ONU não aceita dados de acidentes de trânsito no Brasil, pois ela os julga assassinatos. No trânsito brasileiro mata-se mais do que em muitas guerras. E a morte continua sendo distribuída. A propaganda, criminosamente, incentiva isto, com explícitos incentivos ao excesso de velocidade. Como naquele out door da Audi: “se voce enxergar este logotipo, passe para a direita”. Esta é uma ética assassina, que nada deve às mafias do mundo. E ela é praticada por pessoas que julgam-se boas e verdadeiras, pessoas que apóiam a pena de morte para os bandidos. Sendo elas mesmas bandidas.

Para escapar de uma ética assim, apenas a edução pública para o convívio, para o respeito aos outros, apenas uma educação coletiva para o exercício do pensamento, seria uma via de solução. É apenas quando indivíduos e coletividades pensam e julgam, criticam seus próprios costumes, que temos esperanças de modificação em comportamentos assim adquiridos, tornados automáticos. A ética, não raro, precisa de choques do pensamento e da moral para se modificar. Na Alemanha nazista, nas concentrações soviéticas de massas, não nos iludamos, era a ética que desfilava nas ruas pedindo o massacre dos diferentes, dos supostos “inferiores”.

Para quebrar o monobloco das péssimas certezas éticas, é preciso educação do pensamento e da sensibilidade. Mas é preciso sobretudo que nos entendamos, todos nós, indivíduos e povos, enquanto mistos de bondade e de violência, de anseio pelo verdadeiro e de mentira, seres duplos, todos nós. Seneca, desejando exorcizar a ira, uma loucura breve, recomenda que, ao estarmos irados, olhemos para um espelho. O nosso rosto, nesta condição, mostra-se feio, retorcido, os olhos inchados de sangue e ejetados, num horror mais do que bestial. Com este reflexo horrendo, nos acalmamos e retomamos o pensamento, a reflexão.



Gostaria de recordar com os presentes a palavra de Pascal, um grande pensador, sobre o ser humano. “Que estranha quimera é o homem”, diz Pascal, “ ele é uma novidade, um caos, um tema de contradição, um prodígio, é juiz de todas as coisas e imbecil, verme da terra e depositário do verdadeiro, cloaca de incertezas e de erros, glória e vergonha do universo”. (Blaise Pascal, Pensamentos).

Os relatos trazidos sobre os campos de concentração, as guerras do século 20, as violências cometidas por homens que se julgam “honestos”, todos estes matizes tremendos integram a ética e exibem os traços do ser humano que abarca o infinitamente grande, mas que pode cair em nauseante baixeza. É verdadeira a constatação de Pascal de que um lado do homem não destrói o outro: somos belos e horrendos, inteligentes e imbecis, juizes e réus, ordenados e caóticos. O problema do mal tem sido visto, não raro, de modo abstrato. No desejo de pacificar a angústia de nossa essência monstruosa, filósofos e teólogos (e hoje os psicólogos....) elaboraram teses sobre o fundamento “bom” ou “ruim” dos entes humanos. Rousseau de um lado, Hobbes de outro, percebem a nossa raça constituída de perversões de um fundamento original. Como o deus Glauco, diz Rousseau, belíssima estátua jogada no mar e coberta de sujeira, parecemos horrendos mas somos bons e belos. Basta adestrar a nossa vontade e pensamento na trilha dos valores, para que apareça o deus sublime escondido em nós. Não se atinge entretanto este alvo sem reprimir os rebeldes que insistem em desobedecer o bom conselho. “Nós vamos obrigar o homem a ser livre!”. Somos lobos vorazes, diz Hobbes, e não deixamos a ferocidade apenas porque nos submetemos às leis do contrato e do soberano. Se aceitamos não matar o corpo dos nossos iguais, continuamos, pela nossa lingua afiada, matando as suas almas. Nos salões festivos, aconselha Hobbes, é elogiável o sujeito que escolhe sair por último, porque os que permanecem estraçalham, com alegre crueldade, as vidas dos que se despedem primeiro. (De cive).

A suposta natureza, boa ou maléfica, que os teóricos atribuem ao homem, liga-se às propostas políticas para seu controle. Quando se enuncia a perversidade radical dos humanos, a dura repressão é quase sempre o remédio receitado. Quanto pior o juízo sobre a perversidade, mais violento deve ser o regime ideal. Donoso Cortés, escritor do século 19 que inspirou as piores ditaduras em nosso continente, como a brasileira na era Vargas e a chilena de Pinochet nos anos setenta do século 20 (ele também foi um patrono de Carl Schmitt, o jurista do nazismo), afirmava que sem Deus “el reptil que piso con mis piés, seria à mis ojos menos despreciable que el hombre”. É com esta doutrina que dá conta apenas de um lado humano, Cortés recomendou a ditadura como único meio de controlar os tempos modernos.

É certo que o homem é bicho. Mas mesmo os bichos são capazes de razão, como ensina Plutarco, a maior fonte do humanismo no Ocidente. Portadores de bem e de mal, qualquer um de nós, sob o impulso do medo e das outras paixões, pode matar como se isto aliviasse o fardo da consciência, do pensamento. “Por que te preocupas com o cisco no olho do teu irmão? Cuidado com a trave que está no teu olho!”. A frase, diz-se, é de um Deus/homem. Ela desmonta a hipocrisia dos “normais” que julgam, prendem, arrebentam as “ feras”, os “monstros” que, por definição, só podem ser “os outros”. A misericórdia some quando mandam os “bons” . Mas cada um de nós pode ser jogado, segundo as circunstâncias de um país onde não existe proteção governamental aos direitos individuais e coletivos, na condição de “fera”, de “monstro”. Os linchamentos que ocorrem em nossa terra, dos quais frequentemente fica provada a inocência dos linchados, é prova de nossa incapacidade de reflexão, no plano do pensamento, e de misericórdia, no plano da sensibilidade. Vivemos sempre o inferno, sem esperança de melhoria.

“A invenção do inferno é a maior das monstruosidades. É difícil compreender que se possa esperar algo bom dos homens, após esta invenção. Não seriam eles forçados a sempre inventar novos infernos?” (Elias Canetti). Tais indagações foram enunciadas pelo filósofo que recebeu o premio Nobel como tributo à sua obra literária e humanística, são respondidas diabolicamente pelos seres que se imaginam “racionais”.

Vivemos cada átimo como se fosse dia do Juízo. Na loucura que nos move, pretendemos possuir o direito de sacrificar bichos e pessoas na mesma cerimônia mortal que denominamos “justiça”. Ainda, como na Idade Média ou na Grécia arcaica, matamos seres animados para aplacar deuses sedentos de sangue. Tudo, na vida contemporânea, requer ainda as advertências de Empédocles de Agrigento, filósofo pré-socrático que influiu, com seus lamentos, no pensamento contrário à cegueira assassina dos homens. Diz Empédocles que na vingança universal “o pai ergue o seu próprio filho querido, a sua forma mudada, e, rezando, mata-o, louco insensato; e as pessoas ficam confusas quando sacrificam a vitima que implora (...) Não cessareis a carnificina odiosa? Não vedes em que loucuras descuidadas vos estais a consumir uns aos outros?”. Ainda hoje a maneira de entender a justiça possui apenas a vingança como nome. O ato vingador exige a reparação exata, plena, mas louca. Nele, a morte requer morte. Apenas o nada resulta desta equação fria.

Pensemos na situação da mulher. Milhares de anos de pensamento masculizante definem o feminino como um ser inferior, monstruoso. De Aristóteles até Hegel, as mulheres são postas como incompletas e devem, por isto, ser controladas pelos entes masculinos, os perfeitos. As metáforas empregadas pelos filósofos dizem muito sobre o valor de seus sistemas. Hegel, referindo-se à diferença entre homem e mulher diz que a última assemelha-se ao vegetal, enquanto o primeiro se parece mais ao animal. Ou seja: as mulheres deitam raízes no lar, e são marcadas pela sensibilidade. Enquanto isto, a vida pública é o lugar do ser masculino, e seu apanágio seria o pensamento. As mulheres, afiança Hegel, são até capazes de cultura, mas nunca atingem o conceito, a totalidade da experiência social e política. Logo, elas devem estar fora da vida política e do Estado.

Uma fonte do pensamento masculinizante na cultura “cristã e ocidental” é Frei Antonio de Fuentelapeña. Num livro genocida, que até hoje é editado na Europa, El ente dilucidado. Tratado de Monstruos y Fantasmas (1676) diz o religioso: "a mulher não atinge a perfeição de seu gerador, o homem. Logo, ela é monstro em certo sentido". E termina: "o sexo masculino é mais perfeito (...) Há mais verdade do que imagina no dito de alguns, de que na Ressurreição, toda a humanidade ressurgirá enquanto masculina".

A mulher, suposta fonte de pecado, seria monstruosa e produziria monstros. O convívio com o sexo feminino, sobretudo se desprovido de moderação, produziria seres perversos. Na grande época do humanismo, a Renascença, por volta de 1582, A. Paré escreveu o famoso Dos monstros e dos prodígios, cuja autoridade espalhou-se pela Europa. Paré afirma que a imaginação da mulher mimetiza horrores, pois ao ver figuras disformes ela causa seres distorcidos. A mulher não gera, mas gere o embrião. Este é apenas um bem que pertence ao homem, o único gerador da vida.

É imensa a fieira dos filósofos, teólogos, médicos, psicólogos, juristas, que produziram a imagem da mulher como um ser perigoso pela sua monstruosidade. Este fio percorre a história do pensamento ocidental até os nossos tempos. Hans Mayer, crítico literário de agora, escreveu páginas lancinantes sobre este ponto. Seu livro, Os marginalizados, trata da mulher, do judeu e do homosexual no mundo de hoje e do pretérito. Ele ajuda a entender o horror sagrado que reduz as mulheres, especialmente se acusadas de crime, em vítimas expiatórias, que recolhem todo o ódio dos “santos” , os donos da vida social. Num ensaio sobre o tema, A mulher e a desrazão ocidental, incluído em meu livro Lux in Tenebris, trato com vagar este prisma odioso da filosofia.

Na filosofia de Aristóteles, retomada por Santo Tomás de Aquino e seus pares, a matriz da mulher não lhe pertence, mas ao homem. É nele que residiria o poder gerador. A mulher forneceria apenas o receptáculo onde cresce o feto. A fonte vital seria masculina. Assim, quando a mulher atenta contra o embrião ou mata os rebentos, cometeria, segundo os donos do espaço político e social, sempre homens, um crime contra a vida e, ao mesmo tempo, desafia o controle do macho sobre o seu útero. Tratar-se-ia de um crime duplo, sobretudo o de lesa propriedade. A mulher, imperfeita e monstruosa, caso atente contra a marca do homem e o seu direito de vida e de morte, merece o suplício infernal.

As idéias sobre o direito da mulher decidir sobre o seu corpo são recentes na história do pensamento. Elas têm a idade da Revolução Francesa e dos direitos humanos. Na base da consciência coletiva ainda permanece, fortíssima, a doutrina tradicional, masculinizante. Esta última é reforçada por instituições dirigidas por homens, como a Igreja Católica. Sempre que um atentado ao embrião (o aborto) ou aos filhos adquire a notoriedade pública, as mulheres que protagonizam aqueles dramas são vistas como seres monstruosos que devem pagar com sofrimentos dignos do inferno o atentado à vida e à propriedade sobre as fontes vitais, algo essencialmente masculino.

Semelhante sentimento de vingança dos machos levou às fogueiras milhares de pessoas femininas, condenadas por bruxarias. Uma das acusações principais contra aquelas mulheres seria a de manipular a semente vital. Se todo crime merece a morte, a falta da mulher que desafia uma ordem divina e os privilégios do homem merece a morte sempre adiada, cheia dos terrores do medo. A fogueira cumpriu perfeitamente tal função.


Hoje, mulheres acusadas de assassinato são conduzidas, com homens infelizes (a eles também se atribui a qualidade de seres monstruosos) para corredores da morte, onde a incerteza corroi cada instante. A morte é adiada e ressurge a cada pedido negado de clemência. O inferno é encenado com todos os ritos de um Sabá oficial. O poder político, grande ídolo implacável, é invocado com precisão matemática, como se fosse a máquina sublime da morte. Setores da população, que ainda possuem sentimentos e honra, lutam para abolir a pena de morte. Mas a grande massa, dirigida por demagogos e hipnotizada pela midia, conduz para o altar macabro um ser humano, outro ser humano, outro ser humano....

Os Estados Unidos pretendem dar lições de civilidade ao resto do mundo. Mas naquela federação, muitos Estados mantêm a pena de morte. O aspecto mais sinistro desta pena reside na repetição mecânica e automática. A cada dia, hora, instante, um ser humano é conduzido à câmara onde recebe o fim. O indivíduo, no corredor limpo e polido que leva ao sacrifício, repete na alma e no corpo os espasmo da esperança e do terror. E a cada novo dia, a imprensa traz manchetes anunciando a retomada dos trabalhos nos matadouros públicos. O sofrimento repetido hipnotiza a multidão, banalizando o horror. A pena de morte se transformou em algo banal, admitido e sancionado. Ela, nos dias de hoje, é um lugar comum, e “todo lugar comum é uma espécie de reza que funciona pelo mecanismo da repetição e de sugestão, veiculando na vida social o mesmo poder de hipnose que o das preces na vida religiosa. A pressão sociocultural impõe a repetição. A repetição excita e suscita a superstição”. (Shoshana Felman: A Loucura e o objeto literário).

Trata-se bem de superstição, no caso de tantas mulheres, ao longo dos tempos. E de vingança, sede ancestral de sangue propiciatório. Superstição, porque os defensores da pena capital não pensam a totalidade do fato criminoso. Superstição, porque eles se baseiam em preconceitos, não em ciência ou na moral prudente. No Brasil, a pena de morte contra as mulheres é efetivada em matadouros clandestinos para onde elas seguem para fazer abortos e são literalmente assassinadas sem assistência. Atingem as casas dos milhares e milhares os números de mulheres que morrem, todo ano no Brasil, deste modo. Tudo para que uma forma ética continue reinando, sem piedade nem lucidez.

Termino enunciando os traços éticos mais tristes de nossa sociedade:

No Brasil, mulheres e crianças, no seu próprio lar, são espancadas e submetidas a violências físicas covardes. Os dados estatísticos ferem a consciência moral das pessoas retas.

No Brasil, reina o costume dos ricos fazendeiros e demais exploradores rurais mandarem matar as pessoas incômodas, entre elas, líderes de sindicatos como Chico Mendes, repetindo hábitos que vêm desde a Colônia.

No Brasil, mesmo pobres pagam “justiceiros” para matar seus semelhantes, acusados de bandidagem, de estupro, ou de outras coisas, como rixas sem maior importância.

Nota-se que no Brasil a Justiça faz-se com as próprias mãos. É a lógica e a ética da vingança, sem passar pelos tribunais.

No Brasil, homossexuais, negros, índios são mortos (através do fogo dos revolveres, das facadas e até mesmo do fogo ateado em suas carnes). E isto é visto como normal, ninguém é punido por isto, salvo quando os assassinos ultrapassam os limites mesmo de uma sociedade conivente.

No Brasil, quem ocupa cargo público julga-se acima dos demais cidadãos, forma uma sociedade política separada do universo social. Políticos nacionais, com raras exceções, têm como axioma ético o famoso “é dando que se recebe” cunhado pelo falecido Roberto Cardoso Alves, mas seguido pelos vivíssimos deputados, senadores e outros.

No Brasil, o governo despreza a educação pública, do primeiro gráu às universidades. O governo é portador de todos os direitos, como sempre notamos nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, onde a regra é perderem os cidadãos em proveito dos governantes, em juízos a priori determinados pela decisão política. Decisões do Supremo, como a definida ao redor das sobretaxas e punições no caso do “apagão”, do qual o povo que sempre pagou impostos não é culpado, decisões como a do Supremo implicam um desprezo imenso pela população. Lembram-se os presentes? O juiz do Supremo responsável pela decisão, disse que se não houvesse penas, e multas, o povo não economizaria energia eletrica. Esta é a ética do chicote e do desrespeito pela cidadania. Os cidadãos, dos sindicatos ao empresários, não são culpados da imprevidência governamental, mas o juiz do Supremo julga em favor do governo, desprezando e insultando o povo. As últimas decisões do Supremo sobre a grev das universidades públicas seguem o mesmo desprezo pelos cidadãos, a mesma concordancia a priori com todos os atos do poder executivo. Esta ética é lamentável.

No Brasil, a sonegação fiscal é a regra. Poucos empresários cumprem seu dever. Grande parte deles não investe em suas empresas. O Brasil é pais onde empresas ficam pobres e seus donos aumentam o patrimônio pessoal e familiar. A justiça se cala. A sonegação brasileira acompanha a concentração da renda. Em ambas, o Brasil possui recorde mundial. Assim como recorde mundial de miséria, falta de segurança, etc.

Termino. Todos estes pontos se passam entre nós sem que as consciências governamentais e das elites, e mesmo das classes médias, se comovam. Em suma: a nossa ética imperante precisa, urgente, de um choque de moral e de pensamento. Somos um povo onde 150 milhões choram e alguns milhares riem. A julgar pela prudente e sábia filosofia de Platão, somos um povo que, se continuarmos nestes padrões éticos, é inviável. Peço perdão pelo tom cinza de minha fala. Mas tenham certeza, perto da realidade brasileira e do mundo, ela é muito, demasiado otimista. Obrigado.