quarta-feira, 4 de julho de 2012

Em tempo de pré eleição, um texto "antigo"meu, sobre a soberania popular.


            Democracia… mas quem é este senhor,  o povo ?

Muito se fala em “democracia”. Bush se refestelava com o vocábulo e o mesmo faziam seus adversários. Mas esconde-se com o uso demasiado o sentido da palavra. Existe uma doutrina ética que ressurge quando se trata de pensar a noção de “povo”. No romantismo do século 19 aquela entidade se aproxima do ser divino. Basta lembrar o famoso Le Peuple de  Michelet. Na história antiga, entretanto, a realidade designada como “os muitos” serviu como alvo de crítica para os pensadores avessos à democracia como Platão. Na ordem latina define-se o populo exturbato ex profugo, o improbante populo, o vulgus credulum, vulgus imprudens vel impudens, vulgus stolidum etc. ([1])

Quando surge o Estado-nação, as guerras de religiosas trazidas pela Reforma abriram o caminho para as revoltas camponesas alemãs e para as lutas na França passando à Inglaterra. Naqueles movimentos, para espanto do clero e da aristocracia, as massas populares aprenderam a desobedecer as ordens dos príncipes. É  conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ([2]) Muito se falou da suposta linha libertária que vem de La Boétie e chega ao anarquismo. ([3]) Pouco se analisou o escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ([4])

Devido às lutas religiosas na Guiana a corte enviou o jovem escritor aos locais para redigir um texto com sugestões políticas e jurídicas. Além de expôr a situação, ele indicou remédios amargos (segundo os beligerantes religiosos) a serem ministrados pelo governo. Dentre as propostas, uma aconselhava que os templos deveriam ser usufruídos em comum pelas duas facções, em horários diferentes. Essa medida integra outras que estabelecem o mando laico sobre as tendências sectárias.

O mais relevante no suposto rebelde do Discurso da Servidão Voluntária é a cautela frente ao povo. Seria preciso, se o alvo fosse instaurar a paz social, impedir que o populacho tivesse ilusões de poder político. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei”  (cito La Boétie) o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente  deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim, e chega finalmente à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ([5])

Arremata o magistrado: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele  acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que  pelas razões que se enuncia”.

Não estava solitário La Boétie nessa apreciação do povo, ([6]) e sua tese, possuindo antecedentes no pretérito, teve seguidores na contra-revolução que definiu o pensamento sobre o Estado. Edmund Burke,  De Maistre, Donoso Cortés, De Bonald, Hegel, Comte,  são alguns nomes que partilham a visão negativa do povo.

Em data próxima aos escritos de La Boétie, Gabriel Naudé, nas Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a ser preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Uma surprêsa desagradável é o golpe de Estado. Quando se instala a crise de legitimidade, é preciso máxima cautela, diz Naudé, contra o animal  de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ([7])

Com esse retrato do povo, os teóricos que afirmavam a soberania popular não conseguiram demasiada audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. A idéia de uma soberania popular sofreu críticas desde os seus alvores. De outro lado, os que defenderam uma personalidade jurídica popular, tomaram pleno cuidado para que o povo não tivesse a sua soberania absorvida por seus representantes, Tal é o caso de Althusius, ([8]) Segundo O. Gierke, “Já no fim do século 13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo residia na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi por consequência declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas a ele,  por natureza, cabia colocar-se como chefe (…) da essência do poder estatal, Bodin deduzia a transmissão necessariamente total e incondicionada da soberania ao príncipe; Althusius a impossibilidade de uma diminuição da soberania popular com base no contrato”. ([9]). O supremo magistrado para Althusius era o povo, o que trouxe escândalos na história subsequente.

É contra a massa daquele modo descrita que os autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocaram na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e políticas que reuniram os prismas da vida capitalista triunfante, após Henrique 8, ergueram a formidável força popular traduzida em múltiplas facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando o rei Carlos foi decapitado, no debate jurídico ao redor do tiranicidio e das formas de governo surgiu o princípio democrático da accountability.

Essa exigência segue de par com a fé pública usufruída pelo governante. John Milton expressou com clareza os dois princípios: “… Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases inscritas em letras de ouro em The Tenure of Kings and Magistrates ([10]) definem o principio essencial da nova legitimidade política. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.

Milton retoma os democratas inglêses. Seus enunciados foram repelidos pelo inimigo da democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que deveriam receber a pena de morte. O erro maior dos democratas, diz Edward, reside na afirmação de que “ o poder supremo pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu bel prazer; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ([11])Edwards era contrário à democracia, mas seus enunciados baseiam-se em documentos. Se consultarmos historiadores da vida inglêsa no período, veremos que é confirmada a autenticidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ([12])

As teses democráticas inglêsas integram o corpus doutrinário que formam Estados como a própria Inglaterra, a França, os EUA. As Luzes foram uma imensa tradução para o continente europeu do pensamento produzido na Inglaterra desde o século 16, de Francis Bacon aos democratas do século 17 ([13]) Nas obras dos iluministas, calou fundo o princípio democrático. Enuncia Diderot nas Observações sobre o Projeto de Constituição apresentado por Catarina 2 : “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis que lhes são impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos que este será o início da Constituição norte-americana : We the People…) ([14]) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele seja o nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código. Desgraça ao soberano que desprezar a lei, desgraça ao povo que suportar o desprezo em relação à lei”. ([15])

Temos retomada a tese democrática exposta por Milton na Tenure of the kings and Magistrates, o covenant que liga quem governa ao povo, o único soberano,  e a necessária responsabilização de todos os magistrados diante daquela soberania. Sempre que o administrador assume uma autoridade independente do soberano, ele dissolve o próprio Estado, esse diagnóstico de Rousseau é comum às hostes  democráticas. 

Em nosso tempo, fala-se em democracia. Mas a accountability foi transferida do povo que elege os governantes para o mercado. Uma administração pública, hoje, não presta contas ao populacho, mas à nobreza oculta nos papéis da dívida pública. Não seria tempo de mudar o nome do regime?

1)  Cf. Yavetz, Zvi : La plèbe et le prince. Foule et vie politique sous le haut-empire romain. Paris, Maspero, 1984.
2) Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude volontaire. Paris, Payot, 1976.  Há edição em português ( Ed. Brasiliense).
3) Apesar dessa interpretação defendida por Pierre Clastres e  assemelhados, a mais provável interpretação do texto é a feita por Paul Bonnefon : Estienne de la Boétie, sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Montaigne. Genève, Slatkine Reprints, 1970. Do autor, cf. Oeuvres complètes d´Estienne de la Boétie. Paris, J. Rouan & cie. 1892.
4) Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por P. Bonnefon. Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
5) La Boétie, Etinne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
6)  “É perigoso dizer ao povo que as leis não são justas (…) seria preciso dizer-lhe ao mesmo tempo que é preciso obedecer porque elas são leis, como é preciso obedecer aos superiores, não porque eles são justos, mas porque sao superiores” .  Pascal, Pensées, Paris, J. de Bonnot Ed., 1982, p. 134.

7) Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, “Institutio Arcanae” in Lazzeri, Christian e Reynié, D. : Le pouvoir de la raison d´État, Paris, PUF, 1992, p. 141.
8) Cf. O. Gierke: Natural Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48.

9)O.Gierke: Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.  pp. 81-83.
10) Um governo (Milton cita Aristóteles) “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by C.A. Patrides. Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
11) Thomas Edwards : Grangraena, Terceira Parte (1646). Edição fotostática, The Rota Ed. e Universidade de Exeter. 1977, p. 16.
12) Cf. Christopher Hill:  Intellectual Origins of the English Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965 e Christopher Hill (Ed.) The Levellers and the English Revolution. Manchester, C, Nichollls & Company, 1961. 
13) Cf. O. Lutaud: Des Révolutions d´Angleterre à la Révolution Française. Le Tyrannicide & Killing no Murder. La Haye, M. Nijhoff, 1973. Do autor cf. Les Deux Révolutions d´Angleterre. Documents politiques, sociaux, religieux. Paris, Aubier, 1978.
14) Lembrança trazida por L. Versini, nas Oeuvres de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
15) Cf. Diderot, Denis : “Observations sur l ´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux Députés pour la Confection des Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini citada,  T. III, p.507.