Democracia… mas quem é este
senhor, o povo ?
Muito
se fala em “democracia”. Bush se refestelava com o vocábulo e o mesmo faziam seus
adversários. Mas esconde-se com o uso demasiado o sentido da palavra. Existe
uma doutrina ética que ressurge quando se trata de pensar a noção de “povo”. No
romantismo do século 19 aquela entidade se aproxima do ser divino. Basta lembrar
o famoso Le Peuple de Michelet.
Na história antiga, entretanto, a realidade designada como “os muitos” serviu
como alvo de crítica para os pensadores avessos à democracia como Platão. Na
ordem latina define-se o populo exturbato ex profugo, o improbante
populo, o vulgus credulum, vulgus imprudens vel impudens, vulgus stolidum
etc. ([1])
Quando
surge o Estado-nação, as guerras de religiosas trazidas pela Reforma abriram o
caminho para as revoltas camponesas alemãs e para as lutas na França passando à
Inglaterra. Naqueles movimentos, para espanto do clero e da aristocracia, as
massas populares aprenderam a desobedecer as ordens dos príncipes. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O
Discurso da Servidão Voluntária. ([2])
Muito se falou da suposta linha libertária que vem de La Boétie e chega ao
anarquismo. ([3])
Pouco se analisou o escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur
l´Édit de janvier 1562. ([4])
Devido
às lutas religiosas na Guiana a corte enviou o jovem escritor aos locais para
redigir um texto com sugestões políticas e jurídicas. Além de expôr a situação,
ele indicou remédios amargos (segundo os beligerantes religiosos) a serem
ministrados pelo governo. Dentre as propostas, uma aconselhava que os templos
deveriam ser usufruídos em comum pelas duas facções, em horários diferentes.
Essa medida integra outras que estabelecem o mando laico sobre as tendências
sectárias.
O
mais relevante no suposto rebelde do Discurso da Servidão Voluntária é a
cautela frente ao povo. Seria preciso, se o alvo fosse instaurar a paz social,
impedir que o populacho tivesse ilusões de poder político. Nas guerras
religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do
rei” (cito La Boétie) o pior é que “o
povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende
a desobedecer voluntáriamente
deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é
o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular,
tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à
religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela
tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas
coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim, e
chega finalmente à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência,
ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias (…)
nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem
religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais
monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ([5])
Arremata
o magistrado: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece
ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como
não pode julgar, ele acredita em outrem.
Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela
seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Não
estava solitário La Boétie nessa apreciação do povo, ([6])
e sua tese, possuindo antecedentes no pretérito, teve seguidores na
contra-revolução que definiu o pensamento sobre o Estado. Edmund Burke, De Maistre, Donoso Cortés, De Bonald, Hegel,
Comte, são alguns nomes que partilham a
visão negativa do povo.
Em
data próxima aos escritos de La Boétie, Gabriel Naudé, nas Considerações Políticas sobre os
golpes de Estado (1639) fala do segredo e da desconfiança universal que
obrigam o governante a ser preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas
desagradáveis” quando a massa está inquieta. Uma surprêsa desagradável é o
golpe de Estado. Quando se instala a crise de legitimidade, é preciso máxima
cautela, diz Naudé, contra o animal de
muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem
espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores:
oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos,
sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ([7])
Com
esse retrato do povo, os teóricos que afirmavam a soberania popular não
conseguiram demasiada audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. A
idéia de uma soberania popular sofreu críticas desde os seus alvores. De outro
lado, os que defenderam uma personalidade jurídica popular, tomaram pleno
cuidado para que o povo não tivesse a sua soberania absorvida por seus
representantes, Tal é o caso de Althusius, ([8])
Segundo O. Gierke, “Já no fim do século 13 a doutrina filosófica do Estado
definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo residia na
submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi por
consequência declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas
a ele, por natureza, cabia colocar-se
como chefe (…) da essência do poder estatal, Bodin deduzia a transmissão
necessariamente total e incondicionada da soberania ao príncipe; Althusius a
impossibilidade de uma diminuição da soberania popular com base no contrato”. ([9]).
O supremo magistrado para Althusius era o povo, o que trouxe escândalos na história
subsequente.
É
contra a massa daquele modo descrita que os autores favoráveis à monarquia de
direito divino se colocaram na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e
políticas que reuniram os prismas da vida capitalista triunfante, após Henrique
8, ergueram a formidável força popular traduzida em múltiplas facções, dos
Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando o
rei Carlos foi decapitado, no debate jurídico ao redor do tiranicidio e das
formas de governo surgiu o princípio democrático da accountability.
Essa exigência segue de par com a fé pública usufruída pelo
governante. John Milton expressou com clareza os dois princípios: “… Se o rei
ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos o povo é liberto de sua
palavra”. Estas frases inscritas em letras de ouro em The Tenure of Kings and
Magistrates ([10])
definem o principio essencial da nova legitimidade política. O summus
magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Milton
retoma os democratas inglêses. Seus enunciados foram repelidos pelo inimigo da
democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que deveriam
receber a pena de morte. O erro maior dos democratas, diz Edward, reside na
afirmação de que “ o poder supremo pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é
escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano
terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os
ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo
inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras
criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu bel
prazer; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e
colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ([11])Edwards
era contrário à democracia, mas seus enunciados baseiam-se em documentos. Se
consultarmos historiadores da vida inglêsa no período, veremos que é confirmada
a autenticidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ([12])
As teses
democráticas inglêsas integram o corpus doutrinário que formam
Estados como a própria Inglaterra, a França, os EUA. As Luzes foram uma imensa
tradução para o continente europeu do pensamento produzido na Inglaterra desde
o século 16, de Francis Bacon aos democratas do século 17 ([13])
Nas obras dos iluministas, calou fundo o princípio democrático. Enuncia Diderot
nas Observações
sobre o Projeto de Constituição apresentado por Catarina 2 : “Não
existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro
legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis
que lhes são impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá
como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem
feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos
que este será o início da Constituição norte-americana : We the People…) ([14])
e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais
seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de
mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele seja o
nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe,
nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei
de nosso código. Desgraça ao soberano que desprezar a lei, desgraça ao povo que
suportar o desprezo em relação à lei”. ([15])
Temos retomada a tese democrática
exposta por Milton na Tenure of the kings and Magistrates,
o covenant
que liga quem governa ao povo, o único soberano, e a necessária responsabilização de todos
os magistrados diante daquela soberania. Sempre
que o administrador assume uma autoridade independente do soberano, ele
dissolve o próprio Estado, esse diagnóstico de Rousseau é comum às hostes democráticas.
Em
nosso tempo, fala-se em democracia. Mas a accountability foi transferida do
povo que elege os governantes para o mercado. Uma administração pública, hoje,
não presta contas ao populacho, mas à nobreza oculta nos papéis da dívida
pública. Não seria tempo de mudar o nome do regime?
1) Cf. Yavetz, Zvi : La
plèbe et le prince. Foule et vie politique sous le haut-empire romain.
Paris, Maspero, 1984.
2) Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude
volontaire. Paris, Payot, 1976.
Há edição em português ( Ed. Brasiliense).
3) Apesar dessa interpretação defendida por
Pierre Clastres e assemelhados, a mais
provável interpretação do texto é a feita por Paul Bonnefon : Estienne
de la Boétie, sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Montaigne.
Genève, Slatkine Reprints, 1970. Do autor, cf. Oeuvres complètes d´Estienne de
la Boétie. Paris, J. Rouan & cie. 1892.
4) Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les
mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por P. Bonnefon. Revue
d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie
Armand Colin, 1917.
5) La Boétie, Etinne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
6) “É
perigoso dizer ao povo que as leis não são justas (…) seria preciso dizer-lhe
ao mesmo tempo que é preciso obedecer porque elas são leis, como é preciso
obedecer aos superiores, não porque eles são justos, mas porque sao superiores”
. Pascal, Pensées, Paris, J. de Bonnot Ed.,
1982, p. 134.
7) Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni,
“Institutio Arcanae” in Lazzeri, Christian e Reynié, D. : Le pouvoir de la
raison d´État, Paris, PUF, 1992, p. 141.
8) Cf. O. Gierke: Natural Law and the theory of
society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48.
9)O.Gierke: Johannes Althusius und die Entwicklung der
naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo
storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della
sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti. pp. 81-83.
10) Um governo (Milton cita Aristóteles)
“unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by
free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by C.A. Patrides.
Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
11) Thomas Edwards : Grangraena, Terceira
Parte (1646). Edição fotostática, The Rota Ed. e Universidade de Exeter. 1977,
p. 16.
12) Cf. Christopher Hill: Intellectual Origins of the English
Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965 e Christopher Hill
(Ed.) The Levellers and the English Revolution. Manchester, C,
Nichollls & Company, 1961.
13) Cf. O. Lutaud: Des Révolutions d´Angleterre à la
Révolution Française. Le Tyrannicide & Killing no Murder. La Haye, M. Nijhoff, 1973. Do autor
cf. Les
Deux Révolutions d´Angleterre. Documents politiques, sociaux, religieux.
Paris, Aubier, 1978.
14) Lembrança trazida por L. Versini, nas Oeuvres
de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
15) Cf. Diderot, Denis : “Observations sur l
´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux Députés pour la Confection des
Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini citada, T. III, p.507.