Recuperação da Islândia é retrato de Europa dividida
País deixou os bancos quebrarem, manteve benefícios sociais e população rejeitou adesão à União Europeia
25 de maio de 2014 | 0h 14
Jamil Chade
Enviado Especial a Reykjavic - Numa ilha com 12 vulcões e
instalada sobre uma falha geológica, o maior desastre sofrido pelo país
veio dos escritórios de banqueiros sofisticados. Há cinco anos, os
bancos da Islândia acumularam uma dívida 12 vezes o tamanho do Produto
Interno Bruto (PIB) do país. Quando eles quebraram, o país derreteu.
Para superar seus problemas, o governo adotou uma política contrária a
todas as receitas conhecidas: o governo não salvou os bancos, manteve
os benefícios sociais da população, implementou um controle de capitais e
deu um calote bilionário em investidores internacionais. Mas, quando o
debate foi definir o seu futuro, a ideia que parecia óbvia, de se unir à
União Europeia (UE), foi rejeitada pela maioria da população.
Cinco anos depois da maior crise do continente desde a 2.ª Guerra
Mundial, o euro sobreviveu graças a resgates bilionários. Se o pior foi
evitado, uma das heranças foi um continente mais dividido e mais
desigual que nunca. Se o sul quase entrou em colapso, economias como as
da Alemanha, Luxemburgo, Áustria e os países escandinavos conseguiram se
manter numa situação relativamente positiva.
A disparidade foi escancarada e acabou reabrindo debates que durante
anos haviam sido aparentemente enterrados. Várias questões voltaram a
surgir: quais são as fronteiras da UE, quem deve fazer parte dela, para
que serve o bloco e, acima de tudo, qual a responsabilidade dos países
ricos dentro do bloco.
Entre as nações que fazem parte da UE, partidos que defendem a saída
do bloco ganharam força. Já as forças políticas tradicionais que sempre
apoiaram o projeto europeu hoje falam abertamente na volta das
fronteiras internas.
A ideia de que todos no continente inevitavelmente fariam parte um
dia do bloco foi também derrubada. Na Islândia, o processo de adesão foi
engavetado. Na Suíça, os grupos que defendiam um novo referendo foram
colocados na geladeira. Na Noruega, a adesão já nem mais é debatida.
Entre os governos que pedem a adesão ao bloco, as negociações estão
mortas.
Mas o que mais chama a atenção é que, mesmo dentro do bloco de países
que usam a moeda comum, governos defendem a criação de uma Europa a
"duas velocidades". De um lado, os países saneados, que crescem e querem
aprofundar a integração. De outro, aqueles que ou não têm condições de
aderir às regras ou simplesmente acreditam que não seja a melhor opção
para suas economias.
A reação, segundo diplomatas, é resultado dos erros cometidos pela UE
no passado. Documentos obtidos com exclusividade pelo Estado revelam
que a Europa sabia que a Grécia não tinha condições de aderir ao euro,
mas, politicamente, não queria deixar o país de fora. Agora, com a
crise, esses arranjos políticos foram denunciados.
Fronteiras claras. Politicamente, o euro abafou a disparidade
econômica do continente nos últimos anos. Mas, com a crise, as
fronteiras da Europa que haviam sido suprimidas pelos políticos voltaram
a ficar claras na economia real. E o mercado foi o primeiro a
denunciá-las.
De um lado, títulos de governos como o da Grécia foram classificados
por agências de rating como "lixo". França, Holanda e Reino Unido
perderam o status de AAA. A classificação máxima acabou sendo um direito
exclusivo de apenas sete países na Europa: Alemanha, Finlândia,
Luxemburgo, Suécia, Noruega, Dinamarca e Suíça. Desses, apenas três
estão na zona do euro.
Os últimos dados de crescimento também apontam para uma Europa a dois
ritmos. A Alemanha, que representa hoje 30% da produção do continente,
deve crescer 1,8% em 2014. O Reino Unido também deve ter uma expansão de
2,7% em 2014 e 2,5% em 2015. Na Islândia, a projeção é de crescimento
de quase 3%, ante 2,8% na Suécia.
Já a Espanha, Grécia e Itália teriam uma expansão de apenas 0,6%. Mesmo a França crescerá menos de 1%.
A crise também aprofundou a disparidade social entre os países
europeus. Segundo um estudo realizado por mais de cem especialistas e
reunidos pelo think-tank alemão Bertelsmann Stiftung, as diferenças
sociais dentro da Europa aumentaram durante a crise e hoje são uma
ameaça ao bloco. "A brecha social ameaça a viabilidade da UE", alertou
Aart De Geus, o diretor do Bertelsmann Stiftung.
De um lado, a Europa conta com Suécia, Noruega, Suíça, Finlândia,
Dinamarca e Alemanha. Nesses países, as contas estão relativamente em
dia, o desemprego é baixo e o sistema de bem-estar social foi mantido.
"Considerada em um momento como ‘o homem doente’ da Europa, a Alemanha é
hoje a líder entre os países que usam o euro", apontou.
Na Islândia, mesmo as famílias que sofreram com a crise foram de
certa forma resgatadas. O governo fechou um acordo para o perdão das
dívidas e os benefícios sociais não foram cortados. A estudante Solveig
Gisladettir conta que, quando o país quebrou em 2008, sua família teve
de sair da casa onde estavam.
"Foi um momento difícil. Mas hoje já voltamos a uma situação normal",
conta a islandesa, com seu computador de último modelo se preparando
para as provas na faculdade de Ciências Sociais.
Do outro lado estão Grécia, Itália, Portugal e Espanha, onde o
desemprego entre os jovens chega a passar a marca de 50% em alguns
casos. "Diante desses dados, precisamos falar em uma geração perdida
nesses países", disse De Geus.
Os dados colhidos pela pesquisa revelam uma dura realidade. Na
Espanha e na Grécia, mais de um quinto das crianças vive na pobreza.
Desde 2009, as taxas de pobreza no bloco aumentaram de 9,4% da população
para 10%. Na Europa Central, a promessa de que a adesão ao bloco
acabaria com a pobreza não se transformou em realidade. Na Romênia, 30%
da população vive ainda com menos de 4 por dia