Terça, 06 de maio de 2014
O pânico em relação a Piketty
"A autêntica novidade de O capital é a forma como joga
por terra o mais valioso dos mitos conservadores: a insistência em que
vivemos em uma meritocracia na qual se ganham grandes fortunas e estas
são merecidas". O comentário é de Paul Krugman, economista e prêmio Nobel de 2008 em artigo publicado pelo El País, 05-05-2014.
Eis o artigo.
O novo livro do economista francês Thomas Piketty, O capital no século 21,
é um prodígio de honestidade. Outros livros de economia foram sucesso
de vendas, mas, diferentemente da maioria deles, a contribuição de Piketty contém uma erudição autêntica que pode causar uma mudança na retórica. E os conservadores estão aterrorizados. Por isso, James Pethokoukis, do Instituto Americano da Empresa, adverte na National Review que o trabalho de Piketty
deve ser rebatido, porque, do contrário, “vai se propagar entre a
intelectualidade e remodelar a paisagem político-econômica na qual serão
travadas todas as futuras batalhas das ideias políticas”.
Pois bem, desejo-lhes boa sorte. Neste momento, o que realmente
surpreende no debate é que a direita parece incapaz de organizar
qualquer tipo de contra-ataque significativo às teses de Piketty. Em vez disso, a reação tem consistido exclusivamente em desqualificar; concretamente, em alegar que Piketty é um marxista e, portanto, alguém que considera que a desigualdade de ganhos e de riqueza é um assunto importante.
Em breve voltarei à questão da desqualificação. Antes, vejamos por que O capital está tendo tanta repercussão.
Piketty não é o primeiro economista a assinalar que
estamos sofrendo um aumento pronunciado da desigualdade, nem mesmo a
ressaltar o contraste entre o lento crescimento dos ganhos da maioria da
população e o espetacular aumento da renda das classes altas. É certo
que Piketty e seus companheiros acrescentaram uma boa
dose de profundidade histórica a nossos conhecimentos, e demonstraram
que, efetivamente, vivemos uma nova era dourada. Mas já faz tempo que
sabíamos disso.
Não, a autêntica novidade de O capital é a forma como joga
por terra o mais valioso dos mitos conservadores: a insistência em que
vivemos em uma meritocracia na qual se ganham grandes fortunas e estas
são merecidas.
Durante as últimas duas décadas, a resposta conservadora às
tentativas de transformar o espetacular aumento da renda das classes
altas em uma questão política teve duas linhas defensivas: em primeiro
lugar, negar que a situação dos ricos esteja realmente tão boa e a dos
pobres, tão ruim como está; e, se essa negação não convencer, afirmar
que o aumento da renda das classes altas é a justa recompensa pelos
serviços prestados. Não os chamem de “o 1%” ou “os ricos”, mas sim de
“criadores de emprego”.
Mas como se pode defender isso se os ricos obtêm grande parte de sua
renda não de seu trabalho, mas dos ativos que possuem? E o que acontece
se as grandes riquezas vêm cada vez mais da herança, e não da iniciativa
empresarial?
Piketty mostra que essas perguntas não são
improdutivas. As sociedades ocidentais anteriores à Primeira Guerra
Mundial efetivamente estavam dominadas por uma oligarquia cuja riqueza
era herdada, e seu livro argumenta de forma convincente que estamos em
pleno retorno a essa situação.
Portanto, o que um conservador precisa fazer diante do temor de que
esse diagnóstico possa ser utilizado para justificar uma maior pressão
fiscal sobre os ricos? Ele poderia tentar rebater Piketty
com argumentos reais, mas até agora não vi nenhum indício disso. Em vez
disso, como eu dizia, tudo tem consistido em desqualificar.
Suponho que isso não deveria ser surpreendente. Participei de debates
sobre a desigualdade durante mais de duas décadas e ainda não vi os
“especialistas” conservadores conseguirem questionar os números sem
tropeçar nos cordões de seus próprios sapatos intelectuais.
Porque seria possível dizer, basicamente, que os fatos não estão do
lado deles. Ao mesmo tempo, acusar de ser um extremista de esquerda
qualquer um que ponha em dúvida algum aspecto do dogma do livre mercado é
um procedimento habitual da direita desde que William F. Buckley e outros como ele tentaram impedir o ensino da teoria econômica keynesiana, não demonstrando que fosse errada, mas acusando-a de ser “coletivista”.
No entanto, foi impressionante ver os conservadores, um após outro, acusarem Piketty de marxista. Até Pethokoukis, que é mais refinado que os demais, diz que O capital
é uma obra de “marxismo brando”, algo que só tem sentido se a simples
menção da desigualdade de riqueza converte alguém em um marxista. (E
talvez eles vejam as coisas dessa forma mesmo.
Recentemente, o ex-senador americano Rick Santorum qualificou o termo “classe média” de “jargão marxista”, porque, como já sabem, nos Estados Unidos não temos classes sociais).
E a resenha do The Wall Street Journal, como era de esperar, dá o grande salto e de alguma forma consegue estabelecer uma relação entre a proposta de Piketty
de que seja aplicada um política de impostos progressivos para limitar a
concentração de riqueza – uma solução tão americana como a torta de
maçã, defendida em seu momento não só pelos economistas de vanguarda,
como também pelos políticos convencionais, até, e incluído, Teddy Roosevelt – e os males do stalinismo. Será que isso é realmente o melhor que pode fazer The Journal? A resposta, aparentemente, é sim.
Mas o fato de que seja evidente que os apologistas dos oligarcas
americanos carecem de argumentos coerentes não significa que estejam
desaparecidos politicamente. O dinheiro continua tendo voz. De fato,
graças em parte à Suprema Corte presidida por John G. Roberts,
sua voz soa mais forte que nunca. Mesmo assim, as ideias também são
importantes, já que dão forma à maneira como nos referimos à sociedade
e, em última instância, a nossos atos. E o pânico em relação a Piketty mostra que a direita ficou sem ideias.