Segunda, 05 de maio de 2014
''Os dois Franciscos.'' A última entrevista de Jacques Le Goff
Vi Jacques Le Goff
pela última vez poucos dias antes de ele morrer. Havia ido encontrá-lo
na sua casa, no quinto andar de um palácio na zona norte de Paris.
No seu escritório repleto de livros, em frente a uma escrivaninha
enterrada debaixo de uma montanha de papéis – "um dos meus defeitos é a
desordem", repetia ele frequentemente – começamos a falar de São Francisco e do Papa Bergoglio, comparando a figura do santo medieval com a do papa contemporâneo.
A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 01-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cansado, mas, como sempre, lúcido e rigoroso, Le Goff me contou como nascera o seu interesse pelo autor do Cântico das Criaturas, ao qual depois dedicou o livro San Francesco d'Assisi (Laterza).
E me explicou a sua curiosidade em relação ao novo papa, em cuja ação
via diversos elementos de continuidade com o santo.
Enquanto ouvia as suas recordações e as suas reflexões, eu não
imaginava que, uma semana depois, o historiador francês faleceria em um
hospital parisiense. O que se segue é uma parte da nossa última
conversa.
Eis a entrevista.
Como foi que o senhor se ocupou de São Francisco?
É um interesse que eu cultivo há anos, desde a primeira vez que eu vi Assis no pós-guerra. Eu era um jovem historiador atraído pela Itália, um país onde eu estivera várias vezes, até porque a família da minha mãe veio da região de Imperia.
O que o impressionou em Assis?
Acima de tudo, a topografia dos lugares. Para mim, a ligação entre a história e a geografia sempre foi essencial, e em Assis a história social e espiritual de Francisco
se expressavam geograficamente. Por um lado, a colina com a cidade que
representava a vida comercial e política da época. Depois, a solidão e o
afastamento da ermida de Cárceres, símbolo da nova forma de solidão monástica proposta pelo franciscanismo. Finalmente, a natureza que circunda a igreja de São Damião, o lugar da nova ecologia espiritual de São Francisco. Em suma, diante desses lugares, pareceu-me ver uma encarnação particularmente evidente em um movimento histórico.
Qual era a sua relação com a religião?
Eu comecei a me interessar pelo franciscanismo no momento em que eu
me afastava definitivamente da religião católica. Quando jovem, eu
recebera uma educação religiosa. Minha mãe, segundo a tradição italiana,
era muito católica e devota. Meu pai, ao invés, era um filho do "affaire Dreyfus",
portanto secular e anticlerical. Apesar de tal diferença, os meus pais
eram muito unidos, e a religião nunca foi um assunto de disputa.
A sua formação é o resultado dessas duas tradições?
Sim, embora durante a juventude tenha prevalecido a influência da
minha mãe. Depois, porém, eu me afastei progressivamente da fé. Quando
cheguei em Assis, olhei para São Francisco
com os olhos do historiador e não do crente. Interessavam-se me acima
de tudo as suas ações e as suas escolhas, mais do que ele podia
representar no plano religioso.
Para o senhor, qual é o aspecto central da figura de São Francisco?
A modernidade. Diante da nova sociedade em mutação, ele identifica
claramente o problema da riqueza e das desigualdades. Tal consciência o
levou a cuidar da pobreza. Por outro lado, se o atual papa escolheu o
seu nome pela primeira vez na história da Igreja, é precisamente por
causa de tal modernidade, em cujo rastro ele se inscreve. E se há um
elemento comum a São Francisco e ao Papa Bergoglio, é justamente a luta contra o dinheiro e a defesa dos pobres.
Duas épocas diferentes, mas uma mesma preocupação?
No século XIII, para satisfazer as necessidades da economia e, em
particular, do comércio, o uso do dinheiro tornou-se cada vez mais
importante. Essa evolução, porém, produziu alguns excessos contra os
quais São Francisco luta. Ainda hoje assistimos a uma
revisão das atitudes em relação ao dinheiro, só que não se trata mais de
uma reação a uma novidade, como no século XIII, mas sim de uma reação a
uma crise, a que abalou a economia do início do século XXI. O Papa Francisco
é o papa de crise. Provavelmente uma parte dos cardeais que o elegeram
viram nele o homem capaz de ajudar a Igreja e a sociedade a superar essa
fase do mundo capitalista.
A crítica da riqueza é acompanhada pela necessidade de novas
formas de espiritualidade, a serem contrapostas ao materialismo, filho
do dinheiro?
Certamente. No século XIII, isso é particularmente evidente. São Francisco
prega a necessidade do retorno ao Evangelho, em cujo interior
encontram-se as bases para combater os excessos da riqueza. Basta pensar
na célebre frase: "É mais fácil um camelo passar pelo olho de uma
agulha do que um rico entrar no reino dos céus". A espiritualidade
contemporânea é menos fácil de decifrar. Hoje, ao lado do fascínio do
dinheiro sempre muito forte, manifesta-se uma suspeita crescente em
relação à riqueza e às suas manifestações. Daí uma demanda de
espiritualidade, que, porém, talvez, não tem muito a ver com a
espiritualidade cristã. Em todo o caso, a modernidade do Papa Francisco, assim como a do santo de Assis,
nasce da vontade de lutar contra a materialização da sociedade, do
espírito e das religiões, retomando, ao mesmo tempo, a tradição dos
Evangelhos, para colocá-la novamente no centro da reflexão e da prática
do mundo católico.
O Evangelho das origens em oposição aos Padres da Igreja?
Em parte, é isso. Mas também é preciso ressaltar que, ao contrário de
todas as heresias que surgiram entre os séculos XII e XIII, Francisco
permaneceu dentro da Igreja, porque sentia a necessidade dos
sacramentos. Precisamente porque se trata de uma modernização que é
também um retorno às origens, nele havia uma vontade de renovação, mas
sem romper com as instituições. Assim como me parece que o pontífice
está fazendo.
Que outro aspecto da modernidade de São Francisco parece-lhe particularmente importante?
Parece-me que a temática da ecologia pode falar de forma
significativa para o nosso tempo. A ecologia implica a necessidade de
espiritualidade não necessariamente ligada a uma religião. Pode,
portanto, ser compartilhada por todos.
Quais são as características da preocupação ecológica de São Francisco?
Se olharmos para a forma como o santo de Assis se
expressa e como ele constrói o franciscanismo, notamos que ele se
distancia do maior movimento social do seu tempo, isto é, o
desenvolvimento das cidades. São Francisco contrapõe a
ele a natureza e a estrada, já que promove a pregação "a caminho". Além
disso, se há uma obra literária que podemos considerar como ecologista é
justamente o Cântico das Criaturas. A preocupação pela natureza é um traço importante da sua pregação, embora, por enquanto, parece-me que o Papa Francisco não o ressaltou particularmente. Talvez porque seja uma temática menos sentida naquele mundo da América Latina de onde ele provém.
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