segunda-feira, 11 de maio de 2009

Sobre autonomia universitária.

O texto abaixo não foi publicado em nenhum jornal ou revista. Ele surge apenas neste Blog. Quem se interessa pela autonomia acadêmica talvez tenha alguma coisa nele, para o debate. Não tenho poder político para que meus escritos sejam publicados em jornais de âmbito nacional, como reitores que se instalam nas ante-salas dos ministérios. Mas tenho um curriculum de defesa da universidade que poucos deles podem ostentar. Enfim, cada um dispõe de meios para difundir suas teses. Apenas o exame lógico e documental das mesmas pode indicar os que estão mais próximos da verdade. Quanto aos adjetivos, eles ficam na superfície da história. Como sempre.

Roberto Romano

Pressupostos da autonomia universitária


Comecemos com a distinção entre soberania e autonomia. Só o Estado exerce a primeira e garante a segunda aos grupos e indivíduos particulares. A democracia não autoriza nenhuma instituição sua, salvo o Parlamento, a operar em padrões partidários. A disputa eleitoral jamais pode ocorrer no Judiciário, no exercício dos cargos administrativos, nas redes de saúde, educação, segurança. O pressuposto é essencial naqueles setores. Nenhum juiz tem o direito de proclamar, na função, predileções políticas. Nenhum médico, sobretudo se trabalha com dinheiro e funcionários públicos, tem licença para unir trabalho e opções ideológicas. Nenhum militar pode assumir, no comando, diretivas políticas. O veto, em tais situações, vem da base republicana: o Estado recebe sustento de todos os cidadãos. Estes últimos tem o direito de esposar qualquer tese ou prática compatíveis com a lei. Mas nenhum segmento da cidadania, mesmo se majoritário, tem direito à posse absoluta da res publica.

O ponto é definido por I. Kant ao discutir o exercício racional. O uso privado da razão “deve ser feito num cargo público ou ofício confiado a cada um. Em muitos assuntos conduzidos no interesse da comunidade geral, certo mecanismo é requerido e por meio dele alguns dos membros devem conduzir a si mesmos de modo inteiramente passivo (...) quando o governo os pode guiar para certos fins, ou pelo menos impedir que eles destruam tais fins. Aqui, se pode certamente argumentar racionalmente, mas se deve obedecer. No entanto, no mesmo passo em que esta parte da máquina também considera a si mesma na qualidade de membro do todo comunitário, ou mesmo da comunidade mundial, e como consequência se dirige ao público no papel de letrado (...) ele pode com certeza argumentar, sem trazer prejuízo aos assuntos pelos quais ele, na medida em que é membro passivo, é responsável. Seria desastroso se um funcionário, no cumprimento de seu mister, a quem foi dada uma ordem por alguém superior, colocasse em questão a justeza ou utilidade daquela ordem. Ele deve obedecer. Mas como letrado ele não pode ser proibido de comentar erros no serviço do exército, ou de conduzir o seu juízo ao público” (“Resposta à pergunta: o que é a Aufklärung?”).

Quando os graduados em direito, matemática, medicina, física, filosofia, teologia, sociologia, ciência política, se dirigem ao público como funcionários do Estado (juiz, promotor, professor) ou como profissionais, eles não têm o direito de afirmar algo contrário às leis do Estado. Não lhes cabe decidir sobre as ordens a que, por concurso público ou exame de ingresso, aceitaram obedecer. Um docente não pode escrever que dar aulas, ou estudar, constituem erro e que os seus pares e estudantes podem ignorar aquelas obrigações. Ele não pode publicar textos acadêmicos que envolvam a responsabilidade coletiva de sua instituição, à revelia da mesma. O médico não pode esquecer a lei (mesmo que a considere errada ou injusta) que proíbe por enquanto o aborto no Brasil. Um jurista professor não possui o direito de recomendar o fascismo, sobretudo quando se trata de doutrina constitucional. Um reitor não tem o direito de se pronunciar em favor ou contra partidos ou candidatos a cargos políticos. Em todos esses casos, se o indivíduo ou grupos se pronunciam, o Estado neles se exprime. A sua liberdade é restrita, sem que o progresso das pesquisas e do ensino sejam prejudicadas. As mesmas pessoas podem se dirigir ao público como especialistas. Se escrevem ou falam, no entanto, não expressam o nome de suas instituições e do Estado. Professores publicam em revistas, jornais, concedem entrevistas, etc. Eles, assim, se dirigem ao público na qualidade de cidadãos, não empenham a sua instituição.

Soberania ostenta o lado objetivo do Estado, que deve garantir a todos os seus partícipes. Autonomia define a liberdade dos indivíduos e grupos, que não podem sofrer restrições ilegais. A universidade não é soberana, mas autônoma. Quando é autônoma e não se entrega, por intermédio de seus reitores, aos candidatos oficiais. Isto ocorreu, vergonhosamente (e de maneira ilegal) na última eleição para a presidência da república. Os magníficos literal e simbolicamente se agacharam diante do candidato Luis Inácio da Silva. Tivessem eles, diante de si, Conselhos conscientes de sua dignidade, já estariam postos fora dos gabinetes. Mas a cumplicidade com o crime é geral.(1)

Na França, quando o presidente da república comparece a um ato acadêmico, fica sentado na primeira fila da platéia. Um lugar de honra, mas que respeita a dignidade universitária. No Brasil, qualquer prefeito de município sem importância (e mais ainda as “autoridades”), num ato acadêmico, vão “à mesa”. O que mostra a falta absoluta de autonomia (eu diria, de vergonha) dos que os acolhem.

Os campi brasileiros, salvo as famosas e a cada instante mais raras exceções, partilham a ética tortuosa do oficialismo. Eles se acostumaram a bajular o poder reinante. Em trabalhos anteriores, mostrei que a universidade não é um poder, mas uma instituição de autoridade científica e também ética. Seus elos com o poder faz, com muita frequência, com que os seus dirigentes sejam emissários dos poderosos junto aos seus pares, que deixam, ipso facto, de serem pares e se tornam subordinados. Nada disso deixou de ser percebido por Max Weber, no triste escrito sobre a ciência e a política.

A universidade de hoje é nada autônoma, pois nela ocorre o mesmo que se passa na empresa moderna. Nesta última, tanto o operário quanto o gestor são expropriados dos meios de administração e de produção. As empresas determinam-se como burocracias e não é por acaso, adianta Weber, que a Igreja foi a primeira empresa coletiva e internacional de salvação. Há um espelhamento entre a faina produtiva e o mundo espiritual dominado pela racionalidade calculadora moderna. Assim também a universidade. Nela, professores e pesquisadores assistentes não produzem ciência de maneira imediata. Eles dependem, diz Weber, “do diretor do instituto tanto quanto, numa fábrica, um empregado depende do gerente, uma vez que o diretor do instituto acredita, com toda a sinceridade, que o instituto é ‘seu’, ali ele é o patrão. Conseqüentemente, o assistente cientista alemão leva o mais das vezes o mesmo tipo de vida precária de qualquer pessoa em posição de tipo proletário, e como o assistente na universidade norte-americana”. Exagero? No caso dos EUA, ainda hoje várias universidades que reúnem ganhadores do Nobel, recebem milhões de dólares do Estado e das empresas. Pouco se menciona que, naquelas mesmas instituições, assistentes jovens, sem a Tenure (garantia de manutenção no emprego) dão aulas e aulas, operam como verdadeiros servos dos grandes nomes e da universidade.

Essa lógica é inflexível. Mesmo que não existam muitos notáveis num campus, os grupos de pressão e de ascensão na ordem funcional operam como privilegiados coletivos. A eles são destinadas as grandes verbas de pesquisa e deles saem os representantes das universidades nas agências de financiamento, avaliação, etc. Os professores alheios aos referidos grupos são empurrados para a condição proletária nas salas de aula, nas tarefas consideradas menores e inferiores. Ao constatar a expropriação dos docentes alemães e norte-americanos de seus dias, Weber afirma com ênfase: “Internamente, tanto quanto externamente, a estrutura da universidade tradicional tornou-se ficção”.

Dessa ficção, ou mentira, são nutridas as fantasias de poder dos que mandam na universidade e dos desejam nela mandar. Mas para que existisse vida autônoma, o essencial se localizaria na igualdade dos pares, interna corporis. Quando se instala o mando acima das dignidades acadêmicas, todos os dirigidos são considerados menores, a serem tutelados. E os dirigentes são assumidos como não autônomos pelos poderes do Estado. (2)

Seria ainda tempo de retomar as defesas da universidade autônoma? Seria tempo de ler com cautela e atenção “O Conflito das Faculdades”, texto luminoso de Imanuel Kant? Tenho muitas dúvidas. Mas também guardo muitas esperanças, ainda sob a inspiração do sábio que redigiu as três críticas.

Roberto Romano

Notas

(1) Analisei, com documentos, os atos vergonhosos dos reitores que apoiaram publicamente o candidato oficial, no Dossier publicado pela Revista USP sobre Administração Universitária. Cf. Revista USP, Gestão Política na Universidade Pública, numero 78/2008. Meu artigo é intitulado “Gestão Universitária, autonomia, autoritarismo”, e vai da página 48 à página 58.

(2) Cf. Roberto Romano : “Entre as Luzes e nossos dias” in A crise da Universidade, Francisco Dória (Ed.) Ed. Revan, 1998, pp. 15-48.