quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Sobre a Concordata. Algumas considerações pessoais.

Lamentável ou apenas previsível a decisão da Câmara dos Deputados?

Desde
Brasil, Igreja contra Estado (meu doutoramento em Paris, cujo título original era Le Signe et la Doctrine, 1978) alerto esquerda e direita contra as pretensões da hierocracia. Em vão. A esquerda, assim que o livro surgiu, me atacou virulentamente, porque achava (mera ilusão) que a Igreja estava se tornando...socialista. E isto, quando João Paulo 2 subia ao trono! As medidas contra os representantes da esquerda católica eram previsíveis, mas a cegueira ideológica venceu.

A direita se contentou em me difamar, dizendo que eu era, supostamente, "ressentido com a Igreja". Não raro, "argumentos" dos dois naipes se confundiam no corte de emprego para mim, de recursos para meus alunos, nos "desconvites", resenhas insultuosas, etc. Os leitores podem notar que, na mesma ordem em que o livro era citado por autores internacionais, ele "não existia" nas listagens e citações nacionais dos setores "engajados" (nunca apreciei este galicismo horrendo). Era uma forma comum do silêncio não obsequioso que define as seitas e igrejas, quando suas excomunhões deixam de funcionar.


Enfim, no debate que antecedeu a decisão da Câmara, não me empenhei de propósito. Salvo alguns amigos, dignos do máximo respeito não vi, nos que criticavam a Concordata, lastro no passado, coerência com o que sucedeu. Aceitaram as premissas, agora queriam negar as conclusões. Em boa lógica, isto se chama sofisma. Apoiei os amigos, como disse, inclusive postando suas teses, artigos, entrevistas, no Blog. E nada mais.

Apenas para memória, cito agora, abaixo, as últimas linhas do capítulo que publiquei no livro História da Paz (Demetrio Magnoli organizador, Ed. Contexto, 2008). Ninguém, dentre os acadêmicos brasileiros, sequer leu o que escrevi. Mas o drama, com todos os seus atos, está alí descrito. This is this, and that is that. O resto é silêncio. RR

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O fato último é que os tratados de Westfália aplicam a raison d´État e permitem a libertação dos povos e indivíduos do sectarismo autoritário, corriqueiro nas antigas e atuais razões das Igrejas. Em nossos dias, apesar da tentativas sempre renovadas de retomar o mando hierocrático, as confissões cristãs, nos tratos com os poderes civis, seguem a linha diplomática do catolicismo. Este último, como os seus similares da linha ortodoxa russa e demais igrejas cujo carisma é institucional, embora não tenham mais a veleidade suprema de comandar os Estados, neles exercem poderoso encanto sobre massas imensas. Somado ao traço burocrático que dá forma à sua presença mundial, os institutos religiosos cristãos não podem ser desconsiderados pelas soberanias laicas.

O procedimento normal da Santa Sé ou das formas administrativas assemelhadas nos vários movimentos cristãos, é o de estabelecer “concordatas” com o poder secular, “acordo que assegura às duas esferas de poder e proporciona a cada um deles certa influência sobre a outra esfera —por exemplo, do poder temporal com a nomeação de certos cargos eclesiásticos, e do poder espiritual sobre as instituições educativas do Estado— com o fim de evitar choques de interêsses e obrigá-los a prestar ajuda mútua. Assim ocorre na organização ecclesiastico-temporal do império carolíngio, orientado em proporção considerável em sentido césaropapista, assim também com o Sacro Império Romano, o qual mostra traços análogos dos imperantes sob os Otons e os primeiros monarcas sálicos e em muitos países protestantes, bem cesaropapistas. Em outros termos, isto ocorre também nas regiões onde impera a Contra reforma, as concordatas, e as Bulas de circunscrição. O poder temporal coloca ao dispôr do espiritual os meios externos de coação para que ele conserve seu poderio, pelo menos para a arrecadação dos impostos eclesiásticos e de outros meios materiais de subsistência. Como compensação por este serviço, o poder espiritual costuma ofecerer ao temporal sobretudo a segurança do reconhecimento de sua legitimidade e a domestição dos governados com os seus meios religiosos”. (1)

Os enunciados de Max Weber sobre os vínculos dos poderes religiosos e laicos na modernidade, mostram particular lucidez. Ele fala, sem disfarces, de pura e simples domesticação (Domestikation) dos governados, na troca de influência dos poderes religiosos com o mundo Estatal. Embora as Igrejas, particularmente a católica, procurem fornecer figuras idealizadas de si mesmas e de seu passado, trata-se bem, nas suas políticas internacionais e diplomacia, de tentar uma ampla domesticação dos povos, mesmo após a cisão entre Igreja e Estado ocorrida em Westfália.

Domesticação o que se passa entre a Santa Sé e o governo de Mussolini, para a assinatura do Tratado de Latrão. A Igreja oferece ao poder fascista os meios de legitimidade dos quais ele carece. Em troca, a hierarquia eclesiástica espera a retomada do status quo anterior a Westfália. O papa Pio 11º expõe esta pretensão em documento autografado e dirigido ao Cardeal Pedro de Gasparri, em 1929: “Na Concordata estão um diante do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas, isto é, perfeitas, cada uma em sua ordem, ordem necessáriamente determinada pelos respectivos fins onde quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos fins, determina não menos objetivamente e necessáriamente a absoluta superioridade da Igreja”. (2 )

Domesticação, o que se passa na Concordata de Império com o governo de Hitler. Leia-se o Artigo 32 daquele documento: “Em razão das atuais circunstâncias particulares da Alemanha e em consideração das garantias criadas pelas disposições da presente Concordata, de uma legislação que salvaguarda os direitos e as liberdades da Igreja Católica no Reich e nos seus Países, a Santa Sé editará disposições excluindo para eclesiásticos e religiosos a entrada nos partidos politicos e sua atividade a respeito”. A troca por este veto à prática política dos religiosos na base eclesial? Leia-se o Artigo 5 da mesma Concordata: “No exercício de sua atividade sacerdotal, os eclesiásticos gozam da proteção do Estado, do mesmo modo que os empregados do Estado…”. (3 )

Westfália deveria ser um aviso aos dirigentes das Igrejas e dos Estados, um alerta sobre novas relações autônomas entre o mundo religioso e o civil. (4) Pelos exemplos acima, e por tantos outros que ainda surgem na ordem nacional e internacional, as advertências não foram ouvidas. Seria preciso algo pior do que a Guerra dos Trinta Anos, para que os poderes laicos assumam alguma prudência diante das formas religiosas ?

NOTAS

(1) Max Weber, “Politische und hierokratische Herrschaft”, in Wirtschaft und Gesellschaft, Grundriss der Verstehenden Soziologie. 5ª Ed. Revista (Tübingen, J.C. B. Mohr, 1972), pp. 690-691.

(2) Cf. A. F. Utz : La doctrine sociale de l ´Église à travers les siècles (Paris, Ed. Beauchesne, 1973), T. III, p. 2354. Eu sublinho (RR).

(3) Cf. G. Lewy: “Le Concordat entre l ´Allemagne et le Saint Siège”, in L´Église Catholique et l ´Allemagne Nazie (Paris, Stock Ed., 1964), pp. 61. 96.

(4) A Igreja Católica, embora afastada por todas as potências, católicas e protestantes na Paz de Westfália, fulmina o Tratado com veemência. O papa Inocêncio 10º, na Bula denuncia os seus aspectos religiosos como “nulos e vazios, inválidos, iníquos, injustos, condenados, rejeitados, absurdos, sem força ou efeito”. Cf. Henry Batteson, Zelo domus Dei,Documents of the Christian Church, pp. 306 e ss.







São Paulo, quinta-feira, 13 de agosto de 2009



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Comissão aprova acordo de Brasil e Vaticano

Texto que passou pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara trata de temas jurídicos, casamento e ensino religioso público

Igrejas cristãs tradicionais e evangélicas, grupos ateus e entidades católicas que defendem o Estado laico criticam texto do acordo

ANA FLOR
DA REPORTAGEM LOCAL

A Câmara pode aprovar nos próximos dias um acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano assinado pelo presidente Lula em novembro de 2008. Apesar do protesto de igrejas cristãs tradicionais, evangélicos, grupos ateus e até mesmo entidades católicas que defendem o Estado laico, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara aprovou ontem o texto.

O acordo segue para três comissões, mas, como corre em regime de urgência, pode ser votado no plenário imediatamente. A Folha apurou que houve acordo entre os líderes da Casa para que o texto fosse apreciado no plenário assim que passasse pela Comissão de Relações Exteriores. O texto precisa passar pelo Senado.


O documento levou mais de um ano para ser costurado. Ele trata de assuntos jurídicos e outros temas, como ensino religioso público e casamento. Segundo a CNBB, o acordo reconhece a personalidade jurídica da Igreja Católica no país.

Deputados da bancada evangélica dizem que é difícil evitar a aprovação. "A Igreja Católica tem muita força no Congresso e toda a tramitação ocorre de forma quase secreta. Estamos indignados", disse o deputado e pastor Pedro Ribeiro (PMDB-GO), da Assembleia de Deus.

Em março, o Colégio Episcopal da Igreja Metodista fez uma declaração pública pela não aprovação, por considerar que o acordo fere o artigo 19 da Constituição -que veda relações de dependência ou aliança entre a União e igrejas. Outras denominações citam o privilégio dado à Igreja Católica, já que a Constituição garante que não pode haver "distinção ou preferência entre brasileiros".

Entre os deputados contrários ao acordo, o principal argumento é a manutenção do Estado laico. "O Estado brasileiro é democrático e fomenta a liberdade religiosa, inclusive no que se refere ao direito de crer ou de não crer", disse Ivan Valente (PSOL-SP), que votou contra.

Segundo o presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior, a concordata é "um instrumento de evangelização às custas do Estado e de todos os cidadãos brasileiros". Para ele, o texto traz uma "linguagem confusa proposital", que dá impressão de que não há mudanças. Sottomaior cita o artigo sobre o casamento, que abriria espaço para que a Justiça brasileira passe a ser obrigada a aceitar sentenças de anulação matrimonial do Vaticano.

Outro artigo polêmico, levantado pelo antropólogo e professor da UFRJ Emerson Giumbelli, trata do ensino religioso público, e insinuaria maior pertinência de uma religião, a católica.

Para a Igreja Católica, o acordo organiza questões trabalhistas, como o vínculo empregatício de ministros ordenados -há casos de padres que, ao deixar o sacerdócio, buscam indenização. O mesmo ocorre com fiéis voluntários.

Em defesa do acordo, Francisco Borba Ribeiro Neto, do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, diz que o acordo "é até tímido, genérico demais".

São Paulo, quinta-feira, 13 de agosto de 2009




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Concordata pode gerar problema institucional

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É complicada, do ponto de vista institucional, a provável ratificação da Concordata entre o Brasil e o Vaticano.
Os autores da proposta enviada ao Congresso foram espertos. Redigiram-na de modo tal que, formalmente, o texto não faz muito mais do que reafirmar direitos que a Constituição e a legislação ordinária já concedem não só à Igreja Católica mas a todas as instituições religiosas. São garantias como exercício público de culto e imunidade tributária. Mas, se fosse só isso, por que a insistência de Roma em aprovar um documento que nada acrescenta?
O problema está menos no conteúdo do texto -embora existam alguns pontos delicados que veremos a seguir- e mais na oportunidade do acordo. A mera existência da Concordata (tratado internacional entre um país e o Vaticano) já macula o artigo 19 da Carta, que veda ao poder público manter relações de aliança com cultos religiosos. Aqui, a Igreja Católica se vale da condição ambígua de ser também um Estado soberano e busca relacionar-se com a União em condição de privilégio sobre as demais fés.
Se o Brasil, como asseveram nossas autoridades, não está disposto a dar ao Vaticano nada que já não conste do arcabouço legal, por que a Concordata?
Passemos aos pontos controversos. Chama a atenção o artigo 11 do texto, que trata do ensino religioso. O problema é que após o termo "ensino religioso" aparece entre vírgulas a expressão "católico e de outras confissões religiosas". Se esse aposto for interpretado como uma definição, o ensino não confessional hoje dado por alguns Estados poderá ser questionado.
Também despertam polêmica as disposições que tratam dos bens da Igreja Católica. Há quem afirme que a redação dada abre as portas para que o Estado subvencione a preservação dessas propriedades.
Outro artigo delicado é o que afirma não haver vínculo empregatício entre padres e a igreja. A jurisprudência sobre a matéria não é unânime. O problema da concordata é que ela explicita a inexistência do vínculo para padres, mas não para ministros de outras religiões.
Por fim, há que desconfiar das declarações diplomáticas da CNBB de que a Concordata não ameaça o Estado laico, que seria um "valor". Os bispos brasileiros podem pensar assim, mas a posição oficial de Roma é menos tolerante. A encíclica que trata do tema, a "Vehementer nos", baixada por Pio 10º em 1906, qualifica a separação entre Estado e igreja como "tese absolutamente falsa" e "erro perniciosíssimo". Tal carta nunca foi atualizada. Aqui não é preciso ser paranoico para pôr as barbas de molho, conselho que Lula poderia seguir.