sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Sobre a concordata. Editorial de hoje, da Folha.



São Paulo, sexta-feira, 14 de agosto de 2009



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Sem privilégios
Pelo compromisso com o pluralismo religioso e a laicidade, Congresso deveria rejeitar tratado entre Brasil e Vaticano


NA LEITURA mais complacente, é dispensável o acordo entre o Vaticano e o Brasil, aprovado ontem na Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

A grande maioria de seus 19 artigos apenas faz repetir garantias que a legislação brasileira confere às atividades religiosas.

Liberdade de culto, isenção tributária, respeito a templos e outros patrimônios religiosos estão, afinal, inscritos no ordenamento jurídico nacional. Sob esse ponto de vista, alguém poderia afirmar que daria no mesmo, para o Brasil, firmar a chamada Concordata -que equivale a um tratado internacional- ou deixar de fazê-lo.

A convalidação do acordo pelo Congresso, entretanto, não deixaria de representar um privilégio, concedido pelo Estado brasileiro a uma religião singular, em detrimento de todas as outras.

É frágil a tentativa de justificar a Concordata com o argumento de que o Vaticano possui o status das nações soberanas, com as quais o Brasil está livre para selar tratados. O Estado papal só existe para defender o catolicismo romano, religião que é o único objeto do acordo em tramitação no Legislativo brasileiro.

A Constituição veda alianças entre o poder público e confissões religiosas. Essa proibição, que traduz o princípio da laicidade do Estado, é suficiente para que os congressistas recusem a Concordata com o Vaticano.

Outros detalhes contidos no texto apenas reforçam a recomendação. É o caso da redação confusa do artigo 11, que dá margem à interpretação de que o ensino religioso nas escolas públicas -facultativo para o aluno- tem de ser obrigatoriamente confessional. O acordo também pretende resolver uma pendência -se há vínculo empregatício entre um padre e a igreja- que está na alçada do Judiciário.

Vez ou outra se invoca o princípio da laicidade do poder público de modo tão apaixonado e irrefletido que ele mais parece um dogma de fé. Embora o anticlericalismo finque suas raízes na luta histórica e tenha embalado em certa medida, na esteira do positivismo então em voga, o movimento republicano brasileiro, não foi essa a vertente que prevaleceu na tradição brasileira.

A República cultivou, desde cedo, um espírito de tolerância com a atividade religiosa, entendendo-a como manifestação de caráter estritamente privado, digna de amplo respeito. A multiplicação de denominações, notadamente neopentecostais, no final do século 20, além do avanço do agnosticismo, atesta e ao mesmo tempo reforça o compromisso do Estado brasileiro com a ampla liberdade de crenças.

É em nome desse princípio pluralista e tolerante de laicidade que o Brasil deve dispensar parcerias privilegiadas com esta ou aquela autoridade religiosa. O país já sustenta um pacto irretratável com todos os seus cidadãos: estão livres para professar a sua fé -e têm a garantia de que o Estado não será instrumento de nenhum proselitismo religioso.