terça-feira, 6 de outubro de 2009

Correio Popular de Campinas, 07/0utubro/2009

Publicada em 7/10/2009


A rapidez da mentira

Roberto Romano

Erich Auerbach diz, em determinado ponto de sua obra magna (Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973), que a vida é imenso palco no qual incontáveis cenas se desenrolam. A metáfora do teatro é antiga e gasta em nossa cultura. Dos gregos aos cristãos, todos empregam aquela imagem para mencionar o quanto somos um misto monstruoso de tragédia e ridículo. Basta recordar as Leis de Platão: “imaginemos os seres vivos como certa marionete fabricada pelos deuses; seria para seu divertimento tal fabricação, ou para um fim sério? Não podemos saber”. Os cínicos (os mais elevados defensores do rigor ético, caluniados na vida espiritual moderna) comparavam o ente humano ao ator. O poeta Horácio fala de mimus vitae e usa a figura da marionete para nos descrever. Deixando os filósofos chegamos a São Paulo, hoje revalorizado nos meios que se voltam para a teologia e o sentido da vida.

Na Primeira Carta aos Coríntios (4, 9) o fundador da Igreja ocidental diz a sua opinião: os apóstolos seriam destinados à morte para servir de espetáculo ao universo, aos anjos e aos homens (quia spectaculum facti sumus mundo, et angelis, et hominibus). Santo Agostinho proclama: “neste mundo, os filhos parecem dizem aos pais: ‘Atenção, deixem esta terra, porque também nós queremos interpretar a comédia!”. As imagens do teatro foram coletadas por E. Curtius no monumento intitulado A literatura na Idade Média Latina. Existem duas edições do livro em nossa língua, uma do Ministério da Educação e Cultura e outra, mais recente, da Editora USP. Quem se acostumou à leitura de Agostinho, sabe a prevenção que ele nutria contra o teatro, devido ao seu elo direto com o olhar, fonte de curiosa perversidade humana. Na Carta a D’Alembert sobre os Espetáculos, Rousseau guarda resquícios do veto agostiniano, para não dizer platônico, à imitação teatral, fonte da hipocrisia que modela a política, o direito, as relações conjugais, etc.

Voltemos a Erich Auerbach. A realidade é palco no qual se desenrolam cenas incontáveis e contrastantes. O propagandista, diz ele, usa apenas um holofote e ilumina figuras e atos que lhe interessam divulgar, em sentido positivo ou negativo. Assim, ele desacredita, aos olhos dos espectadores desprevenidos (mas jamais inocentes, veja-se o que dizem Agostinho e Rousseau, citados acima) quem o incomoda. Ou exalta quem o favorece. A política da rapidez é mentira eficaz (no civil ou religioso, passando pela econômico, militar, universitário, etc), a arte de manipular holofotes. Uma cena verdadeira é iluminada. Os assistentes se persuadem, aplaudem ou vaiam os artistas sob o foco. Mas, adverte Auerbach, a cena só tem sentido se conectada a todas as demais que determinam a peça. “Da verdade”, diz ele, “faz parte toda a verdade”. O truque do propagandista, do retor e demagogo, é exibir aos assistentes apenas um fragmento da verdade, ocultando a verdade maior. Esta é a fonte da suma injustiça, que leva ao louvor ou à condenação indevidas.

Para fugir do malefício é preciso jogar o foco em todas as cenas e atores. A tarefa que leva à verdade exige tempo, acuidade visual, juízo crítico. O mundo moderno, diz Auerbach, é regido pelo ritmo veloz e diminuição do espaço. Ele tem razão. O tempo destinado às notícias é a cada instante menor. Na TV e no rádio o tempo se rarefaz, o intervalo da propaganda é maior do que os átimos dedicados à reflexão e análise. Mesmo a imprensa padece do encurtamento espacial e temporal. Chegamos ao momento: para gáudio dos sofistas gregos, de Goebbels e similares, a comunicação humana é definida pelos berros emitidos nos exercícios de ordem unida militar: “Rápido, ligeiro, para não pensar, para não perder tempo ”. E são examinados com tal “método” a física, a matemática, a Santíssima Trindade, o Brasil, Honduras... rápido, ligeiro... E todas as verdades se transformam, na mágica da propaganda, em mentiras convincentes.