Cores Soturnas do Romantismo
Tornou-se moda nos meios intelectuais brasileiros o uso do termo “romântico” para designar tudo quanto escape a um saudável realismo político. Os conservadores o lançam contra os progressistas, estes contra aquele e, ambos, contra o que se convencionou designar “radicalismo”. Nos vários empregos, “Romântico” é sinônimo de inconseqüente, disparatado e inconsistente. Excêntrico. Imprecisões terminológicas, porém, não significam imprecisões políticas —transformado em slogan ou em etiqueta, o “romantismo” permanece imune ao exame histórico e conceitual rigoroso. Serve para tudo justamente porque não diz coisa alguma, E porque jamais estudado, torna-se em termos rigorosamente freudianos, um fantasma, aquilo que se repete indefinidamente por não poder ser encarado de frente. Ignorado, pode ser empregado a torto e a direito porque os adversários não precisam abandonar as seguranças do já sabido, já dito, já feito.
O livro [Conservadorismo Romântico: Origem do Totalitarismo, de Roberto Romano, Brasiliense, 172 págs. ] não é de leitura fácil nem rápida. O pequeno número de páginas torna o texto ainda mais denso, pede paciência e cautela ao leitor, desvenda campos de pensamento e de práticas cujo entrelaçamento era insuspeitado. Resenhá-lo é tarefa difícil e arriscada a perder o movimento que o constitui como texto, sobretudo porque as reflexões do autor se abrem em múltiplas direções simultâneas e articuladas (teoria do conhecimento, metafísica, teoria da história, artes, estética, política, história passada e contemporânea), cada uma das quais tratadas com verdadeira arte dos matizes, num “exercício antimaniqueísta” aberto ao debate, em lugar de fechá-lo.
Roberto Romano articula teoria do conhecimento, história das idéias, questões políticas, teoria da história, estética, ética. Ao escolher a metáfora das história solar e a “Doutrina das Cores” de Goethe, o autor nos faz acompanhar as articulações (algumas imprevisíveis) entre aquelas dimensões. Um exemplo: o tema do conhecimento vinculado ao da luz (portanto à visão, à intuição), vindo de Platão e Aristóteles, passando pelos místicos medievais, encontrando a formulação racionalista dos cartesianos e a renascentista de Bacon, alcança plena secularização com a filosofia das luzes e com Hegel, ao mesmo tempo em que restaura a sacralização das trevas com os românticos. Ora, o pressuposto fundamental dessa teoria do conhecimento, em suas múltiplas versões, é o de que o conhecimento só se realiza entre os semelhantes, de sorte que a discussão milenar sobre as relações entre sujeito e objeto, consciência e mundo, finito e infinito, interior e exterior tem como pilar dito de Plotino, retomado por Goethe: “se o olho não fosse solar, como poderia ver a luz?”.
A história da filosofia nos conta os avatares da criação das condições de semelhança (desde a verdade como aletheia e ortotés, passando pela representação e a adequatio até chegar à reflexão como auto-exposição do saber). Esse percurso, lembra Adorno, citado por Romano, consiste num movimento paradoxal de passagem da luz divina à luz racional até converter-se num fetiche para a consciência e transformar a equivalência em fetiche. Esse percurso é apresentado por Romano em algumas páginas extraordinárias onde examina a retomada crítica da metáfora ótica (na versão orgânica e na mecânica) na análise do fetiche da mercadoria, feita por Marx na abertura de “O Capital”. Porque somente o semelhante conhece o semelhante, porque a luz é choque com o fundo sombrio, Novalis nomeia a si mesmo: cristal.
O motor da história solar-racional de Hegel é o trabalho, fonte de um sofrimento libertador porque portador de autonomia através da paciência disciplinada que atravessa a exterioridade e a nega rumo à interioridade do Espírito. A história sentimental-noturna dos românticos encontra na magia sua mola propulsora, conservando a filologia de Schelling: poder=Mögen, magia= Vermögen, Vermögen =poder efetivo.
Do Oriente ao Ocidente, o progresso efetuado no, pelo e para o trabalho conduz à plena posse do corpo (natureza) pelo espírito (cultura), posse já existente para o pensamento e que resta ser conquistada pela vontade. O progresso é o homem livre da coerção natural e vivendo em relação com outros homens, passando da natureza à sociedade civil e desta ao Estado, enquanto totalidade ética superior e juridicamente fundada. Numa espécie de de escatologia, observa Romano, Hegel une história e destino: a chegada do homem disciplinado, operoso e livre numa sociedade politicamente regulada, sem conflitos e transparente para si mesma. É este o ideal totalitário.
O fio condutor do livro é a “Doutrina das Cores” de Goethe, oposta ao mecanicismo newtoniano e adotada por Hegel e pelos românticos como instrumento para a crítica do mecanicismo das Luzes. Não existindo na luz branca refratada pelo prisma, mas no choque entre luz e sombra, as cores são “síntese frágil entre dois elementos” opostos. Todavia, adotada por progressistas e conservadores, a teoria goetheana não produz os mesmos resultados. Em Hegel, a crítica do mecanicismo iluminista (a cor branca produzindo por refração as outras) vai de par com a crítica do organicismo romântico (privilégio da sombra e da sensibilidade). Isto significa, politicamente, que nem o contrato (relação mecânica entre vontades) explica a passagem da sociedade civil para o Estado, nem a lei (arbítrio vindo do coração do rei) é vontade pessoal. Do ponto de vista histórico, a história não é coleta filistina e indiferenciada de “dados”, coleção de documentos, nem sacralização do passado enquanto tradição, pois o caminho do abstrato ao concreto (concreto que, definido como síntese de determinações, vem diretamente da definição goetheana da cor) não faz do progresso acúmulo nem do crepúsculo veste que rejuvenesce o passado. O vôo do pássaro de Minerva garante que o futuro não está no passado.
Na teoria goetheana, o azul é cor limite, sempre comporta, portanto, sombra e obscuridade, produz excitação, serenidade e visões tétricas pois vem do negro.O azul foi a cor da política romântica. Novalis, seu expoente maior. Estudando as anomalias cromáticas, ou seja, aqueles que percebem uma gama mais reduzida do que os demais, Goethe as considera naturais e não excêntricas; possuem leis próprias e estão reguladas. Observa que, ao se espalhar o carmim sobre o branco, os que possuem anomalias não enxergam o rosa, mas o azul-celeste, e não percebem toda a gama do rosa ao violeta e deste ao azul, gama que a natureza produz no céu, à hora do crepúsculo. Excluindo o azul, Goethe observa que os anômalos fazem prevalecer a gama do vermelho e e do amarelo, tendendo a ver apenas marrom avermelhado, como o tom produzido pela natureza no outono. Assim, a patologia cromática é incapacitada para perceber os matizes.
Analisando poemas de Novalis, Romano assinala que neles prevalecem o azul (para o rei, situado no alto divino e sombrio) e o marrom avermelhado (para os mineiros a extrair ouro das minas). Entre os dois polos não há gama cromática nem matizes, e a policromia do cotidiano, percebida pelos homens comuns, é considerada infantil, desordenada, superficial. Azul, “linda mônada”, Novalis, “bela alma” diz Hegel.
Sem dizê -lo explicitamente, Romano indica algo insólito: encarada pelo ângulo da “Doutrina das Cores”, a política romântica é anomalia, porém regulada, natural, provida de leis. Autoritária (sem matizes) e conservadora (a origem noturna e mágica) não é excentricidade. Eis porque o livro procura alí raízes do fenômeno totalitário e também raízes do ressurgimento da idéia e das práticas comunitárias, “remédio mágico contra os conflitos da sociedade civil, prescrito pelos atuais seguidores de Schelling, Novalis, De Maistre. Será o romantismo, não como excrecência ”anacrônica” ou excentricidade, uma pista para compreendermos porque “num século fragmentado a religião readquiriu o peso que todos nela reconhecem?”.
Marilena Chaui, Folha de São Paulo, 04/04/1982