quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Palestra de Roberto Romano na Escola da Magistratura Federal, Rio de Janeiro, 05/outubro/2009

O texto abaixo foi pedido por integrantes da Escola da Magistratura, Rio de Janeiro, para o debate sobre Liberdade de Expressão.

RR

Fala sem título.

Roberto Romano

Creio ser relevante, nas considerações sobre o direito de expressão, refletir sobre a crise da liberdade comunicativa. Usarei os estudos publicados na Revista Europaea Memoria, em número coordenado por Isabelle Koch e Norbert Lenoir. O título é sugestivo : “Democracia e espaço público: qual poder para o povo?” (1) Com este nome, os editores indicam que a crise do espaço público implica a natureza do regime político. Caso ele se queira democrático, qual democracia é nele praticada ? A pergunta é similar à feita por Norberto Bobbio em situação igualmente polêmica. O grande jurista se perguntava "qual socialismo" era visado no debate europeu do século 20. Com o fim da URSS, as opções de resposta foram anuladas. Algo próximo ocorre com a democracia. Os fios dos seus dilemas se entretecem em outros e outros, e se tornam a cada instante mais enleados de aporias, perplexidades, surpresas agradáveis e outras nem tanto.

Os autores da coletânea apontam o lado polissêmico da palavra "crise" e sua ampla abrangência em todos os matizes sociais. Quase todos entram em acordo ao constatar que a crise é plural, jamais unívoca. Quem conhece os textos da Medicina Hipocrática e percebe os milênios de suas leituras e interpolações no mundo ocidental, sabe que não é possível usar o conceito de crise no singular, pois ele deve ser inserido numa dimensão temporal em vários ritmos. (2) O mais célebre aforismo da coletânea hipocrática é uma síntese da crise, do acúmulo do tempo e da intervenção humana na finitude. "Vida curta, técnica longa, o tempo oportuno voa, a experiência engana, a crise é difícil". (3) A noção de crise enlaça tempo, saberes, juízo. Todas estas relações complexas serviram para os estudos políticos e de expressão. Não existe a crise apenas em um vetor do mundo e do saber: quando as bases dos conhecimentos e práticas estremecem, todo o edifício social e anímico está prestes a se dissolver ou a se integrar em novas formas e conteúdos.

A crise das comunicações e da livre expressão pode ser reconhecida em quatro terrenos: o institucional, o das mentalidades, o dos valores e, last but not least, o da civilização. Para discutirmos esta polivalência seria preciso colocar entre parêntesis uma certeza recente de nossa cultura teórica e prática, advinda do pós-modernismo : a de que não existiria lugar sequer para a idéia de crise. Deste modo, o máximo a ser feito pelas sociedades, grupos e indivíduos, seria aceitar o que determina o mercado e a ordem imposta em seu favor, pois viveríamos o fim da história. Se os médicos hipocráticos e a filosofia ocidental tentaram vencer o tempo e atravessar crises, os nossos sábios, seguindo o padrão Fukuyama e similares mais recentes, decretam que o tempo não vigora contra a sociedade na qual a única política é a plena adesão ao universo das mercadorias. Alí o soberano, não raro, é o capital financeiro que ostenta ubiquidade e onipotência, somada à onisciente cura dos nele incluídos. Os dele expulsos ou inconformados, o inferno do atraso é sua condenação a priori.

Com frequência ouvimos arrazoados sobre o mundo atual nos quais ressalta, em retórica arquitetada, uma pretensa desilusão na democracia e na possibilidade de mudar o sentido das relações inter-subjetivas e coletivas. Naqueles discursos nota-se a quebra, também retórica, entre a democracia tal como ela deveria ser e como ela é efetivamente. Seria preciso, no caso, citar Jean Paul Sartre e sua avisada crítica de que a democracia —como aliás o ser humano que a produz— não é uma essência alheia ao tempo e ao espaço. Quem finge lamentar os "fracassos" da vida democrática faz um jogo: contrapõe o que o regime do povo deveria ter sido, e nunca foi, e o que ele "realmente" apresenta aos nossos sentidos lógicos e somáticos.

Aqueles supostos desencantados miram e apontam para o modelo que está ou esteve em sua mente ou imaginação (em alguns deles, na fantasia). E o comparam com o existente. Assim, se declaram chocados ( e pretendem passar o choque ao maior número de pessoas) e sem esperanças. Tais lamentos se repetem de múltiplos modos em indefinidas maneiras de pregar aceitação do que é, afastando as teses democráticas (nunca realizadas in totum, como exigiriam os modelos ideais) em prol dos piores regime tirânicos, como o intentado na era Bush nos EUA (ainda não superada), com sua violenta ordem censória e persecutória que na Lei Patriótica suspendeu os direitos de expressão e a liberdade em nome do combate ao terror.

Faço uma primeira diversão nessas reflexões. Aderimos, no mundo moderno, a alguns modelos de sociedade e de Estado que, na sua abstração, faliram quando em confronto com a finitude do tempo e do espaço, a chamada História que hoje é despachada sem cerimônia pelos cantores do status quo. Vejamos o Prefácio ao livro IV da Ética Spinozana (4): o que seria uma coisa perfeita ou imperfeita? É disto que se trata quando se afirma a "desilusão" política com a democracia. Visto que o modelo ideal não se efetivou, ele não é perfeito e a cópia dele realizada ainda tem marcas piores.

Perfeito e imperfeito se ligam à produção de algo, não se vinculam apenas a resultados. Algo é dito "perfeito" por quem o fez. Se ignoramos o alvo presente na consciência do produtor, diremos diante de qualquer produção que ela é imperfeita porque sua forma atual não coincide com a forma que está em nossa mente. Se vemos uma obra (que supomos inacabada) e sabemos que o fim do autor é edificar uma casa, diremos que a casa está imperfeita, e perfeita ao contrário, logo que a vemos conduzida ao acabamento. Mas se vemos uma obra sem nunca ter visto nada igual e ignoramos o pensamento do autor, não podemos saber se é perfeita ou imperfeita. Perfeição e imperfeição, definem noções que nos acostumamos a forjar porque comparamos entre si indivíduos da mesma espécie ou gênero.

É o caso da forma democrática. Perfeita ou imperfeita? A singularidade da democracia, diz Norbert Lenoir na obra citada, reside no inacabamento. Este "significa que sua extensão é um processo ininterrupto. A democracia é menos um regime que duraria por suas próprias forças, em virtude de seus princípios constitucionais, do que uma dinâmica: dinâmica de uma extensão dos direitos e generalização dos direitos fundamentais, resistência à concentração do poder que pode favorecer uma oligarquia reinante em nome do povo". (5) A determinação deste ponto só pode surgir uma vez ouvidos os seus autores. Infelizmente, não é semelhante procedimento o seguido pelos propagandistas de modelos abstratos. Estes preferem discorrer e lamentar o regime democrático porque ele não coincide com os paradigmas postos em sua mente como fim último de todo regime político "perfeito".

Antes do "direito de expressão" vale discutir o direito à política no que se refere ao povo. Numa democracia o povo é soberano. Esta afirmação, negada pelos fatos, sugere a crise dos sistemas parlamentares e presidencialistas de governo. Com ela, pressupõe-se o direito do povo para deslegitimar os poderes constituídos em seu nome, quando estes últimos surgem na forma de oligarquias que concentram o poder decisório. O povo é a substância de toda e qualquer democracia, sendo que esta "não é relativa apenas a uma certa organização do poder, mas um processo que opera a passagem e a transformação do instituído ao instituinte, processo que assegura o privilégio do poder constituinte (o povo) sobre os poderes constituídos".

"Povo", como crise e política, é um conjunto tenso e polissêmico de relações, interesses, vontades, saberes e projetos. Ele não se resume a uma das facetas sociais, como foi o caso do Terceiro Estado burguês ou do proletariado socialista. O povo constitui muitos públicos com interesses contrários, contraditórios, convergentes. Faz-se mister falar de "publicos de cidadãos, que se constituem para politizar um problema específico e que se desagregam para renascer em outras cenas e de modo diferente, sobre um mesmo problema. Há, pois, descontinuidade dos públicos e heterogeneidade de sua composição sociológica e política, segundo os diferentes problemas que eles politizam".

O que nos leva ao ponto crucial, a partir dessa heterogeneidade dos públicos. A própria definição do espaço público não pode "se reduzir à definição da publicidade, ao simples jogo da liberdade de expressão. Esta liberdade, com certeza, é o elemento preliminar do espaço democrático, mas não é o seu horizonte.". Existem e existiram autores para os quais a "opinião pública" é apenas um fantasma. Entre eles, W. Lippman (6) Esta caráter fantasmagórico viria, segundo ele, do seguinte fato: a opinião dos cidadãos jamais atinge o estatuto de um verdadeiro juízo político, pois ela apenas manifesta um ponto de vista privado e limitado sobre a realidade social e política. Assim, diz o autor, a democracia não tem como alvo garantir um espaço em que se desenvolve a opinião pública. Tal opinião, ao contrário, é obstáculo a ser vencido. Assim, é preciso controlar a opinião por meio de procedimentos governamentais que fabriquem o consentimento dos cidadãos: "a fabricação dos consentimentos será o objeto de refinamentos substanciais (...) graças aos meios de comunicação de massa", diz o mesmo Lippmann em outro livro, agora o famoso Public opinion. (7)

A essa clara suspeita, hoje ainda mais dirigida contra o sistema democrático, indicado por vários escritores, se acrescenta um ódio contra a opinião pública. Tal idiossincrasia, diríamos, é velha como o Ocidente. Em Platão ela foi sistematizada na tese de que a competência científica ou técnica é tarefa que não pode, nem deve, ser obra de discussão, debate, opiniões. No pensamento platônico, a epistême deve ser distinta, absolutamente, da mera doxa. Tal ideário é encontrado ao longo da história e tem como ápice o pensamento autoritário do século 19 e do século 20. Basta recordarmos o refrão perene de Carl Schmitt e de seus discípulos atuais, de esquerda ou direita, contra a democracia parlamentar, na qual muito se debateria e pouco se decidiria (8).

E também é suficiente citar as idéias do jurista autoritário sobre o controle da opinião pública e a fábrica de legitimade a ser conseguida para o poder. Citando Schmitt: "Atrás da fórmula do Estado total se esconde este conhecimento exato: o Estado atual possui novos meios de potência e possibilidades de uma intensidade extraordinária, do quais pressentimos dificilmente a amplitude e os efeitos últimso, porque nosso vocabulário e nossa imaginação ainda se enraizam no século 19". Assumindo o Estado na era da técnica (o enunciado é de J.F. Kervégan) o jurista afirma que no seu mister de formar a opinião pública, a imprensa estaria prestes a ser destronada pelo audio-visual (rádio e cinema), percebidos como técnicas de influenciar massas. A midia não seria um espaço de liberdade de expressão, mas de ameaça ao Estado, concorrente na sua tarefa de moldar o pensamento coletivo. Assim, pensa Schmitt, o Estado efetivo deve responder à ameaça por um controle, direto ou indireto) daquelas técnicas, interpretadas como instrumentos de propaganda. "Não existe ainda", acrescenta Schmitt, "um Estado tão liberal que não tenha reivindicado em seu proveito pelo menos uma censura intensiva e um controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado pode permitir deixar a um adversário estes novos meios técnicos de dominação das massas, sugestão das massas e formação da opinião pública". Estado total, no sentido dado por Schmitt, será o que tem o controle dos meios de comunicação. Assim, "os novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para o aumento de sua potência". O Estado total, acrescenta o autor, "não deixa surgir em seu interior forças inimigas que o obstruem ou o desagregam. Ele não pensa deixar que seus inimigos disponham de meios técnicos, deixando também sapar sua potência por um slogan qualquer como Estado de direito, liberalismo ou um nome outro. Ele sabe distinguir entre amigo e inimigo. Neste sentido ele é, como se diz, um Estado total. Sempre foi assim e a novidade reside apenas nos meios técnicos, cuja importância política deve ser levada em conta". (9)

Schmitt tem alguns mestres na arte ditatorial. Um deles é Donoso Cortés. No Discurso sobre la dictadura (1849), diz o espanhol que mais desce o nível da fé em Deus na sociedade, e mais o poder precisa emprestar a onisciência divina, além da onipotência. Chega um dia em que o governo diz: “temos um milhão de braços, mas não bastam. Precisamos mais, precisamos de um milhão de olhos. E tiveram a polícia e com ela um milhão de olhos. Apesar disto (...) o termômetro político e a repressão política deviam subir, porque, apesar de tudo, o termômetro religioso baixava, e subiram. Não bastou aos governos um milhão de braços, não lhes bastou um milhão de olhos. Eles quiseram um milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e todas as queixas. (...). Mas os governos disseram: não me bastam, para reprimir, um milhão de braços; não me bastam, para reprimir, um milhão de olhos; não me bastam, para reprimir, um milhão de ouvidos; precisamos mais, precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes. E tiveram isto, pois se inventou o telégrafo”. (10) Chegamos hoje à internet, aos meios eletrônicos de busca e controle, além da espionagem dos próprios cidadãos, com uma eficácia que recorda os procedimentos descritos na imaginação que gerou o romance 1984. A razão de estado impulsiona a perda quase absoluta do espaço individual pela ações comandadas (seja em clima de guerra a países, seja na luta contra o terrorismo) pelos governos poderosos, em detrimento das liberdades e dos direitos humanos.

Tomemos Hegel nas Lições sobre a Filosofia do Direito (§ 317 e seguintes). A opinião pública se efetiva na forma primitiva do bom senso, ao qual não podemos aplicar o selo da racionalidade. Nele existem todos os preconceitos (Vorurteilen). Na opinião pública, ao lado de raciocínios com base em fatos reais, assistimos a contingência da opinião, falta de conhecimento científico ou conhecimento falso, um modo de enxergar as coisas ao contrário, juízos errôneos e inapeláveis. Assim, seriam verdadeiras simultâneamente, diz Hegel, a frase "Vox populi, vox dei" e o enunciado de Ariosto : "Que o vulgo ignorante a todo mundo repreenda, e mais fale do que menos entenda" (Orlando Furioso, canto 28, estrofe 1). Erro e verdade moldariam a opinião pública.

Logo, escreve Hegel, ela "merece ser ao mesmo tempo apreciada (geachtet) e desprezada (verachtet). A independência diante dela é condição para que se faça algo importante, universal, tanto na ação quanto na ciência. E segue-se o nosso problema: a liberdade de comunicação pública (na imprensa e nos discursos, os dois meios conhecidos no século 19) tem sua garantia, diz Hegel, em leis e ordenamentos que tanto antecipam quanto punem os excessos. Mas a sua principal garantia é o fato de que ela é inócua, desde que fundamentada numa constituição sábia e num governo estável e na publicidade das Assembléias de representantes. Hegel ataca a tese de que a liberdade de imprensa é permissão para publicar o que se deseja. Para ele, esta reivindicação é própria de um pensamento grosseiro e inculto, mera superficialidade.

O objeto da imprensa, ataca Hegel com a maior dureza, é constituído do mais passageiro, mais particular, mais contingente na opinião, a infinita diversidade de conteúdos e modos de expressão. É a arte de caluniar por meias palavras e insinuações, o que dá à imprensa seu caráter indeterminado de conteúdo e forma e impede as leis de cumprir seu papel punitivo, visto o caráter altamente subjetivo dos personagens em jogo, em especial o jornalista. Este último pratica, não raro, "ofensas à honra dos indivíduos, a calúnia, a difamação, a falta de consideração para com o governo, autoridades, e particularmente para com o príncipe, desvia as leis e incita o povo à revolta".

A opinião pública, movida pela imprensa, é ao mesmo tempo falsa e verdadeira, já as ciências "quando são de fato ciências, não se situam no terreno das opiniões e formas subjetivas. Seu modo de exposição não consiste na arte dos torneados, das alusões, das meia palavras, dos subentendidos, mas numa expressão sem equívocos, precisa, sincera do significado e do conteúdo. É por tal motivo que elas não entram na categoria da opinião pública. (11)

O mesmo juízo negativo é dado por Hegel sobre a soberania popular. No § 279, no adendo que o segue, o filósofo discorre sobre a soberania do povo. Esta expressão, diz ele, pode ser empregada corretamente se com ela entendermos que um povo é independente e constitui um Estado. Mas a soberania pertence apenas ao Estado. "É opondo à soberania que existe no monarca que se colocou a falar, em data recente, da soberania popular. Vista nesta oposição, a soberania do povo integra os pensamentos confusos que têm por base uma representação grosseira do povo. Sem o seu monarca e sem o organismo que a ele se apega necessária e imediatamente, o povo é massa informe (formlose Masse) que não é mais um Estado (...) se a república for entendida como soberania popular e, de modo mais preciso, a democracia (...) não temos mais lugar para esta representação". E Hegel remete ao § 273, onde ele critica a república e exalta a monarquia constitucional.

O terreno contrário à opinião pública e à soberania popular está bem assoalhado, pelo menos desde o Termidor, e suscita teorias "realistas" do poder com base na idéia, bem platônica, de que o Estado é assunto de poderosos e de especialistas em técnicas e ciências. O povo não pode ser ouvido, nem deve, porque seu domínio é a imaginação opinativa. O termodoriano por excelência, Boissy d´Anglas, retoma a norma hobbesiana e leva o cidadão particular ao plano estritamente produtivo, econômico, dele afasta as tarefas de governo. Assim, não se pode arrancar da atividade econômica “homens que melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez de vãs declamações e debates superficiais”. (12) D´Anglas seleciona “os melhores” para dirigir o Estado, os que, “possuindo uma propriedade são apegados ao país que a contem, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. (13) A partir do Termidor, portanto, a massa popular perde a soberania, substituída pelos proprietários, seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3: “Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. Para o termidoriano a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Somem as exigências democráticas, essenciais na Revolução inglêsa do século 17, da Revolução Norte-Americana e Francêsa do século 18. Se esfuma a soberania do povo, seguindo-se a recusa da accountability e negando-se a destituição, pelo povo, dos governantes em todos os poderes. Hegel, neste sentido, foi perfeito termidoriano, como aliás o mundo das nossas universidades, partidos, sociedades, Estados. Por mais que os movimentos revolucionários tentassem modificar o imaginário conservador, as teses sobre a soberania popular foram atenuadas ao máximo em proveito dos governos dirigidos pelos intelectuais e pela burocracia.

As teses conservadoras foram entendidas como uma contra-revolução pelos liberais, socialistas e anarquistas. Mas os reacionários viram a si mesmos como adeptos de uma revolução de tipo novo. Não por acaso o poeta Novalis se refere às Reflexões sobre a Revolução Francesa de Edmund Burke como "um livro revolucionário, contra a revolução". Voltemos a W. Lippmann. Este considera que "o público deve ser posto em seu lugar, para que os homens responsáveis possam viver sem medo de serem pisados ou chifrados pela tropa de bestas feras" (14) Isto determina, segundo Lippmann, "uma revolução na prática da democracia". Tal revolução faz advir a manipulação da opinião por um governo invisível. Edward Bernays sublinha este ponto: "A minoria descobriu que poderia influenciar a maioria no sentido de seus interesses. É doravante possível modelar a opinião das massas para a convencer a empenhar sua força novamente adquirida na direção desejada (...) Em nossos dias a propaganda intervem necessáriamente em tudo o que tenha alguma importância no plano social (...) a propaganda é o órgão executivo do governo invisível" (15)

A propaganda entra no rol dos atos de fala que dependem, segundo o lingüista Austin, do ajuste de quem enuncia a um “procedimento convencional aceito (…) que inclui a emissão de certas palavras, por parte de certas pessoas em certas circunstâncias”. Este aspecto é determinado como ilocução (o que fazemos ao dizer algo), mas não como perlocução (o que fazemos pelo fato de dizer algo). A perlocução é o efeito produzido por um ato lingüístico, o objeto ou a simples seqüela deste ato. A perlocução pode ser intencional ou inintencional. A perlocução não é convencional, ela se produz ou deixa de ocorrer independentemente da correta efetivação do ilocutivo. Vejamos exemplos disso: “mate-o” é locutivo. “Ordenou-me que o matasse”, ilocutivo. “Persuadiu-me a matá-lo”, perlocutivo.

“Persuadir”, “convencer”, “assustar”, “alarmar” são perlocutivos cuja efetivação não depende do fato de usar certas expressões ou situá-las em contexto adequado, mas sim da habilidade, destreza ou astúcia do falante, da fraqueza ou vulnerabilidade do ouvinte, circunstâncias nem sempre previsíveis nem controláveis pelos próprios sujeitos do ato de fala. (16) Para expôr a não convencionalidade do perlocutivo, Austin afirma que um juiz pode decidir, pela oitiva de testemunhas, quais locutivos e quais ilocutivos foram empregados no ato delituoso, mas não pode saber quais foram os perlocutivos porque não tem provas para tal exame. O ilocutivo é um ato físico mínimo que consiste em dizer algo. O perlocutivo resulta do ter dito algo, que não consiste em outro ato de dizer. Ele não é convencional e isto poder ser verificado pelo fato de que ele não pode ser explícito, caso contrário perde eficácia. Não se diz: “eu te persuado”, ou “eu te assusto” quando se deseja realmente persuadir ou assustar. O perlocutivo pode ser intencional ou inintencional, um fim proposto ou querido, ou ser uma simples seqüela do ilocutivo.

Se a propaganda mentirosa, oficial ou não, diz “ o contrário do que se pensa com a intenção de enganar”, como considerá-la? Falar a mentira, para Austin, é transgredir a condição dos atos de fala, a sinceridade. No ilocutivo, a mentira está em não cumprir uma regra que exige, numa troca de enunciados, que os participantes possuam os pensamentos e sentimentos expressos e tenham a intenção de falar em consequência. Digamos em forma de jogo: os jogadores, num jogo de xadrez, devem ter a competência e o intento de jogar xadrez, não dominó ou um outro jogo. A sinceridade, assim entendida, é pressuposto. A mentira, dizer o contrário do que se pensa, nega o próprio ato comunicativo. Ela não é um ilocutivo, mas um perlocutivo. Se falarmos “ao dizer X, eu o enganei” o intento e a consequência se ampara na ausência de explicitação, na falsidade do ato, a inconexão encoberta entre o que digo e o que, de fato, pretendo conseguir sem que o outro o perceba, pois se trata de enganá-lo.

Mentir é recurso próximo da manipulação : eu engano e ele não deve perceber. A manipulação mentirosa, na perspectiva de Imanuel Kant, nega o pressuposto semântico e pragmático essencial que, se ausente, a comunicação torna-se impossível e, com isso, toda ciência, moral, política. A propaganda é uma política paradoxal porque tende a reduzir todo enunciado político ao engano dos dirigidos, neles criando a aceitação temporária do que se diz e se faz, e tem a marca da persuasão retórica. A adesão aos atos dos governantes (um indivíduo ou grupo diminuto, a oligarquia) é fabricada com meticulosa astúcia. A cada vez o engano deve ser retomado, sem que se acumule realmente qualquer obediência cuja origem seja a efetiva vontade do coletivo. A propaganda arruina a fé pública, porque ela é “um engano radical, uma ruptura de fé que arruina todo contrato discursivo; na mentira [e na Razão de Estado, RR] o ouvinte não é capaz de explicitar nenhuma estrutura; trata-se de um discurso ´fora da lei´”. (17)

Quais os tipos de manipulação que mais operam na cultura ocidental ? Na ficção, que sem dúvida não é verdadeira mas também não é mentirosa, pois não intenta enganar. Na linguagem política comum se encontram os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Esta lingua promete sem prometer e deseja agradar e conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Ela não pode ser dita totalmente manipuladora, mas demagógica, no seu intento os

interesses pragmáticos se sobrepõem aos demais. A lingua da publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. (18) “Existem classes e profissões que se pressupõe por princípio que forçam os seus representantes a mentir, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas (...) os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”. (19)

Mas nessas mentiras profissionais, diga-se, temos mentiras partilhadas, pois nelas o engano participa e assume a mentira. Esta última, no entanto, sendo um jogo que deve ser aprendido, aquelas mentiras invadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou ilícito, segundo o caso. Passemos ao caso da mentira como ato de violência e poder.

A manipulação real se identifica com a injustiça. Ela é uma espécie de violência e ela só é justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes —mentiroso e enganado— sabem que estão mentindo um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma saída que não seja a adesão. Quando existe mentira real? Quando a competência lingüística é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. Na democracia, a competência lingüística é simétrica e compartilhada. É por semelhante motivo que todos os reacionários do século 19, a começar com os românticos conservadores, viram na democracia aquele regime onde todos falam, e todos falam em demasia, sem decidir.

Um poder que manipula a propaganda em favor dos poucos que, do alto, o movimentam, tem nome e não é democracia, mas oligarquia. Os EUA são um país onde a oligarquia (até pouco tempo atrás com o nome singular de WASP) segura as rédeas do poder, com aparência de representação do povo soberano. No Brasil, a questão é mais penosa, visto que nossas oligarquias sequer tem o cuidado de parecer respeitosas da soberania popular, da opinião pública, da imprensa. Não raro, oligarcas de primeiro e segundo escalões possuem, eles mesmos, redes de TV e de jornais, para impôr a pior caça aos seus adversários e ao povo, para granjear favores dos que habitam os palácios dos executivos, dos municípios a Brasilia. E muita propaganda oficial é consumida, muito poder se torna invisível à custa de milhões e milhões de reais, tendo em vista guardar os pactos ditos de "governabilidade". E muita censura é praticada nesta "comunhão negra dos santos", para sugerir o termo criado por Maurice Merleau-Ponty ao comentar Maquiavel.

Democracia, diz Emmanuel Barot na coletânea que me serve de fio condutor para estas reflexões, não significa tanto no abstrato "soberania popular", mas governo do povo. Mesmo a idéia de uma democracia representativa traz problemas que desafiam a sua lógica e a prática. A democracia representativa tem no povo a sua fonte (o termo usado para definir este nexo é de origem neo-platônica, o conceito de emanação) mas para governar é preciso, como exigia Platão, um título. E o título pode vir do nascimento, da riqueza ou do saber. Este é um procedimento oligárquico por excelência, no qual existe delegação de poderes.

Retomo Jean Paul Sartre, autor pouco em voga em dias de expresso Termidor,. Ele tem considerações interessantes sobre o tema em artigo publicado em 1973 na Revista Les Temps Modernes (20) "Quando voto", diz Sartre, "abdico meu poder —ou seja, a possibilidade que está em cada um de constituir, com todos os outros um grupo soberano que não tem necessidade alguma de representantes ...votar é sem dúvida, para o cidadão serializado, dar sua voz a um partido, mas é sobretudo votar pelo voto (...) a instituição política que nos mantem em estado de impotência serial (...) Deste modo cada um, fechado em seu direito de voto como um proprietário sobre sua propriedade, escolherá seus senhores (...) sem ver que este pretenso direito de voto é apenas a interdição de se unir aos outros para resolver pela praxis os problemas verdadeiros. Nada existe para ser dito se aceitamos as regras deste jogo". Se um regime parlamentar ou presidencial não pode responder a semelhante crítica sem disfarces retóricos, não será democrático.

O que é uma república oligárquica? Ela não é ditadura, militar ou civil, nem regime fascista. Um Estado oligárquico mantem certos direitos sociais, prepara espaços "públicos" que permitem o exercício de liberdades individuais e coletivas. Os atentados às liberdades individuais, a propaganda privada ou do Estado, nele também deixam de ser organizados como nos regimes fascistas. Mas todos os atentados se tornam possíveis, dada a confiança e a torsão, operada pelos oligarcas nos monopólios da força física, da norma jurídica e dos impostos, em seu proveito e em detrimento da sociedade. Aquelas atribuições do Estado são açambarcadas por oligarcas nos três poderes, em especial no Parlamento.

O presidente atual do Senado, José Sarney, em companhia de outros oligarcas de todos os matizes, tanto os que apoiam quanto os que se opõem ao governo, ajudou a estabelecer atos secretos incompatíveis com qualquer Estado democrático e, ouso dizer, de Direito. Teve, no entanto, apoio do primeiro magistrado da República, em nome de um suposto pretérito dignificante. Na esteira da operação para manter a ele e aos seus pares no poder, veio a censura judicial a um periódico, censura imposta por juiz cujo nexo com a parte acusada, o filho do Senador, era evidente. Depois, o mesmo presidente do Senado, na data em que se comemora a democracia, acusou a imprensa de ser, porque concorrente com o poder representativo, inimiga do Parlamento.

Escreveu então a professora Maria Sylvia Carvalho Franco, autora de uma obra clássica sobre as relações oligárquicas e de favor em nosso Estado nacional, o livro Homens Livres na Ordem Escravocrata, (21) o seguinte no jornal censurado : "O discurso de Sarney (...) surpreendeu tanto por exumar uma velha técnica de controle político (os freios à liberdade de expressão) como por sua retórica, tecida em argumentos sofísticos. Sua fala aponta uma polaridade na vida pública atual: o Congresso, legítimo representante do povo, e a imprensa, que pretenderia esse mesmo papel. ´É por essa contradição que existe hoje, um contra o outro, que, de certo modo, a mídia passou a ser uma inimiga do Congresso, uma inimiga das instituições representativas.´

A professora conhece o tema, pois durante toda a ditadura defendeu a universidade ameaçada por esbirros e policiais secretos aninhados no campus. Na USP havia um escritório do SNI ao lado da Reitoria, para julgar os candidatos aos cargos docentes, se podiam ou não tomar posse de suas cadeiras, além de outras formas repressivas abjetas. Escreve ela : "Não pela simetria dos fins, mas por seu reverso, Congresso e imprensa podem, isto sim, entrar em oposição. O jornalismo possui a força de representar o povo na medida que revela, por exemplo, a opinião pública escandalizada pela corrupção e conduta indecorosa de parlamentares (...) a epifania da imprensa como representante do povo não se manifesta pela contradição com o Parlamento, como quer Sarney, mas pelo vazio institucional de um preenchido vicariamente pela outra".(22)

A crise da liberdade de expressão, portanto, liga-se de maneira imanente à crise política que abala todos os Estados atuais. E com eles, seus cidadãos. Pensar tais fenômenos é tarefa difícil. Mas necessária e urgente.

Roberto Romano


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1 (Zurich/New York, Georg Olms Verlag, 2008).
2 "Os médicos hipocráticos souberam precisar a noção de crise, de instante crítico, ponto de mudança rumo à cura ou rumo à morte" Alonso Tordesillas : "L'instance temporelle dans l'argumentation de la première sophistique: la notion de Kairos", in Le Plaisir de Parler, (Paris, Les Éditions de Minuit, 1968) página 33, cf. José Augusto Ribeiro Graça : "Os gregos e o amor da Theoria" edição eletrônica endereço : ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/1810.pdf (acessado em 12/07/2009, as 10: 30 AM).
3 Aforisma, in Hippocrates, volume IV Loeb Classical Library, trad. W.H. S. Jones (London, Cambridge, 1979), página 98.
4 Uso a edição bilingüe na tradução de Tomaz Tadeu (Belo Horizonte, Autêntica Ed., 2007), página 263 e seguintes. Também usei a excelente edição eletrônica da página Hyper-Spinoza (http://hyperspinoza.caute.lautre.net/)
5 Democratie et espace public: quel pouvoir pour le peuple? ed. cit. página 9.
6 Cf. W. Lippmann, The Phantom Public (New York, Macmillan, 1925).
7 Public Opinion, capítulo 15, seção 4 (New York, Hartcourt Brace and Company, 1922), página 150. Sigo sempre, linha a linha, os argumentos de Lenoir.
8 Cf. Jan-Werner Muller : A Dangerous Mind, Carl Schmitt in post War European Thought (London/New Haven, Yale University Press, 2003).
9 Schmitt, Carl: "Gesunde Wirtschaft im starken Staat" Mitteilungen des Vereins zur Wahrung der gemeinsamen wirtschaftlichen Interessen in Rheinland und Westphalen, Heft 21 (23 novembro 1932). Cf. Olivier Beaud: Les derniers jours de Weimar. Carl Schmitt face à l´avènement duz nazisme (Paris, Descartes & Cie., 1997), página 61 e seguintes.
10 in Obras Completas de Donoso Cortés, Madrid, BAC, 1970, v. 2, p. 318.
11 Grundlinien der Philosophie des Rechts, in Werke in zwanzig Bänden, volume 7 (F.A.M., Suhrkamp Verlag, 1971), página 483 e seguintes.
12 Referido por Patrice Rolland, Patrice Rolland (Professor da Universidade Paris XII), no artigo “La garantie des Droits” in Droits fondamentaux, n. 3, décembre 2003, página 195.
13 Citado por Alain Badiou, “Qu´est-ce qu ´un thermidorien?”, in Kintzler, Catherine e Rizk, Hadi (Ed.) : La République et la Terreur (Paris, Kimé, 1995), página 56.
14 The Phantom Public, op. cit. página 155. Lenoir, página 11.
15 E. Bernays: Propaganda (New York, H. Liveright, 1928); Lenoir, página 11.
16 Sigo a demonstração de Victoria Camps. El discurso de la mentira (Madrid, Alianza, 1988).
17 H. Parret, “Élements d´une analyse philosphique de la manipulation et du mensonge”, Documents de Travail, Università di Urbino, 1978, citado por Victoria Camps.
18 Neste plano, o clássico de Vance Packard, The hidden persuaders (New york, David Mac Kay & Co. 1957) é a referência fundamental.
19 Herman Kesten (Ed.) : Schwierigkeinten, heute die Wahrheit zu schreiben (Munique, 1964), citado por H. Weinrich, Metafora e menzogna; la serenità dell´arte (Bolonha, Il Mulino, 1976). Cf. Camps, p. 36.
20 "Élections piège à cons", Les Temps Modernes, 1973, número 318. Barot, página 177.
21 São Paulo, Ed. Unesp, 1997. Este escrito foi indicado, por um juri de intelectuais reconhecidos nacional e internacionalmente, como um dos cem livros mais importantes do século 20, no Brasil.
22 Jornal O Estado de São Paulo, Caderno Aliás, 21/09/2009.