terça-feira, 13 de outubro de 2009

Jornal do Advogado, OAB.









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Em discussão



O Brasil precisa extinguir as medidas provisórias?

Sim

Roberto Romano – Professor titular de ética e filosofia política da Unicamp

Como base da análise, pode ser indicado um complexo doutrinário que vem da Grécia e define a nossa cultura, incluindo a jurídico-política. Refiro-me à categoria da hybris (desmesura) contra a qual foram usados remédios na democracia ateniense. A forma de governo que proporciona a paz social deve se fundamentar na justa medida (to metrion). Tal ideário renasce em Locke e Montesquieu. A idéia dos poderes orientados pela medida serviu aos teóricos liberais como Benjamin Constant, na proposta de um poder moderador neutro que coordenaria os demais.

A ideia de Constant se dilacerou no Brasil. De neutro, o Poder Moderador foi posto acima dos outros. O Imperador recebeu atribuições que lhe facultaram intervir em todos os poderes. Não por acaso, um jurista autoritário indica a manobra brasileira como estratégica, quando pensou reforçar os poderes do presidente alemão em "situações excepcionais". Sendo a chave da ordem política, ao Moderador caberia preservar a independência, o equilíbrio e a harmonia dos poderes. O alvo de Schmitt (Schmitt, Carl: O Guardião da Constituição) era conceder força excepcional ao presidente do Reich. Ele escolheu bem o seu modelo.

Os limites do novo poder eram fluidos o bastante para ameaçar ditatorialmente o Legislativo e o Judiciário. A dissolução da primeira Assembléia Constituinte é um episódio, de muitos, que marcam o caráter autoritário do Estado. Com a República, prerrogativas do Moderador permaneceram na presidência. Este vezo se afirmou nas ditaduras do século 20. O Executivo teve ao seu dispor instrumentos que derrubavam a ordem constitucional (como os Atos Institucionais) e recursos como o decreto-lei, que desnaturavam os outros poderes.

Desde o Império, pois, foi erigido um poder nacional com marcas do absolutismo, atribuído ao chefe de Estado. A burocracia desmedida que o serve monopoliza as políticas públicas. No sistema, no entanto, ocorre uma fenda grave. Com a centralização dos impostos e seu improvável retorno aos Estados e Municípios, surgem as oligarquias. Estas cumprem o papel de arrancar recursos dos cofres federais. Deste modo, existem duas pautas políticas em plano nacional, a que elege o presidente (com temas amplos da sociedade e do Estado) e a que escolhe deputados e senadores, cujo matiz é regional. Tal fato torna árduo o apoio ao governo no Congresso. Este defeito do regime surge com evidência nas crises do governo de Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, retornando com clareza sob José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

A aprovação dos projetos de lei do Executivo deve ser obtida pela entrega de recursos para as regiões ("é dando que se recebe"), cargos na administração pública ou empresas estatais etc., o que aumenta a corrupção política. Daí que a via mais fácil é o uso ilimitado das medidas provisórias. Estas, por exigência da Constituição Federal de 1988, são justificadas pela sua "relevância e urgência". O fundo histórico, a petrificação do Executivo por juristas autoritários como Francisco Campos (cujos elos com as teorias de Carl Schmitt se mostram nas suas "obras", da Constituição de 1937 aos Atos Institucionais) indicam que o atalho das medidas provisórias tem parentesco com a idéia schmittiana de que "a ditadura é o reino da medida, em oposição ao Estado de Direito, o reino da lei" (O. Beaud, em nota à edição francesa da "Verfassungslehre" de Schmitt, Paris, PUF, 1993, p.44).

O que é "relevância e urgência" senão a quebra da norma em favor da exceção? Em quais limites a exceção pode ser enquadrada? A presidência é autoritária, plebiscitária e guarda pretensões ao absolutismo. Ela é a própria hybris. Sem limites e com poder de legislar, o Executivo consolida sua ditadura, desequilibra o Estado no mesmo passo em que ameaça e subverte o Legislativo e o Judiciário. É avisado repensar as medidas provisórias. Elas prenunciam realidades terríveis, se olharmos o poder público com olhos prudentes e democráticos.

Não

André Ramos Tavares – Pró-reitor de pós-graduação da PUC-SP

A finalidade da criação das medidas provisórias (MPs), em 1988, foi a de colocar à disposição do chefe do Executivo a possibilidade de implementar soluções imediatas para situações de urgência e relevância, que não possam aguardar o tempo próprio da tramitação processual legislativa do Parlamento.

O instituto tem sido, contudo, desde sua origem, objeto de vozes críticas. Os principais argumentos contrários costumam invocar: 1) sua inadequação ao presidencialismo; 2) o poder excessivo conferido ao presidente, exacerbando ainda mais um modelo personalista de governo; 3) o excesso no uso (verdadeiro abuso) desse instrumento na recente história do país, em nada contribuindo para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia (há casos de 80 reedições consecutivas), e, em especial; 4) a utilização da MP como fórmula, desautorizada constitucionalmente, de o Executivo ditar a pauta do Legislativo.

Embora as críticas sejam, em sua totalidade, procedentes, estão dirigidas à inadequação do regime, e não à desnecessidade da MP. Ninguém cogitaria de tratar uma doença matando o doente. Ademais, os problemas identificados são plenamente compatíveis com a jovialidade do nosso modelo constitucional, que haveria de, após suas experimentações, demandar alguns reparos tópicos.

Outra não foi a percepção do próprio Congresso, que, em 2001, promoveu substantivo redesenho do regime aplicável à MP. A Emenda Constitucional 32/01 expressamente reduziu a possibilidade de prorrogação de MP já editada, a uma única reedição, doravante automática. Também previu um regime de urgência para o caso de uma MP não ser apreciada em 45 dias, impedindo as demais votações legislativas do Parlamento até que se conclua a votação da MP pendente (o objetivo era acelerar a análise das medidas provisórias). Por fim, a mesma Emenda retirou certos temas da alçada das MPs.

Mas as mudanças não foram suficientes. É que, com o novo regime, o presidente, mesmo sem maioria e sem base aliada no Parlamento, consegue determinar a pauta e até suspender as atividades comuns deste. O mais chocante é que tal possibilidade independe de contar o presidente com maioria no Parlamento, quer dizer, é situação a depender apenas da vontade presidencial. E isto tem causado um grande mal estar institucional, a ponto de ter sido encaminhada uma mudança recente, na práxis congressual, para que apenas a votação de lei ordinária fique sobrestada quando houver MP pendente de votação. O Parlamento não pode ser refém daquele que estiver a ocupar o posto de presidente.

Chegou-se tão longe no uso abusivo da MP e na inadequação de seu regime que, anteriormente, parlamentares cogitaram de seu banimento da Constituição. Além de ser proposta inconstitucional, pois retira um dos instrumentos originais e legítimos de um dos Poderes da República, que pode, em momentos críticos, auxiliar e promover direitos fundamentais (como a segurança pública) é, ainda, uma proposição inconseqüente, pois sem tais instrumentos para fazer frente a momentos excepcionais, substituir-se-ia, pura e simplesmente, o abuso (atual) pelo arbítrio (total) da falta de parâmetros jurídicos no enfrentamento de situações de relevância e urgência.

Creio que, em parte, o problema esteja na cultura jurídica e no amadurecimento das instituições democráticas; o sentimento de perplexidade que experimentamos é apenas um ícone dessa falta de maturidade. Daí ser altamente aconselhável refinar as salvaguardas construídas para obter um uso adequado do instituto, dentro de seus fins maiores.

Não se pode esquecer, ademais, que, utilizada fora de seu eixo constitucional, a MP desmerece o regime democrático em vigor, caracterizando a "fraude constitucional", quer dizer, o envergamento de institutos aos objetivos (muitos não confessáveis publicamente) das autoridades de plantão. Assistimos hoje a uma penalização do Parlamento brasileiro e usurpação de suas prioridades, o que conduz a um desequilíbrio entre os Poderes. Certamente não é o modelo da Constituição de 1988; certamente não é a função autorizada constitucionalmente para a MP. Cumpre, pois, combater os desvios no seu uso e aperfeiçoar seu regime.