A arrogância e o bumerangue
A democracia é indispensável para haver alternância no poder. Ou pelo menos para torná-la possível. Ou pelo menos para que aconteça sem rupturas graves da institucionalidade.
Mas a alternância é também uma condição preliminar para haver democracia real. Quem veio antes: o ovo ou a galinha? A pergunta não faz sentido. Há todo um sistema, produto da evolução, que faz a galinha nascer do ovo, antes de ela própria botar ovos. Um modelo circular.
A política é um ecossistema. Quando está em equilíbrio, nenhuma espécie adquire, "naturalmente”, protagonismo tal que possa destruir esse equilíbrio. Que é necessariamente dinâmico. E involuntário.
Cada elo da cadeia alimenta-se de alguém e serve de comida a outro alguém. Se uma determinada população alcança protagonismo excessivo, o sistema se encarrega de colocar as coisas no lugar. Sem pedir licença.
A democracia está bem de saúde quando se nota algum equilíbrio entre o governo e a oposição. Esta bate e aquele apanha. O poder é um bicho muito forte. Uma fera insaciável.
Os governos sempre buscam meios de matar a oposição. E isso depende pouco de que grupo está no manche, ou das intenções autodeclaradas.
Em Brasília, o PSDB é um bichinho manso que acusa o PT de querer sufocar a oposição. Já nos estados o PSDB trata mesmo é de governar na paz dos cemitérios. E é bom nisso, reconheça-se.
Governos precisam apanhar. O poder não se autorregula, não faz parte da sua natureza. Ele precisa ser controlado. E é natural que resista a sofrer controles.
Luiz Inácio Lula da Silva reclama dia sim outro também do Congresso Nacional, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, do Judiciário. Mas quem inaugurou a moda de propor, por exemplo, amarras à ação do Ministério Público foi Fernando Henrique Cardoso.
O PT é acusado de querer perpetuar-se no poder. E leva jeito mesmo de desejar. São as ilusões da teoria torta de que um “líder certo” vale mais do que a própria democracia.
Mas quem verbalizou primeiro a necessidade de um “projeto” de duas décadas foi o tucano Sérgio Motta, então ministro das Comunicações de FHC. Presidente que aliás implantou a reeleição de ocupantes de cargos no Executivo, a começar pela própria.
Nesta semana, Lula explicitou o desejo de transformar a eleição num plebiscito. FHC fez isso com sucesso duas vezes. A primeira em 1994, quando reorganizou a base política que servira a um Fernando Collor recém-deposto e se lançou como o candidato ideal para “evitar a vitória de Lula e do PT”.
Nos bastidores, e nem tão discretamente, além de soprar as brasas do antipetismo, cuidou de convencer o então prefeito paulistano, Paulo Maluf, a desistir de qualquer pretensão presidencial. Maluf na época estava bem. Foi antes da ruína definitiva dele, com Celso Pitta.
Quatro anos depois, os operadores de FHC trataram de esmagar na convenção do PMDB a possível candidatura de Itamar Franco. Episódio protagonizado por personagens que hoje circunstancialmente navegam com Lula.
Os arquivos da imprensa estão aí para exibir a qualidade política e simbólica daquele episódio. Não chegou a ser um exemplo de etiqueta, ou da “superioridade civilizatória" que os tucanos gostam de alardear quando lhes convém.
O PT não é mais nem menos moderado no exercício do poder federal do que foi o PSDB. A diferença é que, na oposição, o petismo se dispunha a resistir politicamente, a criar uma alternativa.
Não chega a ser novidade que o PSDB tenha abdicado disso. Menos por generosidade, que como vimos não faz parte do seu DNA. Talvez pela aposta, lá atrás, de que o PT se afundaria sozinho.
Aposta que como se sabe deu errado. Arrogância intelectual que acabou virando bumerangue.