Prof. Dr. Roberto Romano da Silva
Depto. de Filosofia/Unicamp
Vivemos no tempo rápido e perdemos referências históricas, políticas, éticas, religiosas. Sob nossos olhos, também os temas acadêmicos sucedem-se em voragens cada vez mais tensas de análises e perspectivas. O sábio Montaigne, criador da transposição imagética do mundo financeiro para o campo da racionalidade escrita, recorda que o termo “pensar” tem o mesmo conteúdo de “pesar”. E com base neste símile, ele gerou a idéia de que a tarefa dos intelectuais era a de pesar as palavras na balança do juízo. Frases ou se gastam muito velozmente, e perdem sentido e peso, ou são adulteradas e nada valem.
Em vez de tratar, nesta exposição, dos “novos paradigmas éticos” e mover palavras grandiloqüentes, evocarei um tema estratégico do mundo antigo e atual, o que indica elos entre a educação física e o treino para a guerra, o traço comum entre esportes e morte nas batalhas. O tema, como é sabido, assume característica nuclear nas culturas antigas, as que deram nascimento à própria ética e política, tal como as conhecemos. Refiro-me, sobretudo à Grécia. Cito um clássico analista da educação grega: “Em nossos dias é a escola, as letras, que se associam automaticamente à palavra “educação”, para os gregos, era primeiro, e permaneceu por muito tempo, a palestra e o ginásio, onde a criança e o adolescente treinavam nos esportes”. [1] O que o grande analista “esqueceu” de mencionar é a violência guerreira unida aos exercícios e jogos pedagógicos. Torna-se preciso, hoje, quando o fato bélico mostra sua face múltipla (do terrorismo clandestino e bandido ao terror tradicional do Estado e de seu monopólio da força física), meditar um pouco sobre os elos entre educação, esportes, guerra. Como o tempo de que disponho é pequeno, indicarei alguns pontos a serem meditados quando nos preocupamos com a questão ética em nossos dias.
Iniciemos com a Grécia. Poder-se-ia dizer, com R.B. Branham, que o atletismo e a educação nele exigida tornou-se um ideal ético grego, sendo inclusive superior às artes marciais. Numa civilização como a que se tornou célebre por legar ao Ocidente a própria concepção de história, racionalidade, ciência, técnica e guerra, não é pequeno aquele enunciado.[2] Como disse o grego Melancomas, “na guerra o escopo é a coragem apenas, enquanto o esporte produz coragem, força física e autocontrole, simultaneamente”. Como a guerra, entretanto, a paixão pelos esportes e pela educação física possui críticos na própria Grécia. Tanto Xenófanes quanto Eurípides advertem contra a “tribo dos atletas”. Pergunta Eurípides: “que bem faz à sua terra um homem que vence corridas, lança discos, ou dá no adversário um soco certeiro? Lutarão contra o inimigo com os discos nas mãos? (…) um homem útil será o que recebe educação para a sobriedade e a justiça e pode
Os esportes, em escala amplíssima como a praticada nas terras helênicas, seria inclusive nocivo à saúde física e mental. O grande Galeno, médico nuclear da cultura grega, escreve que o modo de vida atlético é semelhante ao dos porcos, “mas com esta exceção, que os porcos não exercitam ou forçam a si mesmos a comer”. Para o doutor Galeno o atletismo não traz saúde física, beleza, ou poder aos seus praticantes, é inútil para a comunidade, nem é fonte de prazer.
Uma síntese dessas avaliações contraditórias da educação física e do atletismo, a encontramos no diálogo de Luciano, justamente dedicado aos esportes e ao ensino ético dos jovens atenienses. O debate se realiza entre Anacarsis, um semi-heleno (filho de estrangeiro e de grego) e Sólon, o grande instaurador das leis e da ética na Grécia. Anarcasis estranha os jogos atléticos e apresenta razões contra eles. A cada invectiva do “bárbaro”, Sólon responde em defesa da educação física como o primeiro passo (e fundamental) para a formação ética da cidadania. Ele assegura a Anacarsis que os esforços para melhorar os corpos - com toda a dureza que eles trazem, como mergulhar no pó e na lama vencendo as dificuldades naturais - ajuda a formar bons cidadãos e bons guerreiros. “Nós fazemos todos estes exercícios físicos como preparação para a luta com as armas”, diz Sólon com orgulho. Os corpos cobertos de óleo, para as lutas, são assim preparados para as batalhas, nas quais se exigem flexibilidade e rapidez, adquiridas na educação física.
Anarcarsis, na pena de Luciano, caricatura o argumento de Sólon, levando-o ao ridículo: “Muito bem, Solon, quando um inimigo invade sua terra, vocês untam seus corpos com óleo e jogam poeira sobre si mesmos, e seguem adiante os desafiando; eles, naturalmente, correm de vocês com medo de que a areia que está em vocês entre nas suas bocas ….”. [4] Um aspecto não risível no texto de Luciano é a exposição de um fato essencial na pedagogia grega dos esportes para a guerra: a sua violência “tigresca” como disse um dia Nietzsche ao se referir aos helenos. O cidadão é formado para ser: amável, simpático, educado para com os seus iguais. Como o cão, ele deve cuidar ternamente dos que pertencem ao clube político chamado polis. Mas deve aprender, nas lutas e no treino militar, a ser violento como os lobos. No próprio texto de Luciano sobre o atletismo, nota Branham, ressaltam termos anafóricos que retomam incansavelmente o caráter virulento da educação ética grega: a palavra agon, repetida incansavelmente, resume o caráter daquela cultura herdada por nós e analisada por Victor Davis Hanson, sobretudo em um livro recente cujo nome já diz tudo: Carnage and Culture. A “superioridade” grega encontra-se na sua força de combater os “bárbaros” com a violência mais racional, técnica, irrefreada. Pouco importa que Aristóteles e outros filósofos tenham criticado a educação física sem a formação axiológica como algo brutal (“A honra, não a ferocidade deve ser a primeira parte da educação; pois não é lobo nem algum outro animal selvagem que fará nobres aventuras, mas um bom homem. Os que conduzem os meninos a seguir exercícios árduos em demasia e não os treinam nas coisas necessárias na realidade os fazem vulgares, baixos”).[5]
O fato, diz Branham, é que a violência animalesca da sua cultura não era percebida pelos próprios educadores e políticos helênicos. Para eles, os bárbaros seriam “os outros”, enquanto a beleza, a bondade (o mesmo termo designa na Grécia o bem e o belo, kalós), teriam morada na terra grega. A sátira impiedosa de Luciano desvela aos leitores gregos o quanto se iludiam sobre o caráter “superior” de sua democracia, de sua cultura, de sua ética. Aristóteles critica a tortura real dos jovens, o que os torna aptos apenas a um lado do mando político, o uso da força desprovido da prudência e da reflexão. A ética efetiva deveria reunir tanto a formação física quanto a axiológica. Mas a truculência ateniense revelou toda a sua insanidade na guerra do Peloponeso, magnificamente descrita por Tucídides. Não por acaso, aquele texto foi traduzido por Thomas Hobbes, como exercício preliminar para se entender o conceito de guerra de todos contra todos, na qual o homem é o lobo do homem. Assim, temos um preâmbulo da questão ética que une a educação física e a guerra. Produzir bons cidadãos éticos enuncia-se em muitos sentidos. Um deles é o grego, cuja superioridade consiste em matar com violência e sem freios os “inferiores”, os “bárbaros”. A ciência, a técnica, a racionalidade estratégica, a coragem dos lobos, conduz a Grécia e os seus herdeiros, no Ocidente, ao colonialismo e ao imperialismo modernos.
As análises de Victor Davis Hanson, um defensor do Ocidente e atual apoiador de George W. Bush são lúcidas neste ponto: a educação física ocidental integra um sistema complexo e amplo de hábitos assassinos, voltados para a carnificina eficaz. Este é um desafio para os que pensam conduzir a educação física e mental dos nossos dias para horizontes menos letíferos e menos cruéis. E, sobretudo, para não conduzir jovens dos estádios diretamente aos campos de batalha, onde o treino físico é um requisito a mais no ato de destruir vidas “inferiores”. Passo agora a um problema interno das culturas ocidentais. A tendência a espacializar o tempo nasceu na Grécia. A racionalidade grega incluindo-se a condução da guerra para vencer o tempo, reduziu os fenômenos físicos e espirituais ao plano do espaço. Deste modo, tornou-se possível a medida e o controle dos atos humanos. Esta gênese da espacialização é solidária com a técnica e a ciência que transformaram os homens em objetos passíveis de mudança, correção, “educação”.
Os “bárbaros” orientais, para os gregos e para os europeus até os dias recentes, estavam presos ao mundo externo, não o dominavam. E o primeiro passo para dominar a natureza é dominá-la em nosso corpo, eis a lição grega. Este ideário etnocêntrico e preso ao controle dos corpos (e das mentes) foi enunciado de maneira perfeita por Hegel, o pensador da história e da tese da superioridade do Ocidente. “A História Universal”, diz ele, “vai do Oriente ao Ocidente. A Europa é o seu término. A Ásia é o principio… Na Ásia nasce o sol exterior, o físico, e se põe no Ocidente; mas em troca, é aqui que se levanta o sol interior da consciência de si, o qual expande para todos os lados um brilho mais intenso. A história universal é o domínio da violência desenfreada comque se manifesta a vontade natural; é a educação da vontade para o universal e para a liberdade subjetiva”. [6]
Na seqüência acima de frases, a história universal é a educação (Zucht) da vontade, temos a idéia da disciplina atlética e guerreira, mas com todos os elementos criticados por Aristóteles na sua análise da educação física unilateral. Notemos que na língua alemã utilizada por Hegel, Zucht relaciona-se com a repressão dos desejos e vontades dos indivíduos e grupos sociais. “Uma zuchthaus é uma casa de correção, uma cadeia. Zuchtigen implica em açoitar, castigar. O indivíduo bem-comportado, educado, honesto e casto é o portador de uma zuchtigkeit. Zuchtmeister pode ser tanto o preceptor quanto o carcereiro. Finalmente, o vocábulo adquire seu pleno sentido de apuro, de refinamento das potencialidades naturais, quando se lembra que zuchtvieh é gado de raça”. [7]
Passamos, na história recente do mundo ocidental, por experiências tremendas em termos éticos, para conseguir o delirante “apuro” da raça humana. Os esportes a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. Não irei me deter neste aspecto, ele mesmo legítimo herdeiro da Grécia e de sua visão pedagógica e bélica.[8] Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas, consubstanciadas em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) [9] para a vida no espaço de nosso planeta. As pesquisas médicas, de engenharia e de genética de nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo determinado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças mortais contra os supostos inferiores. Existe uma tentação de se reduzir o fato educacional no sentido grego e hegeliano, de “apuro” e de disciplina para a seleção dos “melhores”. Mas eu gostaria de argumentar, contra o receio que esta via sempre trará, sugerindo ser possível pensar caminhos diferentes, na ética e na própria concepção da ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Vejamos se consigo me expressar sobre este quesito. Uso, para isto, a análise de um pensador de nossos dias, em livro ainda recente. [10] Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica, tentando fugir do risco reducionista comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que, na trilha da separação entre disciplinas humanísticas e ciências da natureza, procura fugir do fato de que o mundo humano tem sentidos que podem ser compreendidos cientificamente. E para isto, é necessária que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (existe palavra com sentido, existe palavrório, diriam os filósofos clássicos). Os homens conseguem distinguir informações e rumores nos campos da natureza e no seu campo específico. Eles conseguem distinguir a si mesmos do ambiente natural em que se movem. E conseguem efetivar sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é a capacidade de constituir um sentido por um ato fundador. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido, que nunca são estabelecidos definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. A auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir-se do mundo externo.
Os animais parecem incapazes de constituir e reconstruir o sentido dos signos, eles movem-se num circulo automático de resposta aos estímulos. [11] Este hábito, um automatismo perene, permite responder aos estímulos de modo sempre mais perfeito, excluindo rumores, a massa de signos supérfluos. Esta éa base da técnica, partilhada pelos humanos. [12] Esta não pode ser vista como um elemento fundamental dos animais e dos homens. Nela não se encontram a performaticidade, a auto-referência, a virtualidade, três elementos básicos do ato ético livre. E sublinho esta última palavra.
Desde o pensamento grego, o universo e a política (com todos os seus conteúdos, das artes à educação e destas à guerra) foram entendidos com a metáfora da máquina, da reunião técnica. Assim, o mundo ocidental encontrou na idade moderna o símile do automatismo para explicitar a essência do ser humano: tool making animal. Produzimos os nossos corpos como instrumentos
de nossa mente e a sociedade como instrumento de nossos alvos, inventamos máquinas de guerra e paz. E nos habituamos a este horizonte, como se as máquinas tivessem sentido em si mesmas.
Com a globalização, percebemos que o sentido performático tende a desaparecer e somos presos do automatismo definido pela grande máquina, a técnica de transmitir informações - esta inclui a Internet, mas soma a mídia, o cinema, etc.- que nos retira as pretensões de sentido e de liberdade. No campo do aperfeiçoamento corporal, por exemplo, máquinas são oferecidas como
substitutas eficazes da ação volitiva, operando de maneira a dispensar os intentos humanos. De modo próximo, o Estado e o mercado não precisam, de seres voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política ampla são técnicas, nada mais. Estas técnicas determinam automatismos éticos que operam como se fossem instrumentos infalíveis que devem ser obedecidos imperativamente. [13] As guerras resultantes são vividas como espetáculos televisivos ou fílmicos, e também na Internet, pelos que não as sentem na epiderme, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam exterminados em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes” e mais dos eficazes na ação letífera. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a vida esportiva, o ensino, a guerra. Vejamos um exemplo.
Em trabalho publicado em 1983, portanto, com data superior a vinte anos, E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte, com resultados graves no plano do ensino ético. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. [14] O texto move-se no plano da espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”.
Os jogos de guerra surgem com a transformação do Estado em uma grande fábrica de controle político, como enunciou Max Weber. A essência estatal assumiu no século XX uma densidade inaudita na história política da humanidade, com as tentativas totalitárias. No mesmo século, no plano teórico, surge o dilema enunciado por Max Weber. Se a burocracia mecânica é o destino do mundo e a razão calculadora tomou posse da política e da economia, a política desaparece. O Estado transforma-se num maquinismo planificador que funciona como se fosse máquina, seguindo o paradigma platônico e hobbesiano.
O desalento diante deste obstáculo, evidente em Max Weber, foi acolhido pelos seus ouvintes de vários modos. G. Lukács viu na revolução proletária mundial, baseada na vontade das massas, o antídoto para o “poder dos escritórios”. No outro extremo, Carl Schmitt indicou na vontade do chefe o caminho da salvação para o ato político. O caminho do Estado soviético e nazista foi complexo e cheio de desvios, bem mais do que no sonho daqueles teóricos [15] A burocracia recrudesceu, mesmo após as aventuras totalitárias e o breve interregno antes da guerra fria, quando foi instituída a ONU.
Desde Platão, como recordei acima, a idéia de que o universo físico e humano constitui instrumentos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. Essa maneira de imaginar os entes políticos e sociais foi recusada de modo peremptório no pensamento conservador do século XIX e início do século XX. O Estado-máquina é um desafio importante: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasceu a nossa sensibilidade política. Confiantes na eficácia dessa polis dirigida pelos sábios (máquina de viver em comum é a melhor definição da República platônica), contra a instabilidade das assembléias cidadãs, os grandes nomes do pensamento não tiveram dúvidas. O impulso do cálculo e do automatismo que aniquila a política em nome da eficácia atravessou os séculos e se ofereceu para Weber - quando este último caracterizou o Estado e a sociedade burocráticos - na figura da fábrica onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica [16].
A mesma lógica que ajudou a construir o Estado máquina, com as burocracias civis e militares modernas, gerou no século 17 os jogos de guerra. Eles foram produzidos para ensinar aos jovens cadetes das Academias militares o modo mais certeiro de se mover no espaço em tempo rápido e destruir assim os inimigos. O cálculo e os instrumentos são o essencial, a natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir todas as vontades adversas. A ética da Grécia opera em sua plenitude nos jogos de guerra. E. Pozzi, depois de expor a origem histórica daqueles jogos, indica algo importante para os que desejam viver em democracias políticas.
Os pensamentos liberais clássicos, sobretudo os do século 19, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Ledo engano. A ordem militar reside no coração da sociedade industrial. Não é possível pensar a segunda, sem a primeira. Outra nota relevante de Pozzi: o que servia para a educação do oficial militar, nos séculos 17 e 18, tornou-se século 20 um fenômeno de massa, a forma emergente do jogo na sociedade ocidental. Em 1983 os dados já eram alarmantes. Entre 1978 e 1983 foram vendidos um milhão, quinhentos e setenta e três mil, seiscentos e vinte e sete jogos nos EUA, e quase dez milhões foram vendidos a 12 paises ocidentais. Com a Internet e o aperfeiçoamento técnico, os jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo guerreira, na qual as crianças e adultos aprendem as artes lógicas e imaginativas do aniquilamento. Longe de ser uma atividade apenas militar, a guerra determina, assim, os pensamentos e corpos de seres humanos aos bilhões. A mídia ajuda poderosamente nesta tarefa, bem como a indústria de Holywood cujos filmes exaltam o fato bélico e os heróis que matam de maneira fulminante os pretensos ou reais inimigos da “civilização cristã e ocidental”.
Vejamos a lógica dos war games. Neles, um cenário define o evento que determina o jogo, construído segundo um paradigma hipotético (se ocorre X, então Y deve acontecer). A sua estrutura reúne atores que na realidade movem forças e motivos e regras para o movimento dos atores. Além disso, existe o final, com objetivos primários e secundários e os meios adequados aos objetivos. Depois, temos o mapa, o espaço guerreiro totalmente cartesiano: geométrico e sem vida, absolutamente definível, sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico, ético, etc.). Trata-se do espaço condividido com as observações televisivas policiais, onde ocorrem os rastreamentos. Assim, some o espaço vivido com todas as experiências humanas que definem sentidos, livres ou apaixonados. Somem o medo, o pânico, a fuga, a deserção, o heroísmo, o sacrifício. Todos esses fatos perdem sentido e são “apenas interferências irracionais com as quais
não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum”. [17]
Como o espaço é apenas geometria, o tempo entra numa sucessão cronológica pura, onde contam os segundos, sendo o tempo uma somatória de átomos temporais, com a marca de serem, no entanto, parceláveis quase ao infinito. O tempo, logo, também abstrai tudo o que é irracional, vivido. Nele não existe a duração porque esta é, experimentada, biológica, psicológica,
eticamente, na indecisão e na reflexão. Sempre que penso neste ponto, recordo-me da época em que prestei o serviço militar. Na ordem unida, o sargento gritava alto para que não houvesse dúvidas: “rápido, ligeiro, para não pensar, para não perder tempo”. Temos, então, uma atividade educacional planetária que ensina as regras da razão técnica, cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue, excrementos, dor, paixões, vida. O filme relevante de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove, traz a sátira e a crítica desse imaginário que se desenvolveu sobremodo na Guerra Fria, mas que hoje é dirigido para a afirmação de uma potência hegemônica, acolitada pela maioria dos países ocidentais.
Chego à parte mais interessante, no meu entender, do trabalho publicado por Pozzi, o item “Esporte, guerra e festa degradada”. [18] Em primeiro lugar é preciso definir os nexos entre o esporte moderno e a revolução industrial. É comum unir-se o mercado e o esporte moderno. Este último seria a redução dos corpos à forma mercadoria, em consonância com a universalidade racional burguesa. Mas semelhante tese possui um empecilho: o esporte moderno foi inventado, exaltado e organizado não pela burguesia, mas pelos aristocratas, sobretudo a gentry latifundiária. Para esta última, a chamada landed gentry, o esporte era claramente a forma sublimada da guerra, a modalidade lúdica das virtudes guerreiras.
Retornemos à Grécia. Tanto na Inglaterra quanto, na Alemanha e na Itália dos séculos 19 e 20 consolidou-se o paradigma grego e latino como base das “nacionalidades superiores”. Assim, o ideal de educação física naqueles países une-se ao renascimento grego, com o classicismo, e com ideais de Estado imperialistas. Norbert Elias mostra o quanto a aristocracia européia resistiu noExército, na Marinha, sobretudo, à novas regras liberais e burguesas, com selvageria que muito ajudou na gênese do totalitarismo nazi-fascista. [19] O culto aos esportes era um lado da ética guerreira que apresentava os seus praticantes como “superiores” aos demais e não submetidos às leis vigentes para as pessoas comuns.
Esse movimento de idéias, onde se cultivou a preeminência dos campeões ocidentais dos esportes e da guerra, tem sido estudado, no seu relacionamento com a Grécia antiga e com os ideais guerreiros e de superioridade cultural e política. [20] Também não é por acaso que no mesmo período a tentativa de “apurar” a raça dos “superiores” e exterminar a dos inferiores teve o seu apogeu. [21] Pozzi apresenta uma síntese dos valores aristocráticos guerreiros e os mercadológicos burgueses. O belicismo dos aristocratas, por meio do esporte, ajudou a formar a própria Weltanschauung burguesa colonial ou imperial dos séculos 19 e 20. Cito o autor: “a guerra se coloca no centro da ordem burguesa, como constitutiva de sua visão de mundo e de construção da realidade (…) A sociedade militar produziu em parte a sociedade industrial, e uma arqueologia do saber militar deve reconstruir este papel decisivo e escondido”.
Termino essas considerações, perguntando se temos consciência, na sociedade atual e na política que nos é imposta, dos nexos pretéritos entre guerra, esporte, violência etnocêntrica. E também pergunto: temos idéia do quanto as formas de distração esportiva e de educação idem, diminuem as possibilidade performática dos entes humanos (na perspectiva trazida por De Carolis) o que segue a redução da auto-referência em prol dos espetáculos onde, como diz Theodor Adorno, a consciência já é dada como a priori insuperável ? Depois, se nos acautelamos o bastante face aos jogos de guerra, com a sua racionalidade cartesiana que transforma o ato mais primitivo do ser humano, o de matar, em puro cálculo desapaixonado. Depois, se prestamos atenção suficiente para os elos entre a indústria armamentista e a prática dos jogos aos milhões. E se observamos o esporte que chega às massas pela TV e a sua redução do jogo a regras idênticas do mercado e da guerra. Não seria surpresa, neste ponto, a persistência de torcidas guerreiras, na Inglaterra, mas também no Brasil, que chegam ao assassinato e truculências, tendo em vista que o seu único papel ativo, naqueles esportes como o futebol, limita-se à torcida. Deste modo, a essência guerreira presente no esporte é assumida de modo “selvagem”, mas perfeitamente lógico, pelas ditas torcidas organizadas com seus gritos de guerra e bastões idem. E finalmente, como desvincular o esporte e a educação para ele, da guerra? Como ensinar formas pacíficas de luta? Esta não seria uma fórmula que se autodestrói? Pensar e pesar perguntas assim pode, ser incômodo, mas necessário.
Notas
[1] H.I. Marrou : “Education and Rhetoric” in The Legacy of Greece (M.I. Finley Ed.), Oxford, 1981, p. 186. Cf. Branham, R.B. Unruly Eloquence. Lucian and the comedy of Traditions. London, Harvard, 1989, p. 87.
[2] Victor Davis Hanson: The Western Way of War. Infantry Battle in Classical Greece. Berkeley, University of California Press, 1989. E do mesmo autor Carnage and Culture. NY, Random House, 2001.
[3] Cf. Branham, op. cit. p. 87.
[4] Cf. Lucian: “Anacharsis, or athletics”, in Loeb Classical Library, Lucian, Volume IV, (Translated by A.M. Harmon, Harvard University Press, 1969.
[5] Cf. Aristóteles, Política (1338 b9). Uso a edição da Loeb Classical Library, Aristotle, Volume 21, (translated by H. Rackham), Harvard University Press, 1990, páginas 646-647.
[6] Lições sobre a Filosofia da História. Cito na tradução de J. Gaos, Madrid, Revista de Occidente Ed., 1953, T. I, páginas 210-211.
[7] Roberto Romano, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo, São Paulo, Ed. Unesp (2a edição), 1999, pp. 28-29.
[8] Cf. Edwin Black: A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. Tradução Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa Ed., 2003.
[9] Cf. Roberto Romano: “A igualdade, considerações críticas”, in Revista Brasileira de Direito Constitucional, número 2, Julho/Dezembro 2003, pp. 30-49.
[10] Cf. Massimo de Carolis, La vita nell´epoca della sua riproducibilità tecnica. Torino, Bollati Boringhieri, 2004.
[11] Todos esses aspectos do trabalho produzido por De Carolis são discutidos por Fabio Lelli, no site especializado Swif, do Laboratório de Epistemologia, Informática e Ciências Filosóficas da Universidade de Bari. Remeto toda a seguência dessas minhas considerações para a crítica de Lellis no número 4/5, ano VI, dezembro de 2003 a janeiro de 2005, do site oficial mencionado, cujo título é Sito Web Italiano per la Filosofia.
[12] Existem outras concepções do elemento técnico, como as avançadas por Andre-Leroi Gourhan, Elias Canetti, e outros analistas da vida humana em sociedade. Discuto estes autores em artigos espalhados nos livros que publiquei. Cf. entre outros, Roberto Romano: “Ciência e tecnologia no Brasil, questões de Estado” in O desafio do Islã e outros desafios. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004, páginas 245-266. E também Roberto Romano: “soberania, segredo, Estado democrático” in Política Externa, Vol.13 número 1, Julho/Agosto 2004, pp. 15-28.
[13] Esta problemática da política e da cultura enquanto técnicas, a crítica que semelhante concepção no século 20, conduziu, tanto na “esquerda” mundial, quanto na “direita” a situações trágicas e genocidas. Cf. o excelente texto de John P. McCormick: Carl Schmitt’s Critique of Liberalism Against Politics as Technology. Cambridge University Press1999
[14] Publicado pela revista La critica sociologica. Numero 67, outono de 1983, nas páginas 42-55.
[15] McCormick, op. cit. Cf. também Roberto Romano, “Reflexões sobre impostos e Raison d´État” in Revista de Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, 2004, pp. 75-96.
[16] “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage (1972, p. 825). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. No Estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É desse desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukács ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.
[17] E. Pozzi, op. cit. p. 47.
[18] Op.cit. p. 53 e seguintes.
[19] Elias, Norbert e Dunning, Eric. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford, Basil Blackwell, 1986. Elias, Norbert: Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. RJ, Zahar Ed., 1996.
[20] Cf. Luciano Canfora: Ideologie del Classicismo. Torino, Einaudi, 1980, um clássico no tema.
[21] Cf. o livro de Edwin Black, citado acima.
Depto. de Filosofia/Unicamp
Vivemos no tempo rápido e perdemos referências históricas, políticas, éticas, religiosas. Sob nossos olhos, também os temas acadêmicos sucedem-se em voragens cada vez mais tensas de análises e perspectivas. O sábio Montaigne, criador da transposição imagética do mundo financeiro para o campo da racionalidade escrita, recorda que o termo “pensar” tem o mesmo conteúdo de “pesar”. E com base neste símile, ele gerou a idéia de que a tarefa dos intelectuais era a de pesar as palavras na balança do juízo. Frases ou se gastam muito velozmente, e perdem sentido e peso, ou são adulteradas e nada valem.
Em vez de tratar, nesta exposição, dos “novos paradigmas éticos” e mover palavras grandiloqüentes, evocarei um tema estratégico do mundo antigo e atual, o que indica elos entre a educação física e o treino para a guerra, o traço comum entre esportes e morte nas batalhas. O tema, como é sabido, assume característica nuclear nas culturas antigas, as que deram nascimento à própria ética e política, tal como as conhecemos. Refiro-me, sobretudo à Grécia. Cito um clássico analista da educação grega: “Em nossos dias é a escola, as letras, que se associam automaticamente à palavra “educação”, para os gregos, era primeiro, e permaneceu por muito tempo, a palestra e o ginásio, onde a criança e o adolescente treinavam nos esportes”. [1] O que o grande analista “esqueceu” de mencionar é a violência guerreira unida aos exercícios e jogos pedagógicos. Torna-se preciso, hoje, quando o fato bélico mostra sua face múltipla (do terrorismo clandestino e bandido ao terror tradicional do Estado e de seu monopólio da força física), meditar um pouco sobre os elos entre educação, esportes, guerra. Como o tempo de que disponho é pequeno, indicarei alguns pontos a serem meditados quando nos preocupamos com a questão ética em nossos dias.
Iniciemos com a Grécia. Poder-se-ia dizer, com R.B. Branham, que o atletismo e a educação nele exigida tornou-se um ideal ético grego, sendo inclusive superior às artes marciais. Numa civilização como a que se tornou célebre por legar ao Ocidente a própria concepção de história, racionalidade, ciência, técnica e guerra, não é pequeno aquele enunciado.[2] Como disse o grego Melancomas, “na guerra o escopo é a coragem apenas, enquanto o esporte produz coragem, força física e autocontrole, simultaneamente”. Como a guerra, entretanto, a paixão pelos esportes e pela educação física possui críticos na própria Grécia. Tanto Xenófanes quanto Eurípides advertem contra a “tribo dos atletas”. Pergunta Eurípides: “que bem faz à sua terra um homem que vence corridas, lança discos, ou dá no adversário um soco certeiro? Lutarão contra o inimigo com os discos nas mãos? (…) um homem útil será o que recebe educação para a sobriedade e a justiça e pode
Os esportes, em escala amplíssima como a praticada nas terras helênicas, seria inclusive nocivo à saúde física e mental. O grande Galeno, médico nuclear da cultura grega, escreve que o modo de vida atlético é semelhante ao dos porcos, “mas com esta exceção, que os porcos não exercitam ou forçam a si mesmos a comer”. Para o doutor Galeno o atletismo não traz saúde física, beleza, ou poder aos seus praticantes, é inútil para a comunidade, nem é fonte de prazer.
Uma síntese dessas avaliações contraditórias da educação física e do atletismo, a encontramos no diálogo de Luciano, justamente dedicado aos esportes e ao ensino ético dos jovens atenienses. O debate se realiza entre Anacarsis, um semi-heleno (filho de estrangeiro e de grego) e Sólon, o grande instaurador das leis e da ética na Grécia. Anarcasis estranha os jogos atléticos e apresenta razões contra eles. A cada invectiva do “bárbaro”, Sólon responde em defesa da educação física como o primeiro passo (e fundamental) para a formação ética da cidadania. Ele assegura a Anacarsis que os esforços para melhorar os corpos - com toda a dureza que eles trazem, como mergulhar no pó e na lama vencendo as dificuldades naturais - ajuda a formar bons cidadãos e bons guerreiros. “Nós fazemos todos estes exercícios físicos como preparação para a luta com as armas”, diz Sólon com orgulho. Os corpos cobertos de óleo, para as lutas, são assim preparados para as batalhas, nas quais se exigem flexibilidade e rapidez, adquiridas na educação física.
Anarcarsis, na pena de Luciano, caricatura o argumento de Sólon, levando-o ao ridículo: “Muito bem, Solon, quando um inimigo invade sua terra, vocês untam seus corpos com óleo e jogam poeira sobre si mesmos, e seguem adiante os desafiando; eles, naturalmente, correm de vocês com medo de que a areia que está em vocês entre nas suas bocas ….”. [4] Um aspecto não risível no texto de Luciano é a exposição de um fato essencial na pedagogia grega dos esportes para a guerra: a sua violência “tigresca” como disse um dia Nietzsche ao se referir aos helenos. O cidadão é formado para ser: amável, simpático, educado para com os seus iguais. Como o cão, ele deve cuidar ternamente dos que pertencem ao clube político chamado polis. Mas deve aprender, nas lutas e no treino militar, a ser violento como os lobos. No próprio texto de Luciano sobre o atletismo, nota Branham, ressaltam termos anafóricos que retomam incansavelmente o caráter virulento da educação ética grega: a palavra agon, repetida incansavelmente, resume o caráter daquela cultura herdada por nós e analisada por Victor Davis Hanson, sobretudo em um livro recente cujo nome já diz tudo: Carnage and Culture. A “superioridade” grega encontra-se na sua força de combater os “bárbaros” com a violência mais racional, técnica, irrefreada. Pouco importa que Aristóteles e outros filósofos tenham criticado a educação física sem a formação axiológica como algo brutal (“A honra, não a ferocidade deve ser a primeira parte da educação; pois não é lobo nem algum outro animal selvagem que fará nobres aventuras, mas um bom homem. Os que conduzem os meninos a seguir exercícios árduos em demasia e não os treinam nas coisas necessárias na realidade os fazem vulgares, baixos”).[5]
O fato, diz Branham, é que a violência animalesca da sua cultura não era percebida pelos próprios educadores e políticos helênicos. Para eles, os bárbaros seriam “os outros”, enquanto a beleza, a bondade (o mesmo termo designa na Grécia o bem e o belo, kalós), teriam morada na terra grega. A sátira impiedosa de Luciano desvela aos leitores gregos o quanto se iludiam sobre o caráter “superior” de sua democracia, de sua cultura, de sua ética. Aristóteles critica a tortura real dos jovens, o que os torna aptos apenas a um lado do mando político, o uso da força desprovido da prudência e da reflexão. A ética efetiva deveria reunir tanto a formação física quanto a axiológica. Mas a truculência ateniense revelou toda a sua insanidade na guerra do Peloponeso, magnificamente descrita por Tucídides. Não por acaso, aquele texto foi traduzido por Thomas Hobbes, como exercício preliminar para se entender o conceito de guerra de todos contra todos, na qual o homem é o lobo do homem. Assim, temos um preâmbulo da questão ética que une a educação física e a guerra. Produzir bons cidadãos éticos enuncia-se em muitos sentidos. Um deles é o grego, cuja superioridade consiste em matar com violência e sem freios os “inferiores”, os “bárbaros”. A ciência, a técnica, a racionalidade estratégica, a coragem dos lobos, conduz a Grécia e os seus herdeiros, no Ocidente, ao colonialismo e ao imperialismo modernos.
As análises de Victor Davis Hanson, um defensor do Ocidente e atual apoiador de George W. Bush são lúcidas neste ponto: a educação física ocidental integra um sistema complexo e amplo de hábitos assassinos, voltados para a carnificina eficaz. Este é um desafio para os que pensam conduzir a educação física e mental dos nossos dias para horizontes menos letíferos e menos cruéis. E, sobretudo, para não conduzir jovens dos estádios diretamente aos campos de batalha, onde o treino físico é um requisito a mais no ato de destruir vidas “inferiores”. Passo agora a um problema interno das culturas ocidentais. A tendência a espacializar o tempo nasceu na Grécia. A racionalidade grega incluindo-se a condução da guerra para vencer o tempo, reduziu os fenômenos físicos e espirituais ao plano do espaço. Deste modo, tornou-se possível a medida e o controle dos atos humanos. Esta gênese da espacialização é solidária com a técnica e a ciência que transformaram os homens em objetos passíveis de mudança, correção, “educação”.
Os “bárbaros” orientais, para os gregos e para os europeus até os dias recentes, estavam presos ao mundo externo, não o dominavam. E o primeiro passo para dominar a natureza é dominá-la em nosso corpo, eis a lição grega. Este ideário etnocêntrico e preso ao controle dos corpos (e das mentes) foi enunciado de maneira perfeita por Hegel, o pensador da história e da tese da superioridade do Ocidente. “A História Universal”, diz ele, “vai do Oriente ao Ocidente. A Europa é o seu término. A Ásia é o principio… Na Ásia nasce o sol exterior, o físico, e se põe no Ocidente; mas em troca, é aqui que se levanta o sol interior da consciência de si, o qual expande para todos os lados um brilho mais intenso. A história universal é o domínio da violência desenfreada comque se manifesta a vontade natural; é a educação da vontade para o universal e para a liberdade subjetiva”. [6]
Na seqüência acima de frases, a história universal é a educação (Zucht) da vontade, temos a idéia da disciplina atlética e guerreira, mas com todos os elementos criticados por Aristóteles na sua análise da educação física unilateral. Notemos que na língua alemã utilizada por Hegel, Zucht relaciona-se com a repressão dos desejos e vontades dos indivíduos e grupos sociais. “Uma zuchthaus é uma casa de correção, uma cadeia. Zuchtigen implica em açoitar, castigar. O indivíduo bem-comportado, educado, honesto e casto é o portador de uma zuchtigkeit. Zuchtmeister pode ser tanto o preceptor quanto o carcereiro. Finalmente, o vocábulo adquire seu pleno sentido de apuro, de refinamento das potencialidades naturais, quando se lembra que zuchtvieh é gado de raça”. [7]
Passamos, na história recente do mundo ocidental, por experiências tremendas em termos éticos, para conseguir o delirante “apuro” da raça humana. Os esportes a educação física uniram-se, não raro, à tentativa de “melhorar a raça”. E os “inferiores” (os pobres habitantes das montanhas norte-americanas, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os asiáticos, os negros) sofreram uma guerra de extermínio cujo nome é eugenia. Não irei me deter neste aspecto, ele mesmo legítimo herdeiro da Grécia e de sua visão pedagógica e bélica.[8] Importa, do ponto de vista ético lembrar a tecnologia de controle de corpos e de almas, consubstanciadas em campanhas de extermínio dos “inaptos” (assim decretam os “superiores”) [9] para a vida no espaço de nosso planeta. As pesquisas médicas, de engenharia e de genética de nossos dias podem seguir (isto não é necessário, nem está definido na essência do saber científico) o rumo determinado pela antiga e renitente história do “aperfeiçoamento” dos pretensos superiores e das ameaças mortais contra os supostos inferiores. Existe uma tentação de se reduzir o fato educacional no sentido grego e hegeliano, de “apuro” e de disciplina para a seleção dos “melhores”. Mas eu gostaria de argumentar, contra o receio que esta via sempre trará, sugerindo ser possível pensar caminhos diferentes, na ética e na própria concepção da ciência. Esta última, mais as técnicas, não se destinam apenas à tarefa que frutificou na guerra ocidental ou nas lutas pela eugenia. Vejamos se consigo me expressar sobre este quesito. Uso, para isto, a análise de um pensador de nossos dias, em livro ainda recente. [10] Massimo De Carolis discute a engenharia cognitiva e biológica, tentando fugir do risco reducionista comum às análises favoráveis ou contrárias às ciências e técnicas. É redutor, no seu entender, todo exame que, na trilha da separação entre disciplinas humanísticas e ciências da natureza, procura fugir do fato de que o mundo humano tem sentidos que podem ser compreendidos cientificamente. E para isto, é necessária que a informação sobre a humanidade seja tão acessível quanto a informação sobre os demais campos da natureza. Existe, constata ele, informação e existe rumor (existe palavra com sentido, existe palavrório, diriam os filósofos clássicos). Os homens conseguem distinguir informações e rumores nos campos da natureza e no seu campo específico. Eles conseguem distinguir a si mesmos do ambiente natural em que se movem. E conseguem efetivar sentidos sobre a sua vida. Nesta faina, De Carolis distingue três aspectos essenciais: a performatividade, a virtualidade, a auto-referência. A performatividade é a capacidade de constituir um sentido por um ato fundador. A virtualidade é a marca dos eventos de sentido, que nunca são estabelecidos definitivamente, mas re-definidos sempre, em novos nexos entre signo e rumor. A auto-referência é a força de representar a si mesmo e distinguir-se do mundo externo.
Os animais parecem incapazes de constituir e reconstruir o sentido dos signos, eles movem-se num circulo automático de resposta aos estímulos. [11] Este hábito, um automatismo perene, permite responder aos estímulos de modo sempre mais perfeito, excluindo rumores, a massa de signos supérfluos. Esta éa base da técnica, partilhada pelos humanos. [12] Esta não pode ser vista como um elemento fundamental dos animais e dos homens. Nela não se encontram a performaticidade, a auto-referência, a virtualidade, três elementos básicos do ato ético livre. E sublinho esta última palavra.
Desde o pensamento grego, o universo e a política (com todos os seus conteúdos, das artes à educação e destas à guerra) foram entendidos com a metáfora da máquina, da reunião técnica. Assim, o mundo ocidental encontrou na idade moderna o símile do automatismo para explicitar a essência do ser humano: tool making animal. Produzimos os nossos corpos como instrumentos
de nossa mente e a sociedade como instrumento de nossos alvos, inventamos máquinas de guerra e paz. E nos habituamos a este horizonte, como se as máquinas tivessem sentido em si mesmas.
Com a globalização, percebemos que o sentido performático tende a desaparecer e somos presos do automatismo definido pela grande máquina, a técnica de transmitir informações - esta inclui a Internet, mas soma a mídia, o cinema, etc.- que nos retira as pretensões de sentido e de liberdade. No campo do aperfeiçoamento corporal, por exemplo, máquinas são oferecidas como
substitutas eficazes da ação volitiva, operando de maneira a dispensar os intentos humanos. De modo próximo, o Estado e o mercado não precisam, de seres voluntariosos que decidem este ou aquele rumo coletivo. A política econômica e a política ampla são técnicas, nada mais. Estas técnicas determinam automatismos éticos que operam como se fossem instrumentos infalíveis que devem ser obedecidos imperativamente. [13] As guerras resultantes são vividas como espetáculos televisivos ou fílmicos, e também na Internet, pelos que não as sentem na epiderme, pelo menos nos seus primeiros instantes. O treino para o automatismo conduz às mesmas atitudes dos antigos gregos diante dos outros povos e culturas, vistos como estranhos, perigosos e inferiores. É “natural” que eles sejam exterminados em batalhas “científicas”, com bombas “inteligentes” e mais dos eficazes na ação letífera. Mas um traço pouco discutido, neste âmbito, é o nexo entre a vida esportiva, o ensino, a guerra. Vejamos um exemplo.
Em trabalho publicado em 1983, portanto, com data superior a vinte anos, E. Pozzi analisa a tendência ao controle maquinal das atividades lúdicas e do esporte, com resultados graves no plano do ensino ético. Refiro-me ao artigo intitulado “Giochi di guerra e tempi di pace”. [14] O texto move-se no plano da espacialização do tempo cujos exemplos mais relevantes, no mundo contemporâneo, são os jogos de guerra e o esporte. As duas formas de diversão expõem formas da consciência ética automatizada e prestes a ser movida no interesse do extermínio dos “inferiores”.
Os jogos de guerra surgem com a transformação do Estado em uma grande fábrica de controle político, como enunciou Max Weber. A essência estatal assumiu no século XX uma densidade inaudita na história política da humanidade, com as tentativas totalitárias. No mesmo século, no plano teórico, surge o dilema enunciado por Max Weber. Se a burocracia mecânica é o destino do mundo e a razão calculadora tomou posse da política e da economia, a política desaparece. O Estado transforma-se num maquinismo planificador que funciona como se fosse máquina, seguindo o paradigma platônico e hobbesiano.
O desalento diante deste obstáculo, evidente em Max Weber, foi acolhido pelos seus ouvintes de vários modos. G. Lukács viu na revolução proletária mundial, baseada na vontade das massas, o antídoto para o “poder dos escritórios”. No outro extremo, Carl Schmitt indicou na vontade do chefe o caminho da salvação para o ato político. O caminho do Estado soviético e nazista foi complexo e cheio de desvios, bem mais do que no sonho daqueles teóricos [15] A burocracia recrudesceu, mesmo após as aventuras totalitárias e o breve interregno antes da guerra fria, quando foi instituída a ONU.
Desde Platão, como recordei acima, a idéia de que o universo físico e humano constitui instrumentos produzidos com arte e técnica, os quais devem ser dirigidos por sábios competentes, habita as mais importantes teorias políticas. Basta que se pense em Thomas Hobbes. Essa maneira de imaginar os entes políticos e sociais foi recusada de modo peremptório no pensamento conservador do século XIX e início do século XX. O Estado-máquina é um desafio importante: não por acaso Platão o ideou contra a democracia ateniense, lugar onde nasceu a nossa sensibilidade política. Confiantes na eficácia dessa polis dirigida pelos sábios (máquina de viver em comum é a melhor definição da República platônica), contra a instabilidade das assembléias cidadãs, os grandes nomes do pensamento não tiveram dúvidas. O impulso do cálculo e do automatismo que aniquila a política em nome da eficácia atravessou os séculos e se ofereceu para Weber - quando este último caracterizou o Estado e a sociedade burocráticos - na figura da fábrica onde todas as conexões são artificiais e mecânicas. A essência burocrática seria o resultado lógico dos séculos de razão mecânica [16].
A mesma lógica que ajudou a construir o Estado máquina, com as burocracias civis e militares modernas, gerou no século 17 os jogos de guerra. Eles foram produzidos para ensinar aos jovens cadetes das Academias militares o modo mais certeiro de se mover no espaço em tempo rápido e destruir assim os inimigos. O cálculo e os instrumentos são o essencial, a natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir todas as vontades adversas. A ética da Grécia opera em sua plenitude nos jogos de guerra. E. Pozzi, depois de expor a origem histórica daqueles jogos, indica algo importante para os que desejam viver em democracias políticas.
Os pensamentos liberais clássicos, sobretudo os do século 19, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Ledo engano. A ordem militar reside no coração da sociedade industrial. Não é possível pensar a segunda, sem a primeira. Outra nota relevante de Pozzi: o que servia para a educação do oficial militar, nos séculos 17 e 18, tornou-se século 20 um fenômeno de massa, a forma emergente do jogo na sociedade ocidental. Em 1983 os dados já eram alarmantes. Entre 1978 e 1983 foram vendidos um milhão, quinhentos e setenta e três mil, seiscentos e vinte e sete jogos nos EUA, e quase dez milhões foram vendidos a 12 paises ocidentais. Com a Internet e o aperfeiçoamento técnico, os jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo guerreira, na qual as crianças e adultos aprendem as artes lógicas e imaginativas do aniquilamento. Longe de ser uma atividade apenas militar, a guerra determina, assim, os pensamentos e corpos de seres humanos aos bilhões. A mídia ajuda poderosamente nesta tarefa, bem como a indústria de Holywood cujos filmes exaltam o fato bélico e os heróis que matam de maneira fulminante os pretensos ou reais inimigos da “civilização cristã e ocidental”.
Vejamos a lógica dos war games. Neles, um cenário define o evento que determina o jogo, construído segundo um paradigma hipotético (se ocorre X, então Y deve acontecer). A sua estrutura reúne atores que na realidade movem forças e motivos e regras para o movimento dos atores. Além disso, existe o final, com objetivos primários e secundários e os meios adequados aos objetivos. Depois, temos o mapa, o espaço guerreiro totalmente cartesiano: geométrico e sem vida, absolutamente definível, sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico, ético, etc.). Trata-se do espaço condividido com as observações televisivas policiais, onde ocorrem os rastreamentos. Assim, some o espaço vivido com todas as experiências humanas que definem sentidos, livres ou apaixonados. Somem o medo, o pânico, a fuga, a deserção, o heroísmo, o sacrifício. Todos esses fatos perdem sentido e são “apenas interferências irracionais com as quais
não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum”. [17]
Como o espaço é apenas geometria, o tempo entra numa sucessão cronológica pura, onde contam os segundos, sendo o tempo uma somatória de átomos temporais, com a marca de serem, no entanto, parceláveis quase ao infinito. O tempo, logo, também abstrai tudo o que é irracional, vivido. Nele não existe a duração porque esta é, experimentada, biológica, psicológica,
eticamente, na indecisão e na reflexão. Sempre que penso neste ponto, recordo-me da época em que prestei o serviço militar. Na ordem unida, o sargento gritava alto para que não houvesse dúvidas: “rápido, ligeiro, para não pensar, para não perder tempo”. Temos, então, uma atividade educacional planetária que ensina as regras da razão técnica, cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue, excrementos, dor, paixões, vida. O filme relevante de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove, traz a sátira e a crítica desse imaginário que se desenvolveu sobremodo na Guerra Fria, mas que hoje é dirigido para a afirmação de uma potência hegemônica, acolitada pela maioria dos países ocidentais.
Chego à parte mais interessante, no meu entender, do trabalho publicado por Pozzi, o item “Esporte, guerra e festa degradada”. [18] Em primeiro lugar é preciso definir os nexos entre o esporte moderno e a revolução industrial. É comum unir-se o mercado e o esporte moderno. Este último seria a redução dos corpos à forma mercadoria, em consonância com a universalidade racional burguesa. Mas semelhante tese possui um empecilho: o esporte moderno foi inventado, exaltado e organizado não pela burguesia, mas pelos aristocratas, sobretudo a gentry latifundiária. Para esta última, a chamada landed gentry, o esporte era claramente a forma sublimada da guerra, a modalidade lúdica das virtudes guerreiras.
Retornemos à Grécia. Tanto na Inglaterra quanto, na Alemanha e na Itália dos séculos 19 e 20 consolidou-se o paradigma grego e latino como base das “nacionalidades superiores”. Assim, o ideal de educação física naqueles países une-se ao renascimento grego, com o classicismo, e com ideais de Estado imperialistas. Norbert Elias mostra o quanto a aristocracia européia resistiu noExército, na Marinha, sobretudo, à novas regras liberais e burguesas, com selvageria que muito ajudou na gênese do totalitarismo nazi-fascista. [19] O culto aos esportes era um lado da ética guerreira que apresentava os seus praticantes como “superiores” aos demais e não submetidos às leis vigentes para as pessoas comuns.
Esse movimento de idéias, onde se cultivou a preeminência dos campeões ocidentais dos esportes e da guerra, tem sido estudado, no seu relacionamento com a Grécia antiga e com os ideais guerreiros e de superioridade cultural e política. [20] Também não é por acaso que no mesmo período a tentativa de “apurar” a raça dos “superiores” e exterminar a dos inferiores teve o seu apogeu. [21] Pozzi apresenta uma síntese dos valores aristocráticos guerreiros e os mercadológicos burgueses. O belicismo dos aristocratas, por meio do esporte, ajudou a formar a própria Weltanschauung burguesa colonial ou imperial dos séculos 19 e 20. Cito o autor: “a guerra se coloca no centro da ordem burguesa, como constitutiva de sua visão de mundo e de construção da realidade (…) A sociedade militar produziu em parte a sociedade industrial, e uma arqueologia do saber militar deve reconstruir este papel decisivo e escondido”.
Termino essas considerações, perguntando se temos consciência, na sociedade atual e na política que nos é imposta, dos nexos pretéritos entre guerra, esporte, violência etnocêntrica. E também pergunto: temos idéia do quanto as formas de distração esportiva e de educação idem, diminuem as possibilidade performática dos entes humanos (na perspectiva trazida por De Carolis) o que segue a redução da auto-referência em prol dos espetáculos onde, como diz Theodor Adorno, a consciência já é dada como a priori insuperável ? Depois, se nos acautelamos o bastante face aos jogos de guerra, com a sua racionalidade cartesiana que transforma o ato mais primitivo do ser humano, o de matar, em puro cálculo desapaixonado. Depois, se prestamos atenção suficiente para os elos entre a indústria armamentista e a prática dos jogos aos milhões. E se observamos o esporte que chega às massas pela TV e a sua redução do jogo a regras idênticas do mercado e da guerra. Não seria surpresa, neste ponto, a persistência de torcidas guerreiras, na Inglaterra, mas também no Brasil, que chegam ao assassinato e truculências, tendo em vista que o seu único papel ativo, naqueles esportes como o futebol, limita-se à torcida. Deste modo, a essência guerreira presente no esporte é assumida de modo “selvagem”, mas perfeitamente lógico, pelas ditas torcidas organizadas com seus gritos de guerra e bastões idem. E finalmente, como desvincular o esporte e a educação para ele, da guerra? Como ensinar formas pacíficas de luta? Esta não seria uma fórmula que se autodestrói? Pensar e pesar perguntas assim pode, ser incômodo, mas necessário.
Notas
[1] H.I. Marrou : “Education and Rhetoric” in The Legacy of Greece (M.I. Finley Ed.), Oxford, 1981, p. 186. Cf. Branham, R.B. Unruly Eloquence. Lucian and the comedy of Traditions. London, Harvard, 1989, p. 87.
[2] Victor Davis Hanson: The Western Way of War. Infantry Battle in Classical Greece. Berkeley, University of California Press, 1989. E do mesmo autor Carnage and Culture. NY, Random House, 2001.
[3] Cf. Branham, op. cit. p. 87.
[4] Cf. Lucian: “Anacharsis, or athletics”, in Loeb Classical Library, Lucian, Volume IV, (Translated by A.M. Harmon, Harvard University Press, 1969.
[5] Cf. Aristóteles, Política (1338 b9). Uso a edição da Loeb Classical Library, Aristotle, Volume 21, (translated by H. Rackham), Harvard University Press, 1990, páginas 646-647.
[6] Lições sobre a Filosofia da História. Cito na tradução de J. Gaos, Madrid, Revista de Occidente Ed., 1953, T. I, páginas 210-211.
[7] Roberto Romano, Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo, São Paulo, Ed. Unesp (2a edição), 1999, pp. 28-29.
[8] Cf. Edwin Black: A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. Tradução Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa Ed., 2003.
[9] Cf. Roberto Romano: “A igualdade, considerações críticas”, in Revista Brasileira de Direito Constitucional, número 2, Julho/Dezembro 2003, pp. 30-49.
[10] Cf. Massimo de Carolis, La vita nell´epoca della sua riproducibilità tecnica. Torino, Bollati Boringhieri, 2004.
[11] Todos esses aspectos do trabalho produzido por De Carolis são discutidos por Fabio Lelli, no site especializado Swif, do Laboratório de Epistemologia, Informática e Ciências Filosóficas da Universidade de Bari. Remeto toda a seguência dessas minhas considerações para a crítica de Lellis no número 4/5, ano VI, dezembro de 2003 a janeiro de 2005, do site oficial mencionado, cujo título é Sito Web Italiano per la Filosofia.
[12] Existem outras concepções do elemento técnico, como as avançadas por Andre-Leroi Gourhan, Elias Canetti, e outros analistas da vida humana em sociedade. Discuto estes autores em artigos espalhados nos livros que publiquei. Cf. entre outros, Roberto Romano: “Ciência e tecnologia no Brasil, questões de Estado” in O desafio do Islã e outros desafios. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004, páginas 245-266. E também Roberto Romano: “soberania, segredo, Estado democrático” in Política Externa, Vol.13 número 1, Julho/Agosto 2004, pp. 15-28.
[13] Esta problemática da política e da cultura enquanto técnicas, a crítica que semelhante concepção no século 20, conduziu, tanto na “esquerda” mundial, quanto na “direita” a situações trágicas e genocidas. Cf. o excelente texto de John P. McCormick: Carl Schmitt’s Critique of Liberalism Against Politics as Technology. Cambridge University Press1999
[14] Publicado pela revista La critica sociologica. Numero 67, outono de 1983, nas páginas 42-55.
[15] McCormick, op. cit. Cf. também Roberto Romano, “Reflexões sobre impostos e Raison d´État” in Revista de Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, 2004, pp. 75-96.
[16] “Do ponto de vista da sociologia, o Estado moderno é uma ‘empresa’ com o mesmo título de uma fábrica. Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E também deste modo se acha condicionada de maneira homogênea a relação do mando (Herrschafttsverhältnis) no interior da empresa”. Cf. Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidiert Auflage (1972, p. 825). A separação (Trennung) entre os meios de administração e o seu operador, tanto na empresa quanto no Estado, define a burocracia que opera sine ira et studio, maquinal e hierarquicamente. No Estado, o maquinismo segue a lógica do cálculo, sem que a sua marcha possa receber modificações políticas. É desse desencanto que Weber partilha e legou aos seus herdeiros de “esquerda” ou “direita”, como Lukács ou Schmitt. Este último, com enorme importância em autores estratégicos do chamado “neo” liberalismo, como F. Hayeck.
[17] E. Pozzi, op. cit. p. 47.
[18] Op.cit. p. 53 e seguintes.
[19] Elias, Norbert e Dunning, Eric. Quest for Excitement: Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford, Basil Blackwell, 1986. Elias, Norbert: Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. RJ, Zahar Ed., 1996.
[20] Cf. Luciano Canfora: Ideologie del Classicismo. Torino, Einaudi, 1980, um clássico no tema.
[21] Cf. o livro de Edwin Black, citado acima.