Entrevista // Ernani Carvalho
"TSE tem sido elemento de moralização"
A campanha eleitoral de 2010 deverá ser fortemente marcada por ações judiciais, um reflexo do processo de judicialização da política no Brasil. Espera-se que a oposição use a Justiça como parte importante de sua estratégia para voltar ao poder. Será, em maior escala, uma repetição do que ocorreu nas eleições municipais do Recife no ano passado, quando o candidato governista e atual prefeito, João da Costa (PT), foi alvo de várias ações que objetivavam cassar o registro de sua candidatura.
A judicialização, interferência do poder Judiciário em questões que deveriam ser tratadas nos âmbitos Executivo e Legislativo, é um fenômeno que teve início, no país, a partir da promulgação da Constituição de 1988. Tornou-se mais evidente no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e continua a ganhar corpo na administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Atinge, aos poucos, a vida pública nacional. Os exemplos podem ser identificados em várias situações cotidianas, como a determinação de um tribunal de compra de um medicamento não disponível na rede pública para um paciente - uma intervenção da Justiça no poder Executivo.
Outro exemplo foi o julgamento do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci no Supremo Tribunal Federal (STF). Desse posicionamento, dependiam algumas decisões sobre a disputa eleitoral de 2008. Ou ainda, o fato em que a Justiça "legislou" sobre a regulamentação de greve dos servidores públicos no ano passado, atribuição original do Congresso Nacional. O processo de judicialização é um ingrediente novo no sistema político brasileiro e que ocupa cada vez mais espaço nas análises sobre o país. As raízes da judicialização da política no Brasil e qual o impacto desse fenômeno são tema desta entrevista com o cientista político Ernani Carvalho, coordenador do curso de graduação de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, especialista no tema.
Como se deu o início do processo de judicialização da política?
É um fenômeno global recente, movimento que tem origem com a formação do estado norte-americano no século XVIII, mas passou a ser mais forte em meados do século passado, depois da segunda guerra mundial. No Brasil, só veio com a Constituição de 88 e está acontecendo mais porque nós não tínhamos democracia. Só faz ter sentido pensar em tribunais fortes em países democráticos. Onde o poder Executivo é forte, como na China e na Venezuela, isso não existe.
A Constituição, então, é um marco da
judicialização da política brasileira?
Após 1988, verificou-se a expansão de ações de âmbito estritamente político no Judiciário, boa parte instrume ntalizada pela oposição contra o governo. É o que se convencionou chamar judicialização da política, a transferência de poder dos setores tradicionais da política - do Executivo e do Legislativo - para o Judiciário. E não é a judicialização apenas da política, mas da forma de vida em geral. É o caso de políticaspúblicas para a Saúde, quando juízes decidem sobre a compra de medicamentos. Isso gera um descompasso, porque eles destinam recursos que o governo havia alocado para outra área, interferindo no processo de gestão do governante.
Há um agravamento desse processo nos últimos anos, no governo Lula?
A ação efetiva da judicialização só aconteceu no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A atuação do PT, enquanto oposição, foi altamente judicializada. Boa parte das ações de inconstitucionalidade impetradas naquele governo advinha de partidos da oposição, principalmente do PT. Quan do este foi para o governo, inverteu-se a autoria das ações, mas não é tão forte quanto antes. O PT instrumentalizou mais ações do que o PSDB e o DEM, da atual oposição. Provavelmente, porque quem foi governo tem mais sensibilidade para determinadas coisas do que quem nunca foi. O PSDB e o DEM evitaram judicializar alguns aspectos políticos.
Podemos considerar que esse fenômeno pode trazer prejuízos ao nosso sistemapolítico?
O que a gente percebe é que surge um novo elemento na dinâmica da política ocidental: o poder Judiciário forte, interferindo quando é solicitado, mas não significa que intervirá sempre.
A judicialização não promove uma substituição dos papéis entre os poderes? O Legislativo, por exemplo, não perde força na fiscalização do Executivo, que é uma de suas atribuições?
Não. Na verdade, o Legislativo ganha um adicional para a fiscalização. O proble ma é que quem exerce a fiscalização, na prática, é a oposição. A ação da oposição é nível parlamentar. Quando não consegue sucesso, a estatura do Judiciário permite que ela, se realmente o Judiciário aceitar a ação, bloqueie ou traga obstáculos para a ação governamental, que é o objetivo da oposição.
As instâncias superiores do poder Judiciário, como ministros e desembargadores, são indicadas por representantes do poder Executivo, por presidentes e governadores respectivamente. São indicações políticas, como fica essa relação com a judicialização da política?
Existem estudos, nos Estados Unidos, que tentam vincular as posições político-partidárias dos juízes na Suprema Corte de acordo com republicanos e democratas. Isso funciona muito bem lá, porque o sistema partidário norte-americano tem 200 anos e é mais fácil observar o posicionamento da Suprema Corte quando o sistema partidário é bem enraizado. Não é o nosso caso. No governo Lula, já foram indicados oito juízes no STF e não há linearidade de posicionamento. Ele fez uma opção bastante diversificada, os juízes não foram indicados com base no posicionamento ideológico.
É um avanço do governo Lula?
O governo distribuiu as indicações como se estivesse distribuindo cargos num presidencialismo de coalizão. Ou seja, nomeou ministros atendendo as bases e elas não corroboram necessariamente da perspectiva ideológica do presidente. Para mim, do ponto de vista político, foi um erro grave e ele (Lula) agora está pagando caro. Do ponto de vista do estado, há quem diga que acertou, porque vai equilibrar o Judiciário.O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso indicou pessoas muito bem afinadas com a sua posição político ideológica. Ou seja, a indicação de ministros da Suprema Corte também faz parte da tática de governo.
Uma das con sequências da transferência de responsabilidade foi a politização do Judiciário?
Os juízes começaram a perceber que de sua ação pode ser decidida várias coisas importantes da política brasileira. Isso leva a um certo protagonismo de alguns presidentes de tribunais e traz inovações ao Judiciário. Uma lei de 2008 aprovou a realização de audiências públicas, algo muito específico do poder Legislativo. Na verdade, o Judiciário começa a se comportar como terceira casa legislativa, obviamente sem as prerrogativas de uma casa legislativa ordinária. Outra coisa importante de observar é que nem sempre a ação do Judiciário é mal vista pelos poderes Executivo e Legislativo. Muitas questões impopulares não são resolvidas por eles intencionalmente, como se eles fizessem um by pass para o Judiciário. Foi oque aconteceu com a regulamentação da greve dos servidores federais.
As campanhas eleitorais, cada vez mais, são palco de disputas jurídicas, um reflexo da judicialização da política. O que podemos esperar em 2010?
Não gosto de fazer adivinhação. Uma coisa é a ação judicial na arena parlamentar e outra é uma disputa na arena eleitoral, onde o Judiciário tem sido mais ativo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já legislou sobre diversas questões polêmicas, como a redução do número de vereadores, a cassação de governadores. Os atores políticos não são bobos e percebem que esse Tribunal tem ampliado o leque de suas atribuições. Ao perceber isso, vão jogar com essa estratégia. O Tribunal Superior Eleitoral passa ser uma peça importante no tabuleiro eleitoral. Não se espante se, antes das eleições, houver candidaturas cassadas por violação das regras eleitorais, algo que nunca aconteceu. O Judiciário como partícipe desse processo decisório é cada vez mais uma coisa brasileira e tem a ver com o elevado grau depoder do Judiciário. Se é bom ou ruim, não sei. Por enquanto, o TSE tem sido um elemento de moralização.
Mas não causa estranheza ao eleitor votar em um candidato, ele sair vitorioso e depois ser cassado?
Esse é o ponto. Por isso, já há uma discussão sobre se deve existir outra eleição ao invés de o segundo colocado assumir o mandato. O que é um ingrediente novo na política brasileira. O Congresso vai ter que legislar sobre isso ou então o Judiciário vai legislar novamente.
A judicialização da campanha eleitoral é um reflexo de discurso oposicionista fragilizado?
A oposição descobriu, na democracia, o Judiciário como um elemento crível de fazer valer seu interesse, de obstacular o governo ou publicizar para criar custos ao governo, gerando capital político para ela própria. Isso não é fraqueza da oposição até porque o desenho institucional político brasileiro - presidencialismo de coalizã o, com o executivo muito forte - torna difícil se contrapor ao poder. O Judiciário é um aliado para fazer esse combate. A oposição já obteve vitórias no Maranhão (cassação de Jackson Lago - PDT) e na Paraíba (cassação de Cássio Cunha Lima - PSDB). Imagine, chegar ao governo depois de perder a eleição!
A campanha eleitoral de 2010 deverá ser fortemente marcada por ações judiciais, um reflexo do processo de judicialização da política no Brasil. Espera-se que a oposição use a Justiça como parte importante de sua estratégia para voltar ao poder. Será, em maior escala, uma repetição do que ocorreu nas eleições municipais do Recife no ano passado, quando o candidato governista e atual prefeito, João da Costa (PT), foi alvo de várias ações que objetivavam cassar o registro de sua candidatura.
A judicialização, interferência do poder Judiciário em questões que deveriam ser tratadas nos âmbitos Executivo e Legislativo, é um fenômeno que teve início, no país, a partir da promulgação da Constituição de 1988. Tornou-se mais evidente no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e continua a ganhar corpo na administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Atinge, aos poucos, a vida pública nacional. Os exemplos podem ser identificados em várias situações cotidianas, como a determinação de um tribunal de compra de um medicamento não disponível na rede pública para um paciente - uma intervenção da Justiça no poder Executivo.
Outro exemplo foi o julgamento do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci no Supremo Tribunal Federal (STF). Desse posicionamento, dependiam algumas decisões sobre a disputa eleitoral de 2008. Ou ainda, o fato em que a Justiça "legislou" sobre a regulamentação de greve dos servidores públicos no ano passado, atribuição original do Congresso Nacional. O processo de judicialização é um ingrediente novo no sistema político brasileiro e que ocupa cada vez mais espaço nas análises sobre o país. As raízes da judicialização da política no Brasil e qual o impacto desse fenômeno são tema desta entrevista com o cientista político Ernani Carvalho, coordenador do curso de graduação de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, especialista no tema.
Como se deu o início do processo de judicialização da política?
É um fenômeno global recente, movimento que tem origem com a formação do estado norte-americano no século XVIII, mas passou a ser mais forte em meados do século passado, depois da segunda guerra mundial. No Brasil, só veio com a Constituição de 88 e está acontecendo mais porque nós não tínhamos democracia. Só faz ter sentido pensar em tribunais fortes em países democráticos. Onde o poder Executivo é forte, como na China e na Venezuela, isso não existe.
A Constituição, então, é um marco da
judicialização da política brasileira?
Após 1988, verificou-se a expansão de ações de âmbito estritamente político no Judiciário, boa parte instrume ntalizada pela oposição contra o governo. É o que se convencionou chamar judicialização da política, a transferência de poder dos setores tradicionais da política - do Executivo e do Legislativo - para o Judiciário. E não é a judicialização apenas da política, mas da forma de vida em geral. É o caso de políticaspúblicas para a Saúde, quando juízes decidem sobre a compra de medicamentos. Isso gera um descompasso, porque eles destinam recursos que o governo havia alocado para outra área, interferindo no processo de gestão do governante.
Há um agravamento desse processo nos últimos anos, no governo Lula?
A ação efetiva da judicialização só aconteceu no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A atuação do PT, enquanto oposição, foi altamente judicializada. Boa parte das ações de inconstitucionalidade impetradas naquele governo advinha de partidos da oposição, principalmente do PT. Quan do este foi para o governo, inverteu-se a autoria das ações, mas não é tão forte quanto antes. O PT instrumentalizou mais ações do que o PSDB e o DEM, da atual oposição. Provavelmente, porque quem foi governo tem mais sensibilidade para determinadas coisas do que quem nunca foi. O PSDB e o DEM evitaram judicializar alguns aspectos políticos.
Podemos considerar que esse fenômeno pode trazer prejuízos ao nosso sistemapolítico?
O que a gente percebe é que surge um novo elemento na dinâmica da política ocidental: o poder Judiciário forte, interferindo quando é solicitado, mas não significa que intervirá sempre.
A judicialização não promove uma substituição dos papéis entre os poderes? O Legislativo, por exemplo, não perde força na fiscalização do Executivo, que é uma de suas atribuições?
Não. Na verdade, o Legislativo ganha um adicional para a fiscalização. O proble ma é que quem exerce a fiscalização, na prática, é a oposição. A ação da oposição é nível parlamentar. Quando não consegue sucesso, a estatura do Judiciário permite que ela, se realmente o Judiciário aceitar a ação, bloqueie ou traga obstáculos para a ação governamental, que é o objetivo da oposição.
As instâncias superiores do poder Judiciário, como ministros e desembargadores, são indicadas por representantes do poder Executivo, por presidentes e governadores respectivamente. São indicações políticas, como fica essa relação com a judicialização da política?
Existem estudos, nos Estados Unidos, que tentam vincular as posições político-partidárias dos juízes na Suprema Corte de acordo com republicanos e democratas. Isso funciona muito bem lá, porque o sistema partidário norte-americano tem 200 anos e é mais fácil observar o posicionamento da Suprema Corte quando o sistema partidário é bem enraizado. Não é o nosso caso. No governo Lula, já foram indicados oito juízes no STF e não há linearidade de posicionamento. Ele fez uma opção bastante diversificada, os juízes não foram indicados com base no posicionamento ideológico.
É um avanço do governo Lula?
O governo distribuiu as indicações como se estivesse distribuindo cargos num presidencialismo de coalizão. Ou seja, nomeou ministros atendendo as bases e elas não corroboram necessariamente da perspectiva ideológica do presidente. Para mim, do ponto de vista político, foi um erro grave e ele (Lula) agora está pagando caro. Do ponto de vista do estado, há quem diga que acertou, porque vai equilibrar o Judiciário.O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso indicou pessoas muito bem afinadas com a sua posição político ideológica. Ou seja, a indicação de ministros da Suprema Corte também faz parte da tática de governo.
Uma das con sequências da transferência de responsabilidade foi a politização do Judiciário?
Os juízes começaram a perceber que de sua ação pode ser decidida várias coisas importantes da política brasileira. Isso leva a um certo protagonismo de alguns presidentes de tribunais e traz inovações ao Judiciário. Uma lei de 2008 aprovou a realização de audiências públicas, algo muito específico do poder Legislativo. Na verdade, o Judiciário começa a se comportar como terceira casa legislativa, obviamente sem as prerrogativas de uma casa legislativa ordinária. Outra coisa importante de observar é que nem sempre a ação do Judiciário é mal vista pelos poderes Executivo e Legislativo. Muitas questões impopulares não são resolvidas por eles intencionalmente, como se eles fizessem um by pass para o Judiciário. Foi oque aconteceu com a regulamentação da greve dos servidores federais.
As campanhas eleitorais, cada vez mais, são palco de disputas jurídicas, um reflexo da judicialização da política. O que podemos esperar em 2010?
Não gosto de fazer adivinhação. Uma coisa é a ação judicial na arena parlamentar e outra é uma disputa na arena eleitoral, onde o Judiciário tem sido mais ativo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já legislou sobre diversas questões polêmicas, como a redução do número de vereadores, a cassação de governadores. Os atores políticos não são bobos e percebem que esse Tribunal tem ampliado o leque de suas atribuições. Ao perceber isso, vão jogar com essa estratégia. O Tribunal Superior Eleitoral passa ser uma peça importante no tabuleiro eleitoral. Não se espante se, antes das eleições, houver candidaturas cassadas por violação das regras eleitorais, algo que nunca aconteceu. O Judiciário como partícipe desse processo decisório é cada vez mais uma coisa brasileira e tem a ver com o elevado grau depoder do Judiciário. Se é bom ou ruim, não sei. Por enquanto, o TSE tem sido um elemento de moralização.
Mas não causa estranheza ao eleitor votar em um candidato, ele sair vitorioso e depois ser cassado?
Esse é o ponto. Por isso, já há uma discussão sobre se deve existir outra eleição ao invés de o segundo colocado assumir o mandato. O que é um ingrediente novo na política brasileira. O Congresso vai ter que legislar sobre isso ou então o Judiciário vai legislar novamente.
A judicialização da campanha eleitoral é um reflexo de discurso oposicionista fragilizado?
A oposição descobriu, na democracia, o Judiciário como um elemento crível de fazer valer seu interesse, de obstacular o governo ou publicizar para criar custos ao governo, gerando capital político para ela própria. Isso não é fraqueza da oposição até porque o desenho institucional político brasileiro - presidencialismo de coalizã o, com o executivo muito forte - torna difícil se contrapor ao poder. O Judiciário é um aliado para fazer esse combate. A oposição já obteve vitórias no Maranhão (cassação de Jackson Lago - PDT) e na Paraíba (cassação de Cássio Cunha Lima - PSDB). Imagine, chegar ao governo depois de perder a eleição!