John Demjanjuk está fazendo o papel de vítima moribunda no seu julgamento em Munique. E ao fazer isso ele está insultando os parentes dos judeus mortos em Sobibor. O réu de 89 anos de idade, acusado de ajudar e encorajar um assassinato maciço, não está nem senil nem confuso, e tampouco é doente terminal. Ele poderia conquistar respeito se manifestasse remorso
Um réu tem o direito a um julgamento justo. Ele pode decidir se e como deseja participar do exame das acusações feitas contra si. Ele pode permanecer em silêncio, sentar-se impassivelmente ou seguir ativamente os procedimentos. Mas o que ele não não deveria fazer é comportar-se no tribunal como John Demjanjuk, 89.
Um réu tem o direito a um julgamento justo. Ele pode decidir se e como deseja participar do exame das acusações feitas contra si. Ele pode permanecer em silêncio, sentar-se impassivelmente ou seguir ativamente os procedimentos. Mas o que ele não não deveria fazer é comportar-se no tribunal como John Demjanjuk, 89.
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John Demjanjuk é acusado de ser vigia do campo extermínio nazista de Sobibor, na Polônia. Entre abril e setembro de 1943, ele teria colaborado para o assassinato de 27.9 mil pessoas
Imagens altamente sugestivas foram transmitidas da Sala A 101 do centro de justiça criminal de Munique. Telespectadores do mundo inteiro viram aquilo que parece ser um homem moribundo, preso a uma grande maca e enrolado em cobertores - apesar do calor que fazia na sala -, como se tivesse acabado de ser retirado à força da presença dos seus médicos para ser colocado diante dos juízes.
Ocasionalmente ele cobre-se também com um cobertor de lã branca, como se fosse uma mortalha. Demjanjuk está fazendo o papel do homem morto. Ele está desempenhando um papel teatral em uma tentativa de retratar o sistema judicial como algo que não se acanha em perseguir anciões, as menores engrenagens na máquina de morte nazista, após passar décadas tratando com suavidade os principais perpetradores do Holocausto.
Tal visão da situação não é inteiramente correta. No entanto, a mais recente geração de especialistas em direito há muito descartou a doutrina de que os culpados só podem ser encontrados no círculo de membros de alto escalão do regime de Hitler. Os promotores de hoje não mais acreditam que as pessoas de menor importância, aquelas que participaram ativamente da matança em escala industrial, estavam sendo meramente exploradas.
No tribunal, Demjanjuk sentou-se mantendo a cabeça sobre um apoio. A seguir, ele levantou uma mão trêmula e colocou o seu boné de beisebol sobre os olhos fechados. Estaria ele ofuscado pelas luzes do teto? Não. Ele parecia estar evitando os olhares daqueles que o acusaram de obrigar os seus familiares a entrar nas câmaras de gás do campo de extermínio de Sobibor. Entre esses sobreviventes estavam pessoas que à época eram crianças, como Mary Richheimer-Leijden van Amstel, 70, que tinha um ano e meio de idade quando "mergulhou no subterrâneo", conforme ela define o episódio.
Mergulhar no subterrâneo é a expressão errada. As crianças ficaram ocultas com pessoas que arriscaram as suas vidas de forma que pelo menos os mais novos sobrevivessem. Muitas dessas crianças eram pessoas adultas quando descobriram, com horror, por que os seus pais não cuidaram mais delas. Durante o julgamento do ex-guarda do campo de concentração de Sobibor, esses indivíduos disseram aos juízes que os seus familiares foram colocados em câmaras de gás e assassinados. Depois, o tribunal precisou determinar se eles podem ser aceitos também como vítimas - uma mera formalidade.
Memórias traumáticas
Mas até mesmo essa formalidade é traumática para os familiares sobreviventes. Jaap Simons, nascido em 1935, tinha cinco anos e meio de idade quando "alguém o pegou". Ele não conhece nenhum nome. "Eu estive em quatro endereços diferentes", conta ele. De que casas estamos falando? Ele citou cidades. O juiz que preside o tribunal perguntou, "Você tinha outros parentes que também morreram em Sobibor?", "Eu não sei". Simons também jamais leu as listas, publicadas mais tarde, com os nomes daqueles que foram deportados e trancafiados em vagões de trem, e que viajaram do campo holandês provisório de Westerbork para a Polônia ocupada. Ele não conseguiu fazer tal coisa. E também não pôde apresentar qualquer documento. Ele não tem nada, absolutamente nada.
Rudolf Salomon Cortissos nasceu em 1939. A sua mãe, uma tia e um tio foram mortos em Sobibor. Outros parentes foram enviados para Auschwitz. Ele foi levado para vários "endereços". O seu pai conseguiu escapar. Após a morte dele, em 1959, o filho descobriu uma carta em meio aos seus pertences. A carta foi escrita pela sua mãe e jogada do trem que seguia para Sobibor, na esperança de que alguém a encontrasse e a entregasse ao destinatário.
O juiz que preside o julgamento, Ralph Alt, pergunta a Cortissos, com uma voz amável, se "poderia examinar" a carta. Cortissos a entrega - e começa a chorar por temer que a única lembrança que ele tem da mãe seja agora "confiscada". Alt volta atrás. "Não, não, pelo amor de Deus!", grita ele, acrescentando que o tribunal só deseja dar uma olhada na carta. Alt ficou tão perturbado com o fato que ditou à estenógrafa do tribunal: "A defesa do réu apresentou uma carta...".
Mas Cortissos não está sendo defendido, e ele não é nenhum réu. Ele está simplesmente sendo representado por Cornelius Nestler, um professor de direito de Colônia, na Alemanha. Essas pessoas altamente vitimadas exigem assistência legal quando se apresentam diante do tribunal. O depoimento no tribunal é a última coisa que elas podem fazer pelos seus familiares, que foram levados antes que elas tivessem uma oportunidade de conhecê-los.
Ocasionalmente ele cobre-se também com um cobertor de lã branca, como se fosse uma mortalha. Demjanjuk está fazendo o papel do homem morto. Ele está desempenhando um papel teatral em uma tentativa de retratar o sistema judicial como algo que não se acanha em perseguir anciões, as menores engrenagens na máquina de morte nazista, após passar décadas tratando com suavidade os principais perpetradores do Holocausto.
Tal visão da situação não é inteiramente correta. No entanto, a mais recente geração de especialistas em direito há muito descartou a doutrina de que os culpados só podem ser encontrados no círculo de membros de alto escalão do regime de Hitler. Os promotores de hoje não mais acreditam que as pessoas de menor importância, aquelas que participaram ativamente da matança em escala industrial, estavam sendo meramente exploradas.
No tribunal, Demjanjuk sentou-se mantendo a cabeça sobre um apoio. A seguir, ele levantou uma mão trêmula e colocou o seu boné de beisebol sobre os olhos fechados. Estaria ele ofuscado pelas luzes do teto? Não. Ele parecia estar evitando os olhares daqueles que o acusaram de obrigar os seus familiares a entrar nas câmaras de gás do campo de extermínio de Sobibor. Entre esses sobreviventes estavam pessoas que à época eram crianças, como Mary Richheimer-Leijden van Amstel, 70, que tinha um ano e meio de idade quando "mergulhou no subterrâneo", conforme ela define o episódio.
Mergulhar no subterrâneo é a expressão errada. As crianças ficaram ocultas com pessoas que arriscaram as suas vidas de forma que pelo menos os mais novos sobrevivessem. Muitas dessas crianças eram pessoas adultas quando descobriram, com horror, por que os seus pais não cuidaram mais delas. Durante o julgamento do ex-guarda do campo de concentração de Sobibor, esses indivíduos disseram aos juízes que os seus familiares foram colocados em câmaras de gás e assassinados. Depois, o tribunal precisou determinar se eles podem ser aceitos também como vítimas - uma mera formalidade.
Memórias traumáticas
Mas até mesmo essa formalidade é traumática para os familiares sobreviventes. Jaap Simons, nascido em 1935, tinha cinco anos e meio de idade quando "alguém o pegou". Ele não conhece nenhum nome. "Eu estive em quatro endereços diferentes", conta ele. De que casas estamos falando? Ele citou cidades. O juiz que preside o tribunal perguntou, "Você tinha outros parentes que também morreram em Sobibor?", "Eu não sei". Simons também jamais leu as listas, publicadas mais tarde, com os nomes daqueles que foram deportados e trancafiados em vagões de trem, e que viajaram do campo holandês provisório de Westerbork para a Polônia ocupada. Ele não conseguiu fazer tal coisa. E também não pôde apresentar qualquer documento. Ele não tem nada, absolutamente nada.
Rudolf Salomon Cortissos nasceu em 1939. A sua mãe, uma tia e um tio foram mortos em Sobibor. Outros parentes foram enviados para Auschwitz. Ele foi levado para vários "endereços". O seu pai conseguiu escapar. Após a morte dele, em 1959, o filho descobriu uma carta em meio aos seus pertences. A carta foi escrita pela sua mãe e jogada do trem que seguia para Sobibor, na esperança de que alguém a encontrasse e a entregasse ao destinatário.
O juiz que preside o julgamento, Ralph Alt, pergunta a Cortissos, com uma voz amável, se "poderia examinar" a carta. Cortissos a entrega - e começa a chorar por temer que a única lembrança que ele tem da mãe seja agora "confiscada". Alt volta atrás. "Não, não, pelo amor de Deus!", grita ele, acrescentando que o tribunal só deseja dar uma olhada na carta. Alt ficou tão perturbado com o fato que ditou à estenógrafa do tribunal: "A defesa do réu apresentou uma carta...".
Mas Cortissos não está sendo defendido, e ele não é nenhum réu. Ele está simplesmente sendo representado por Cornelius Nestler, um professor de direito de Colônia, na Alemanha. Essas pessoas altamente vitimadas exigem assistência legal quando se apresentam diante do tribunal. O depoimento no tribunal é a última coisa que elas podem fazer pelos seus familiares, que foram levados antes que elas tivessem uma oportunidade de conhecê-los.
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Fila para entrar no tribunal regional de Munique, na Alemanha, onde começou no início de dezembro
o julgamento de John Demjanjuk, acusado de ser vigia de campo de extermínio nazista na Polônia
Salvo por um cão pastor alemão
Alguns prepararam as suas declarações, como David van Huiden, que escapou de uma operação de detenção realizada na sua casa pelas SS porque, naquela ocasião, ele tinha levado o cão pastor alemão da família para passear. "É claro que um cão alemão merece um pouco de ar fresco", diz ele com uma risada amarga. Doze dias depois, no dia do seu aniversário, os seus pais e irmãs foram assassinados em Sobibor.
"Eu realmente achava que eles estavam indo para um campo de trabalhos e que retornariam depois da guerra. Eu perdi tudo. Tudo o que amava desapareceu".
"Por que você está tão convencido disso", pergunta o juiz auxiliar. "Os alemães não disseram: você vai para Sobibor para ser colocado em uma câmara de gás", responde a testemunha. "Qual seria o sentido de as pessoas pegarem bondes até o ponto de embarque e serem levadas por trens de passageiro para Sobibor se elas não deveriam voltar? Será que eu teria que embarcar em um trem para o inferno? Eles disseram que as pessoas deveriam levar roupas quentes. Para que levar tais roupas se elas seriam assassinadas? Se as pessoas soubessem que não precisavam de uma passagem de volta, elas teriam feito melhor permanecendo em casa. Essa foi realmente a grande mentira!".
Van Huiden agradeceu ao tribunal por ouvi-lo, e o juiz ditou para a estenógrafa, mais uma vez involuntariamente: "A defesa do réu apresentou...".
A próxima testemunha a depor foi Martin Haas, professor da Universidade da Califórnia em San Diego. "Juntamente com a minha irmã mais nova, que tinha quatro anos de idade à época, eu fiquei escondido na casa de uma família católica. Era inverno. Uma mulher que usava um casaco grande nos levou até lá. Havia quatro crianças na casa. Era possível esconder as duas crianças mais novas, mas não as mais velhas". "E o seu pai?". "Ele estava em Auschwitz, onde era obrigado a trabalhar. Arbeit macht frei, conforme eles diziam. Eles morreu lá. Eu não sei como" (nota do editor: "Arbeit macht frei", literalmente, "O trabalho liberta", era um slogan infame colocado sobre os portões de entrada dos campos de concentração nazistas).
Ninguém veio pegar as crianças escondidas após a guerra. "Nós esperamos e esperamos. Mas ninguém veio. Eu fui mandado para outra família pelas autoridades. Eu não gostava de nenhum desses lugares. Foi quando um primo distante me encontrou. Foi assim que eu sobrevivi. Em 1964 eu fui estudar na Universidade de Berkeley".
Sem doença terminal
Na manhã do terceiro dia, Demjanjuk disse que tinha febre e que estava rouco. A sua participação no tribunal foi cancelada e ele não teve que ouvir mais nenhum depoimento de testemunhas. No dia anterior, o julgamento foi prematuramente terminado porque ele disse que sentia uma dor de cabeça. Ao menor sinal de problema, paramédicos correm a atendê-lo. O tribunal sempre entra em recesso sem fazer perguntas. Eles querem evitar qualquer escândalo que pudesse permitir que o réu determinasse a direção seguida pelo inquérito.
Três médicos confirmaram que ele tem condições de ir a julgamento. Desde que chegou na Alemanha, Demjanjuk tem sido constantemente examinado e vem recebendo tratamento médico. A saúde dele provavelmente é melhor agora do que quando foi preso em maio. Ele tampouco padece de demência, nem está confuso, e não tem nenhuma "doença terminal", conforme alega frequentemente o seu advogado, Ulrich Busch.
Como muita gente da sua idade, Demjanjuk tem a mobilidade limitada e não é tão resistente como costumava ser - um fato que o tribunal leva em consideração de todas as maneiras possíveis. Funcionários da Penitenciária Stadelheim, em Munique, garantem que ele pode ficar de pé, dependendo de como se sinta. Eles dizem que Demjanjuk perambula frequentemente pelos corredores, usando um andador e que, quando o tempo permite, ele vai em uma cadeira de rodas até o pátio no qual os prisioneiros têm permissão para se exercitar. Não parece haver um motivo de saúde para essas aparições dramáticas perante a justiça.
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A "deportação forçada" de Demjanjuk
Já no início do julgamento, o advogado dele encheu o tribunal de petições para encerrar e suspender os procedimentos, e questionou a imparcialidade da corte. Isso pode ser parte do trabalho de Busch como representante legal do seu cliente, e é algo aceitável até certo ponto. Mas definitivamente não é parte do seu trabalho referir-se à extradição de Demjanjuk para a Alemanha como "deportação forçada" - na frente dos parentes das vítimas. E tampouco é tarefa dele comparar os sobreviventes com aqueles prisioneiros de guerra que atuaram como auxiliares voluntários das SS. "Os guardas dos campos cometeram assassinatos; os judeus não", retrucou o professor Nestler.
Demjanjuk nunca teve muita sorte com os alemães. Para começar, eles quase o deixaram morrer de fome em um campo de prisioneiros de guerra, e a seguir o teriam obrigado a fazer os trabalhos mais sujos em campos como Sobibor. Agora eles o estão responsabilizando pelas suas ações. Mas isso reduziria a gravidade das acusações de que, de abril a setembro de 1943, ele colaborou para o assassinato de pelo menos 27,9 mil pessoas? Será que ele deveria ser absolvido, assumindo-se que seja de fato culpado, porque outros culpados foram deixados livres?
Em 1943, toda sexta-feira um trem chegava da Holanda. No campo era preciso matar rapidamente de mil a 3.000 pessoas e eliminar os corpos. Dentes eram arrancados dos maxilares das vítimas. Roupas e objetos de valor eram separados e despachados para fora do campo. Havia no máximo 15 membros das SS residindo em Sobibor. Sem os guardas de campo, esse sistema de assassinato em escala industrial não teria funcionado.
O juiz lê datas, números e nomes. A lista inclui bebês. "Nascido em 11 de abril de 1943, morto em 23 de abril de 1943. Foi naquele dia que o recém-nascido chegou a Sobibor. Um homem nascido em 1848. Um menino nascido em 18 de maio e morto em 23 de julho.
Uma oportunidade de dizer que lamenta
Houve um silêncio mortal na sala do tribunal. Demjanjuk colocou o boné de beisebol sobre a face. Até o momento, ele negou ter qualquer coisa a ver com Sobibor. No início do julgamento, a defesa afirmou que, como não havia ninguém para acusar, os juízes decidiram julgar "um guarda de campo que estava na escala mais baixa da hierarquia".
Teria sido isso uma espécie de confissão?
Busch gosta de fazer declarações amplas. Ele disse ao tribunal que o seu cliente foi conclusivamente absolvido em Israel e na Polônia. Segundo o deputado, isso significaria que o réu não poderia ser julgado uma segunda vez pelas mesmas acusações. Mas há um problema. Em Israel, Demjanjuk foi julgado pelas acusações de ser "Ivan, o Terrível" - um guarda notoriamente cruel do campo de concentração de Treblinka -, e não um guarda de campo de Sobibor. E na Polônia os promotores suspenderam o julgamento, alegando que este poderia ser retomado a qualquer momento.
O réu não tem nada a perder. Há uma boa chance de que a acusação - ajudar e encorajar o assassinato de judeus holandeses e alemães transportados a Sobibor por ordens de autoridades alemãs - leve uma condenação, não apenas no caso de Demjanjuk. Assim, ele poderia dizer: "Sim, eu estive naquele inferno e não queria morrer. Eu lamento profundamente que isso tenha acontecido".
Isso colocaria um fim a todas as mentiras e faria com que ele conquistasse um pouco de respeito. Mas é algo que depende inteiramente dele.
Tradução: UOL