terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A quem interessar possa: não apoio o oficialismo atual, mas também não aceito o fascismo caboclo.

Quando os textos sobre a Comissão da Verdade forem publicados no Correio Popular, eu os unirei em um só post, para que a coerência dos argumentos não seja prejudicada, bem como a sua leitura. Desde já, indico meu desacordo com as manifestações que, a título de criticar o erro do governo federal, fazem a apologia da tortura, da ditadura, dos operadores do sistema repressivo civil/policial/militar que desgraçou o país em 1964.

Criticar desvios autoritários dos que hoje estão postos em Brasilia não implica, em boa lógica, louvar todo um sistema de poder sanguinário que imperou entre nós com censura, tortura, exílios, e, last but not least, manutenção dos procedimentos mais corrompidos. É bom recordar que boa parte dos que hoje se levantam "em prol da democracia" foram ativos apoiadores e instrumentos da tirania. E, na tarefa asquerosa, foram comprados de mil maneiras pelos poderosos oligarcas ou donos de empresas. Quando, hoje, leio certas entrevistas de ex-ministros da ditadura, que assinaram gostosamente o AI-5, conclamando à defesa do Estado de direito, recordo de imediato os seus ditos (e malditos) sobre "jogar todos os escrúpulos" em lugar competente.

Sou dos que defendem princípios, por mais fora de moda que tal postura seja considerada. Sou dos que, por criticar a esquerda, não se alinham acriticamente ao fascismo. E certas entrevistas, certos artigos, deixam bem claro que não é contra o Plano de Direitos Humanos do governo que os seus autores se colocam, mas contra os direitos humanos, simples assim. Vejo comentários do mesmo jaez encontrado nos jornalismos fascistas, que negam até mesmo direito de defesa para quem, eles decretam, são "bandidos". É como se nunca tivesse existido no Brasil algum caso como a Escola de Base e outros, nos quais a imprensa, na caça por audiência, abusou dos direitos humanos, de maneira típicamente fascista. Sou contra a censura e o controle governamental da opinião pública. Mas não sou ingênuo ao ponto de ignorar a extrema arrogância de redes jornalísticas que estão a serviço delas mesmas e de nada mais.

Estou sempre atento para denunciar os desvios da esquerda, ou da ex-querda que hoje se refestela no poder. Mas não contem comigo para tecer encômios aos procedimentos ditatoriais da direita. Sou dos que, a exemplo de Millor Fernandes, aceitam que pensar é só...pensar, sem anquinhas ou viseiras de esquerda ou direita. Quero distância dos que comentam os blogues das duas alas. Alí, não existe pensamento (pensar é pesar palavras e conceitos, jamais morder a honra pessoal deste ou daquele indivíduo ou grupo) mas reação pavloviana. Basta enunciar uma palavra, e logo os fanáticos do PT ou do anti-petismo rosnam. E mordem, deixando baba venenosa na carne e na alma dos que foram mordidos.

Os textos abaixo são uma tentativa de pensamento, numa terra onde impera a misologia. Esta última é uma das causas e efeitos de nosso atraso político, jurídico, ético, social, econômico, etc. Quem imagina me acusar de oficialismo, leia antes os ataques contra mim nos blogues da esquerda governamental e adjacências. Muitos, naquelas uniões fanáticas, nada têm de ideológico: é o velho cabide de emprego funcionando. Tenho certeza: assim como existiram os apoiadores de "esquerda" incondicionais no governo do PMDB, de Collor, de FHC e Lula, se amanhã outro partido, por exemplo, o PSDB, ganhar as eleições, muitos intelectuais de aluguel, que hoje apoiam incondicionalmente o PT, estarão com suas bolsinhas rodando para o lado dos vencedores que possuem as chaves dos cofres das fundações de pesquisa, das bolsas, dos empregos (incluindo-se sobretudo os empregos nos EUA). Me recuso a sequer aceitar tais procedimentos no mundo acadêmico e similares.

Por tal motivo, recebo xingatórios peemedebistas (e mesmo processos), tucanos, petistas, e quejandos. Na minha tábua de valores não cabe a tortura, a censura (muitos jornais que se afirmam contra a censura exercida por juizes ou pelo governo, praticam eles mesmos a censura, jogando na lata de lixo idéias e teses não convenientes para as "redações" ). Quando defendo a liberdade de imprensa, é para valer. E não para me calar diante dos poderosos "chefes de redação" os quais, por sua vez, recebem ordens dos proprietários. Sempre que me deparo com um jornalismo assim, "pautado", vem-me à lembrança o símbolo da RCA : "HIS MASTER´S VOICE". Quem assim procede, imagina que seus donos são onipotentes e faz o papel vicário de esmagar os insignificantes que ousam pensar diferente "da redação". São insetos descartáveis. E descobrem tal realidade apenas quando recebem como pagamento pelo servilismo, um chute no traseiro. Enfim, coisa de país atrasado. Nada mais. Segue minha homenagem aos jornalistas que mordem, e aos seus leitores que fazem o mesmo.

His Master's Voice.jpg


A Comissão da Verdade (1e 2)(06/01/2010 e 13/01/2010).



No dia 3/1/2005 o Correio Braziliense publicou uma entrevista cujo título é revelador: “A era Lula-Risco Autoritário” (ela pode ser lida no site do Sindicato Nacional dos Professores Universitários, http://www.andes.org.br). Como sempre, minhas respostas atraíram a fúria dos militantes petistas. Cito a primeira pergunta de uma longa série: “Correio Braziliense - Alguns estudiosos, o senhor entre eles, costumam dizer que o governo Lula tem estratégias para dominar o Estado e a opinião pública... Essa avaliação não é exagerada? Se não for, como se dá esse domínio? E com qual objetivo?”. Resposta: “As tentativas de controlar o Estado e a opinião pública não se localizam em todo o governo, mas em determinados setores formados pelo stalinismo (...). Outros integrantes se formaram na tradição centralista, a exemplo de ex-trotskistas (...). Para os dois setores, são ilógicos o debate, a consulta, o contraditório antes de se tomar um rumo político. A direção é a única encarregada de pensar, agir, voltar atrás, etc. É a antiga estratégia de tudo dirigir do alto, da cúpula. (...) Ninguém muda subitamente uma forma de agir e de pensar nem arranca hábitos como se fossem paletós fora de moda. Essas alas do PT tentam enfeitar o próprio discurso com piruetas à democracia. Mas a forma de sua atividade traz a marca do centralismo. A rigidez no comando não é contraditória com a flexibilidade nas decisões, sobretudo se estas últimas favorecerem a expansão do poder dos líderes”.

O que deve ter relevo na análise ética é a forma da ação assumida e imposta à comunidade política. No caso da presente Comissão da Verdade, a marca do autoritarismo aparece em todo o seu esplendor desastrado e desastroso. O uso de não consultar os interessados, não querer assessoria jurídica adequada e tudo impor de cima para baixo levou parte do ministério à proposta em questão, sem avançar com eficácia nos alvos supostamente perseguidos.

É preciso definir o problema no âmbito em que se ele foi produzido. Quem dá um golpe de Estado assume todas as responsabilidades públicas, todos os compromissos que a ordem estatal deve manter com a cidadania. Mesmo as mais virulentas ditaduras não têm o direito de ab-rogar o direito à vida, prerrogativa de todo ser humano que se coloca sob o poder público. Um Estado que não reconheça tal direito não é Estado, mas quadrilha poderosa que só protege os seus integrantes. De tal direito supremo são deduzidos os demais, como o de habeas corpus e outras garantias, como a integridade física e psicológica. O Estado, para ser Estado e não ajuntamento criminoso, não pode manter paixões, sobretudo as de ódio e vingança. Assim, nenhum ditador confessa que suas prisões estão abarrotadas de presos submetidos à tortura. No Chile, na Argentina, no Brasil, no Uruguai, a reação governamental, nas mãos de civis e militares (é má fé dizer que as ditaduras foram apenas militares) usou a propaganda para negar o fato das prisões políticas onde se torturava. Temos aí um ponto relevante a receber perquisição. Instituições eclesiásticas, como o organismo de Justiça e Paz, provaram que no Brasil existiram práticas absolutamente opostas ao direito estatal. A documentação, abundante e idônea, foi trazida à colação em tempo certo, ainda sob a ditadura. Ela serviu como acicate para a própria Lei de Anistia com a qual se convencionou dar um fim ao Estado de exceção em nossa terra.

Deve ser sublinhado que a referida lei foi aceita pelos que se opunham, em palavras e atos ou pelas armas, ao regime. Semelhante ponto trouxe boa parte da ambiguidade que gerou a crise atual entre a presidência e os setores militares e da defesa. Deixemos claro, no entanto: com a lei de anistia, o Estado, no consórcio civil-militar, admitiu que muitos de seus operadores agiram sob o domínio da exceção e que, portanto, ele não funcionou integralmente como Estado. Ao poder Judiciário caberia definir o retorno ao direito, com as punições cabíveis. Mas infelizmente aquele poder não assumiu a tarefa. Voltarei ao tema, dada a sua gravidade institucional.



Quando terminou a ditadura (civil e militar), a Lei de Anistia foi publicada e aceita universalmente. Líderes da oposição e antigos integrantes da guerrilha, urbana ou rural, retornaram ao mundo político, aos partidos, aos governos e parlamentos. O trabalho iniciado por organismos como o de Justiça e Paz não tiveram sequência no âmbito das instituições. Com o advento do poder civil não foram desmanteladas as formas de controle e vigilância definidas pela “segurança nacional”. Ainda nos anos oitenta reuniões públicas eram seguidas por agentes estatais que anotavam nomes, discursos, conexões estabelecidas entre os “subversivos”. Quase uma década se passou, mas foram mantidos os instrumentos excepcionais de repressão. A tortura, marca do poder instituído em 1964 e piorado em 1968, foi abolida em relação aos suspeitos de crime político. Mas ela continua até hoje, sem maiores mudanças, no tratamento aplicado aos presos comuns, sobretudo aos pobres e negros jovens.

A Constituição de 1988 se enquadra na lógica da transição negociada entre os regimes (ditadura para o Estado de Direito) : ela não resultou de uma Assembléia Nacional Constituinte, mas foi o produto de um Congresso que se apoderou das prerrogativas de instaurador constitucional. Boa parte dos antigos civis que apoiaram o mando ditatorial permaneceu no Legislativo, liderando o governo de José Sarney, ele mesmo líder inconteste da ditadura durante anos a fio. Deste modo, a Constituição foi tecida por vontades e inteligências que seguiam rumos opostos. Uma delas pregava o Estado democrático de Direito, a outra pendia para o Estado de direito. O “democrático” faz a diferença, porque em semelhante concepção os aspectos sociais recebem preeminência. Como nenhum dos lados possuía condições de impor seu modelo constitucional, resultou um texto que mescla elementos de ambos os paradigmas. O desastre foi previsto por um de seus maiores beneficiários, logo no instante em que a Carta era proclamada, o presidente Sarney: “com esta Constituição, o país será ingovernável”. (Consultor Jurídico, 14/09/2008). O mesmo político apelida a Carta como um “Frankenstein” jurídico. Assim que ela foi promulgada, começaram as emendas que tendem a conduzir o seu todo textual para um rumo ou outro, para as doutrinas sobre o Estado democrático de Direito ou para o Estado de Direito.

Sempre dirigidos pelo suposto realismo da Razão de Estado, os políticos e os partidos, de direita ou esquerda, pouco ou nada fizeram para garantir uma pauta de direitos humanos capaz de remediar os males ocorridos no regime de exceção. O Partido dos Trabalhadores não assinou o documento de 88, mas os seus motivos não se ligam de imediato à punição dos desmandos policiais da ordem ditatorial.

Entre os benefícios trazidos pela Carta, temos a autonomia do Ministério Público. Tal instituição tem sido um baluarte na defesa dos direitos humanos e, não por acaso, é vítima de todos os partidos e tendências políticas que lhe desejam impôr amarras e mordaças. No STF se encontra, por exemplo, o caso Celso Daniel, cujo desfecho definirá a competência, ou não, dos promotores e procuradores da república para investigar crimes e atentados contra a cidadania. De qualquer modo, entre a Lei de Anistia, a edição da Carta e o pleno desenvolvimento do Ministério Público, quase duas décadas se passaram. E no intervalo ninguém assumiu a tarefa de, em nome do Estado, investigar e punir os crimes de tortura e conexos. Salvo movimentos civis com maior ou menor audiência popular, até mesmo a Igreja Católica, sob direção conservadora de João Paulo 2, amainou as buscas e as iniciativas de punição.

Um problema que implica toda a sociedade e todo o Estado foi posto em surdina, com aval das forças que, teoricamente, deveriam liderar a sua resolução. No fim do governo Lula, o Executivo propõe rever a lei de anistia, mas foge da objetividade e confunde temas diferentes. É o que analisarei no próximo artigo.