quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 20/1/2010


A Comissão da Verdade (final)




“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Assim falou Jarbas Passarinho na reunião em que foi assinado o AI-5. Mas também escutamos, em data mais recente: “quem está na oposição pode fazer bravatas, porque não tem o comprometimento de governar, mas à frente do governo deve-se ter um comportamento realista” (Luis Inácio da Silva). Os dois políticos afirmam que, uma vez no poder, ninguém deve se preocupar com valores éticos. “Salus populi suprema lex esto”. Temos aí o núcleo duro da razão de Estado, cujo nome, a partir do século 19, é “realismo”.

A razão de Estado vem do século 16. O realismo a traduz na era do nacionalismo europeu. O desejo de aumentar ao infinito as potências européias foi batizado por August Ludwig von Rochau. Ele distingue a mera teoria da política prática (Realpolitik). A ética exige princípios para governar os povos. Mas segundo a Realpolitik o poder é alheio aos valores. Sujeitar o poder a leis seria irracional, porque o forte não pode ser dirigido pelos fracos. “Nem princípios, tratados ou idéias unirão as forças alemãs esfaceladas, mas apenas uma força superior que devore o resto” (Rochau).

Essa doutrina foi aceita em muitas partes da Europa. “Dominar”, diz o mesmo autor, “significa exercitar o poder. Só exercita o poder quem possui poder. Tal relação imediata entre poder e dominação constitui a verdade primeira de toda política. Ela é a chave de toda história”. Que seja lido o livro de Rochau Grundsätze der Realpolitik, angewendet auf die staatlichen Zustände Deutschlands (1853). Ali foi escrita, pela primeira vez, a palavra Realpolitik. A literatura sobre o nascimento daquele termo não é numerosa. Entre os analistas cito Friedrich Meinecke: A idéia da raison d´État na história dos tempos modernos e, recentemente, Otto Pflanze, Bismarck and the Development of Germany: The Period of Unification, 1815-1871.

Tanto a direita brasileira, que hoje protesta com todos os pulmões contra o plano sobre direitos humanos (ancorada em alguns itens), quanto a esquerda, foram nutridas com o leite apodrecido de doutrinas similares à de Rochau, inimigas dos direitos humanos. O realismo amamenta todos os que, tendo sido um dia oposição, chegando ao poder renegam valores ou escrúpulos. As duas ditaduras que moldaram o país no século 20, a de Vargas e a de 1964, baniram do vocabulário a reverência aos direitos humanos. Sobral Pinto foi obrigado a citar a lei de proteção dos animais para defender um perseguido político da esquerda. Necessidade idêntica sentiram os dignos advogados que defenderam presos políticos, sobretudo depois do AI-5.

Enquanto o realismo imperar nas hostes políticas nacionais, de esquerda e direita, projetos sobre direitos humanos serão apenas causa de guerra política na conquista ou conservação do poder. Note-se o tom ambiguo: a direita se levanta contra possíveis atentados à propriedade, mas apoia a política econômica do governo. Disse Delfim Netto sobre tais seres: “eles mamam nas tetas do governo”. Mas querem exclusividade. O plano dos direitos humanos, por sua vez, leva dirigentes governamentais a nele incluir matérias fiscais e controle da imprensa. Mas o alvo seria aprimorar os costumes dos que operam em nome do Estado ou lideram a sociedade. O apelido do realismo é esperteza que ignora valores e direitos. Ela dominou a política de Bismarck e orientou os partidos totalitários. O resultado? Duas guerras mundiais, seguidas pelas matanças que desgraçam o mundo. A esperteza orientou os ditadores, mas também dirigiu a esquerda realista. Louvemos os direitos humanos. Sigamos o exemplo dos Arns. Paulo denunciou, sob saraivadas de calúnias, a tortura contra os presos políticos. Zilda defendeu a vida infantil e a velhice. Se neles nos espelharmos, a violenta batalha de hoje, que tende a piorar o convívio no país, se transformará em diálogo pacificador. O poder pelo poder só traz infelicidade aos povos. Tal lição ainda precisa ser assimilada no Brasil.