REDAÇÃO DA UFRGS
Prova aborda impacto de deslizes do cotidiano
Candidatos foram estimulados a descrever o resultado das infrações do dia a dia na formação da sociedade brasileira
Além de classificar vestibulandos, a prova de redação aplicada ontem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) poderia ser empregada para selecionar bons cidadãos. Ao abordar o impacto da falta de civilidade no cotidiano, o tema escancara um desconforto vivido por todos e confirmado por especialistas. A constatação é de que os pequenos deslizes estão resultando em grande dano à sociedade brasileira.
O filósofo e professor de ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano testemunhou ontem mesmo a atualidade do tema explorado pelos vestibulandos. Ao chegar a uma agência bancária da capital paulista, percebeu um carro estacionar em uma vaga reservada a portadores de deficiência. Dele, saiu um jovem sem qualquer dificuldade de locomoção.
– A vida coletiva é um inferno no Brasil. Essas pequenas falhas de comportamento, multiplicadas, se transformam em um grande problema para todos – declara o filósofo.
Para Romano, a falta de polidez se tornou uma característica devido à urbanização galopante desde o século passado. A rapidez com que a antiga vida em pequenas comunidades deu lugar à convivência em metrópoles abarrotadas não foi acompanhada pela aquisição de uma cultura urbana adequada.
– Não desenvolvemos novas regras de vida para substituir as antigas normas da cultura caipira – constata.
Esse panorama histórico vem sendo agravado pela sensação geral de impunidade – que cria um ambiente propício ao surgimento de uma epidemia de descortesia e descumprimento de leis. Essa foi uma das constatações que levaram o médico perito José Andersen Cavalcanti Júnior, 55 anos, a escrever um artigo sobre o tema. Publicado em ZH dia 13 de novembro, o texto teve trecho selecionado e reproduzido na prova da UFRGS para reflexão dos candidatos.
– Vejo que as pessoas se indignam com os grandes escândalos de corrupção, com os políticos de Brasília, mas têm dificuldade em reconhecer os seus erros do dia a dia. A impunidade estimula esse tipo de comportamento. Se os grandes não são punidos, por que eu deveria ser? – argumenta.
Essa combinação de fatores torna comum uma série de atitudes prejudiciais para a vida em sociedade, como jogar lixo na rua, fumar em local proibido ou circular com o carro pelo acostamento da via. Cavalcanti Júnior conta que, diante de uma escola de Porto Alegre, costuma abordar pais que param com o carro sobre a faixa de segurança.
– Pergunto se, além de parar em fila dupla, ainda tem de ficar sobre a faixa. Mas sempre respondem que é apenas por um minutinho, ou que precisam pegar o filho.
Para a professora de Ética e Filosofia Política da Unisinos Cecília Pires, atos como esse estão cada vez mais comuns.
– Nunca vi tanta falta de educação como agora. Não sei a que atribuir isso. Mas é perceptível, desde a violência nas escolas até as menores coisas do dia a dia – alarma-se.
Para os especialistas, o caminho até uma sociedade mais sadia depende da educação das novas gerações e da reflexão dos mais velhos – até perceberem que pequenos atos têm grandes consequências.
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