Quando a res publica era sinônimo de cosa nostra
Resenha do livro.
História da vida privada, do Império Romano ao ano mil, Georges Duby, Phillippe Aries e outros, Companhia das Letras, São Paulo, 1990
Por Roberto Romano
Vida particular, vida pública: não há quem julgue desconhecer o que isso significa numa sociedade. No entanto, a questão é mais complicada do que parece, como provam os cinco volumes, que começam a ser editados no Brasil, do trabalho dos historiadores franceses Georges Duby e Phillippe Aries. Em Roma e na Idade Média, vida privada e pública não se separavam com nitidez. Duby e seus colegas relatam que na antiga Roma não existia a idéia de poder como algo impessoal. O chefe de governo realmente administrava as coisas públicas como se fossem negócios seus. Os cargos públicos eram criados e negociados no clube dos notáveis - os aristocratas. Estes os exploravam para seu enriquecimento e prestígio. As famílias ricas que dominavam os negócios públicos tampouco tinham vida particular. Esta se confundia com a vida pública. Tudo que os ricos faziam importava à cidade e vice-versa. Quando um notável morria, por exemplo, a família era obrigada a dar um banquete à plebe. Se não o fizesse, o enterro não se realizaria.
Os nobres arrancavam o couro dos contribuintes e devolviam uma parte em festas, edifícios públicos, segurança para o corpo e para a alma. Pode-se dizer que, em Roma, res publica (coisa pública, em latim) era sinônimo de cosa nostra (nome italiano de um dos ramos da Máfia atual). Prova disso é um dos trechos da obra de Duby que se referem à vida cotidiana dos romanos: "Um poderoso não hesitava em se apoderar da terra de um de seus vizinhos (...) O que fazer contra esse homem que enriqueceu à custa dos outros? As probabilidades de obter justiça dependiam da boa vontade de um governador de província muito ocupado, obrigado a poupar os poderosos por razões de Estado e aliado a eles por uma rede de amizades e interesses".
Os autores fazem comparações entre a Roma antiga e os países do Terceiro Mundo de hoje. O nobre romano, escrevem, "tem o colorido de um notável sul-americano, mas, como ele, nessa sociedade que opõe brutalmente ricos e pobres, tem porte nobre e não se parece com suas vias de enriquecimento". O nobre romano, com efeito, não era reconhecido pelas roupas, mas pelas maneiras: belas, altivas e viris. O corpo bem treinado era seu cartão de visitas. A partir do século III, porém, quando a Igreja começa a exercer plenamente seu domínio sobre a sociedade, o corpo humano recebe, por assim dizer, um véu, passando a "refletir o nível social de seu proprietário sob a forma de pesadas vestes". O cristianismo, em suma, transforma o corpo num suporte sem graça. A vida pública, cuja expressão social mais importante é o clero, caracteriza-se pela abstinência sexual, pela disciplina das ordens religiosas e pelo celibato.
Devassavam-se as riquezas das pessoas, o modo pelo qual exerciam o poder político e a própria sexualidade. A ruptura entre o paganismo e o cristianismo, sob esse ponto de vista, consiste na passagem do belo ao feio. Já não se tratava de estar de bem com a vida, mas de aguardar a vida verdadeira – aquela após a morte. Com esse relatoinaugural, História da vida privada desmancha velhas noções que herdamos sobre nós mesmos, como a idéia da perenidade da autonomia individual, o direito que cada qual tem de decidir a própria vida. Os autores mostram que isso não existiu nem na Antiguidade pagã, nem no cristianismo. O indivíduo livre, prestando contas ao público só em momentos determinados e dentro de regras válidas para todos, é criação recente - mesmo assim, na maioria das sociedades, ainda é uma quimera.
Roberto Romano é professor de Filosofia Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)