segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sobre os ataques da esquerda e da direita, que mencionei em post anterior, peço agora que os leitores consultem a entrevista abaixo, bem antiga segundo os padrões midiáticos, mas atualíssima. Peço que atenção maior seja dada à resposta fornecida por mim sobre a primeira pergunta da jornalista. Trata-se exatamente da tolice, ostentada pelos que me atacam, que reza existirem acadêmicos "importantes", "maiores", etc. Quem se fia em pessoas que acreditam em "filósofos mais importantes e conhecidos no mundo", anda sem olhos no universo. O simples uso deste recurso propagandístico desqualifica quem o remete contra adversários. Se tiverem meios, leiam, na introdução da Crítica da Razão Pura, a citação de Bacon:

De nobis ipsis silemus : De re autem, quae agitur, petimus : ut homines eam non opinionem, sed opus esse cogitent ; ac pro certo habeant, non sectæ nos alicujus, aut placiti, sed utilitatis et amplitudinis humanæ fundamenta moliri. Deinde ut suis commodis æqui in commune consulant et ipsi in partem veniant. Præterea ut bene sperent, neque instaurationem nostram ut quiddam infinitum et ultra mortale fingant, et animo concipiant ; quum revera sit infiniti erroris finis et terminus legitimus.

Baco de Verulamio. Instauratio magna. Præfatio

Intelectuais dignos do nome falam sobre as coisas, não de subjetividades ou crenças. Sublinharei em vermelho a resposta que, antiga, serve para os atacantes de hoje. RR

Segunda-Feira, 26 de Julho de 2004, 07:08

‘Não se sabe mais em quem acreditar’

Da Reportagem

A Tribuna de Santos


AMANDA GUERRA

A ética brasileira precisa de um choque de moral e de pensamento. O País necessita desconstruir o famoso ‘‘jeitinho’’, adquirir um novo conjunto devalores que possibilitem uma sociedade mais justa. A tese vem sendodefendida pelo professor-doutor e filósofo Roberto Romano, uma das mentes inquietas do cenário intelectual do País. ‘‘A única via de solução para a situação que vivemos no Brasil, para escapar dessa ética que temos, é a educação pública para o convívio, para o exercício do pensamento’’.

Pós-Graduado pela Universidade de São Paulo (USP), Romano doutorou-se pela Escola de Altos Estudos de Paris em 1978. Antes disso, participou demovimentos estudantis, católicos, foi frei dominicano por 12 anos. No convento, diz ele, entrou somente para fazer estudos teológicos. ‘‘Apenas para a ordenação e não para a vida confessional porque eu queria fazer filosofia mesmo’’. Foi também perseguido pela ditadura. Preso em 1969 (---) passou um ano na cadeia.

Desde então, publicou nove livros, alguns deles traduzidos para outraslínguas, atuou como colaborador em inúmeras obras, escreveu artigos eparticipou de mais de uma centena de palestras no Brasil e no exterior.

Ardoroso defensor dos direitos humanos, do ensino público, da democracia eestudioso da ética, Romano hoje dedica-se à academia. É livre-docente, adjunto e professor titular da Unicamp nas áreas de graduação e pós-graduação. Apesar dos predicados, prefere furtar-se do adjetivo de ser um dos grandespensadores brasileiros da atualidade; preza a modéstia. ‘‘Quando alguém é dito grande, o padrão é extremamente abstrato. Procuro somente fazer um trabalho crítico, de colaboração com a cidadania, e pesquisa’’.

Numa entrevista exclusiva a A Tribuna, concedida durante sua breve passagem pela Cidade na última sexta-feira — onde participou do projeto Público & Notório, um espaço de intercâmbio de idéias, promovido pelo Sesc — Romano falou sobre ética e moral no Brasil, política, intelectualidade, entre outros temas. Confira a seguir os principais trechos.

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A Tribuna — O sr. tem sido considerado um dos grandes pensadores brasileiros da atualidade. Como se sente com esse título?

Roberto Romano — Um dos problemas mais difíceis da vida intelectual é o da medida. Quando a pessoa diz ‘‘é grande’’ ou ‘‘é pequeno’’, normalmente me traz muita antipatia. Um intelectual que é muito produtivo, inteligente, sensível, pode o ser num determinado campo. Por outro lado, acho que pequenos trabalhos realizados por pessoas conscientes, modestas, não raro têm mais importância que muita presença na mídia.

AT — Mas o sr. é muito requisitado para palestras, seminários, entrevistas sobre os mais variados temas que inquietam a sociedade brasileira...

Romano — A minha palavra é importante não tanto pela minha pessoa, mas porque determinado assunto é importante. Às vezes, as pessoas não têm muita coragem de tocar nesses assuntos. E, normalmente, esses assuntos são polêmicos. Aí vem a idéia de que a pessoa que entra nisso é importante. Não é verdade.

AT — Na sua opinião, quem poderia ser considerado um grande intelectual ou teórico brasileiro?

Romano — Um grande teórico que conheci era um velhinho que era teólogo, filósofo, lógico e que ninguém conhecia, salvo as pessoas do convento. Elese chamava frei Guilherme Néri Pinto. Na época, o chamava de meu guru. Ele conversava sobre tudo, tinha uma profundidade de pensamento que era assustadora. Para se ter uma idéia, quando saiu o Catecismo Católico, ele escreveu um artigo abrindo a possibilidade da pena de morte na Igreja. Ele tinha 72 anos de idade e escreveu o artigo mostrando que o Catecismo estava errado.

AT — É aí que entra a questão da coragem do intelectual que o sr. tanto defende?

Romano — É. Para você ver o que é o peso de uma coragem. Porque todo mundo sabe que o papa João Paulo II é muito centralizador, não admitecontrovérsias. Então, esse velhinho vai e diz que a Igreja Católica pode serfavorável à pena de morte, pode não ser, que não há uma única saídadoutrinária. Pedi para ele um artigo, que iria levar para um jornal (de grande circulação nacional).

AT — E o que ocorreu? O artigo foi publicado?

Romano — No jornal, a pessoa que estava lá me perguntou imediatamente: — Ele é importante? Falei que era um dos mais importantes que conhecia (rindo). Aí ele me perguntou de novo: — Mas ele é conhecido, é um professor da universidade? Respondi que ele tinha dado aula na Universidade Católica de Belo Horizonte em 1954. Não publicou o artigo.

A Tribuna — Então, podemos abstrair daí que o sr. acredita que, no Brasil, o saber e o conhecimento por si sós não são suficientes?

Romano — Para você ver como a visão pode ser distorcida. Eu e todas as pessoas que trabalham nessa área de Filosofia e Teologia consideramos aquela pessoa importante. No entanto, como ela não tem o trato universitário, com as agências de pesquisas, com o Governo, só tem o trato com o saber, ela é considerada menos importante.

AT — O sr. tem afirmado que no Brasil existe uma grande confusão entre o campo ético e o moral e que há um abuso do uso da palavra ética. Qual a diferença entre um e outro?

Romano — Você pode dizer, em termos resumidos, que a ética é o conjunto de hábitos, atitudes e comportamentos que foram adquiridos em anos, em séculos de existência de uma sociedade. É um conjunto de atitudes, de valores que são automáticos para uma pessoa.

AT — É possível dar um exemplo?

Romano — O indivíduo nasce numa sociedade como a brasileira. Faz parte da ética a língua que ele aprende. Nessa língua estão incrustados valores. Quando você diz, por exemplo, que a situação está negra, isto é um juízo ético. Esses atos e esses valores são assumidos pelas pessoas sem pensar. Etimologicamente, ética significa postura. E a ética é muito conservadora. O ético você não pode tirar de você facilmente porque aquilo está na sua alma.

AT — E o moral?

Romano — O moral é justamente quando o indivíduo que vive nesse campo ético, quase que automático, encontra um problema que aquela ética não responde. Então, ele aprendeu, por exemplo, que os negros, que as mulheres, são inferiores, burros, e isso foi ensinado durante muitos séculos. E, de repente, no trabalho, na universidade, na rua, ele encontra um negro ou uma mulher inteligente, brilhante, com capacidade de liderança. Aquilo é um choque e o choque faz refletir.

AT — E como se dá essa reflexão?

Romano — A primeira reação seria procurar alguma resposta na ética. Mas chega um momento que ele percebe que aquela pessoa concreta tem valores e que aqueles valores desafiam a sua ética. Aí entra o terreno moral. O sujeito não encontra mais as respostas para o seu comportamento na família, na igreja, no partido político, na sociedade. Ele tem que escavar dentro de si para encontrar uma resposta.

AT — Podemos concluir então que a ética de um país, de uma sociedade pode ser negativa?

Romano — Um costume que foi aprendido há milênios e reiterado pode ser muito bom, mas pode ser também péssimo. E poucos grupos ou indivíduos percebem quando ele é péssimo. Sócrates, por exemplo, foi obrigado a tomar cicuta porque tinha uma moral que se chocava com a ética da cidade de Atenas. E Atenas não suportava que ele dissesse as coisas que ele pensava
das pessoas.

AT — Quais seriam os traços mais negativos da ética brasileira?

Romano — O trânsito brasileiro, por exemplo. Desde o começo da industrialização, e sobretudo depois de Juscelino Kubitschek, o carro virou sinônimo de status social, o que é uma tolice. A partir do momento que temos essa cultura, mesmo pessoas pobres, se estão nos seus carros, julgam-se superiores aos que estão simplesmente andando. O ético, o verdadeiro, é você não respeitar nenhuma regra de trânsito. É você subir na calçada, fazer rachas. Isso faz parte da nossa ética, mas é imoral.

AT — Por esse motivo é que o sr. defende que a ética brasileira precisa de um choque de moral?

Romano — É. Tem uma tese de um padre sociólogo que trabalha com populações escravizadas no Norte do País que levanta os motivos que levam muitos trabalhadores a se deixar escravizar. Muitos deles acreditam em valores éticos que são profundamente imorais. Por exemplo, as vendas nas fazendas comercializam produtos para eles que custam vinte vezes mais que o valor real. E eles ficam devendo e não saem da fazenda porque acreditam que é um dever ético ficar para pagar a dívida.

AT — O sr. acredita que existe uma ética de violência no País?

Romano — Desde a época do Império, criaram do povo brasileiro uma imagem de povo pacífico, de quebrador de galhos, etc. Nós esquecemos este lado extremamente violento de nossa sociedade. Aqui, você tem dois homens em um balcão de bar, um deles pede uma pinga e depois chega a hora do pagamento. Aí os dois começam a discutir quem é que vai pagar e isso acaba em matança.

AT — O sr. teria alguma tese para explicar o que nos leva a situações como essas?

Romano — Você tem aqui toda uma ética da masculinidade e da contraprestação de serviço na sociedade que leva a essa situação. Se, por exemplo, você deixa que o outro pague, você é inferior, é um pau-mandado. Essa ética da violência é a que foi ensinada pelos grandes fazendeiros e pelo próprio Estado brasileiro. É a ética da violência e do favor.

AT — Essa ética também nortearia a política nacional?

Romano — Como você capta votos no Brasil? Distribuindo favores e empregando a violência aos subordinados. Em termos éticos, tínhamos esse sistema perfeitamente regulado. Havia o fazendeiro, com seus capangas que eram pagos para impor a vontade do grupo político ou econômico ao qual pertenciam. Com o narcotráfico, o padrão está mudando. Escapa da sociedade o controle dessa violência.

AT— Nesse contexto, até que ponto o Estado democrático é responsável pela ética de um país?

Romano — O Estado brasileiro é um estado antidemocrático desde a sua origem. Sendo assim, a educação popular foi muito negligenciada. O que sobrou de tentativa de educação pública no Brasil foram os positivistas no final do Império, que asseguraram uma rede de educação popular que até hoje é a única que nós temos, que é o Sesc, Senac, Senai etc. Como é possível uma pessoa votar, se ela não tem adestramento? É uma situação muito complicada. Há uma massa imensa da população que não tem condições de acesso ao pensamento científico e tecnológico.

AT— O sr. foi um grande crítico do Governo FHC. Certa vez, em uma entrevista, afirmou que ele abraçou a via do possível.

Romano — Na história política moderna, e é isso que desacreditou muito o discurso político enquanto causador de mudanças, desde a Revolução Francesa, a esquerda assume o poder e faz o programa conservador. Isso se tornou muito mais grave desde a segunda revolução tecnológica, que deu ao capital financeiro uma capacidade de alocação e de desestabilização tremenda. No caso de FHC, era um grupo que tinha uma história de resistência à ditadura militar e que aderiu aos padrões da globalização, atingindo direitos tremendos da cidadania.

AT — Quais?

Romano — Quando houve o apagão, por exemplo. A pressão que ocorreu do Governo Federal para que o Supremo Tribunal Federal desse razão às medidas de supertaxação do contribuinte e a decisão que foi feita pelo Supremo foi de uma tristeza enorme. Alegaram que se o Governo não taxasse, a cidadania não iria colaborar e economizar. A cidadania não era culpada pela falta de investimento, de recursos e estava sendo culpada e caluniada pelos juízes que deveriam respeitar a cidadania. Isso foi um retrocesso político enorme.

AT — E quanto ao Governo Lula?

Romano — No caso do Governo FHC foi menos chocante porque nunca no período militar eles haviam assumido uma atitude de democracia radical. Mas o PT assumiu. Daí, durante 20 anos de sua existência a banda de música do PT era de democracia já, transparência já, CPI já, Fora FHC. Foi vendida para a população a imagem de um partido celeste, de uma virtude absoluta, e todos os demais eram farinha do mesmo saco. O problema é que eles assumiram, mas não tinham maioria parlamentar...

AT — E tiveram que fazer concessões para conseguir o apoio...

Romano — Como sempre, o recurso era a negociação. É dando que se recebe. E eles fizeram a troca de favor. Mas isso foi o menos chocante. Isso era esperado, qualquer analista político sabia disso. O mais chocante foi o PT aplicar medidas que ele denunciava há dois anos como absolutamente nocivas para a população, como a reforma da Previdência. Entre o que se esperava e o que aconteceu, o choque foi maior do que o do Governo FHC.

AT — Que reflexos esse tipo de atitude pode ocasionar?

Romano — Atitudes como essa deixam a população sem norte, sem rumo. Não se sabe mais em quem acreditar. Nesse momento, eu fico com muito medo de uma reação de multidão. Claro que você não vai ter uma revolução. Podemos ter um aumento da violência já tradicional e soluções de ordem imediata que vão levar a destruição da confiança no Estado.Seria a devoração da população por ela mesma.

AT — Existe uma saída para esse cenário caótico?

Romano — A saída é a cidadania se organizar e exigir a existência de um Estado controlado democraticamente. É preciso que seja feita a reforma política. Não podemos mais continuar elegendo um presidente da República plebiscitariamente, colocando uma esperança enorme a cada quatro anos, e esse sujeito toma posse e tem um parlamento representando oligarquias einteresses que nada têm a ver com a nacionalidade. Mas essa dificuldade de mudar, aí voltamos ao começo da conversa, é justamente porque esse tipo de comportamento ético não se confrontou ainda com toda a dimensão moral do que está ocorrendo no País.