terça-feira, 2 de março de 2010

A Unicamp, bem antes do atual debate, discutiu (com várias opiniões) o tema da liberdade de expressão. Retomo abaixo a matéria do Jornal da Unicamp.

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A liberdade de
expressão está em risco?

CLAYTON LEVY e EUSTÁQUIO GOMES


Luiz Inácio Lula da Silva concede entrevista após visitar seqüestradores do empresário Abílio Diniz, no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 15 de dezembro de 1998: do assédio da imprensa ao endosso de proposta polêmica (Foto: Leonardo Colosso / Folha Imagem)Ao longo das últimas duas semanas o governo Lula, eleito dentro de um contexto democrático, foi colocado sob uma suspeição inusitada: o de que estaria se deixando levar pela “tentação autoritária”. A pedra de toque foi o anteprojeto para a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes dos conselhos já existentes para as categorias de profissionais liberais como médicos e advogados. A grita foi geral: interpretou-se a medida como uma tentativa de controle da mídia e da liberdade de informação, com o risco adicional de que a tarefa possa vir a ser confiada a um braço sindical do governo. O governo se defende com o argumento de que “a sociedade tem o direito à informação prestada com qualidade, correção e precisão, baseada em apuração ética dos fatos”, conforme exposição do ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini.

Outros sintomas de “dirigismo” governamental foram evocados, como a tentativa de expulsão do jornalista do The New York Times em maio passado, o anteprojeto de lei que cria a Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav), o decreto que pretende proibir funcionários públicos de dar informações à imprensa, a tentativa de limitar o alcance da ação do Ministério Público e, por último, o decreto que permitiria ao governo, sem autorização adicional da Justiça, disseminar em suas instâncias executivas informações sobre pessoas físicas e jurídicas cujo sigilo fiscal, bancário e telefônico for quebrado.

Nesta e nas duas páginas seguintes, os professores Francisco de Oliveira (USP), Fábio Wanderley Reis (UFMG), Roberto Romano e Reginaldo Moraes, ambos do IFCH/Unicamp, na esteira dos desdobramentos da polêmica, avaliam as intenções do governo.

Jornal da Unicamp – Segundo os críticos dessas medidas, o que está por trás do “pacote regulador” do governo é um esforço de apropriação da informação pública. Ou seja, o governo gostaria de controlar a qualidade da informação que chega à sociedade e, ao mesmo tempo, ter acesso livre e privilegiado a informações sigilosas sobre os cidadãos. Como o senhor analisa essa postura? O senhor vê nisso algum risco ou os críticos estão vendo fantasmas?

Fábio Wanderley Reis – Creio que “algum risco” certamente existe. Acho negativo sobretudo o fato de termos simultaneamente várias iniciativas, o que lhes dá o caráter de “pacote” de que fala a pergunta, e as origens do PT (e mesmo algumas experiências de governo, como eventos ocorridos, por exemplo, na seleção de professores durante o governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul) permitem supor que setores do partido se apeguem a uma perspectiva ideológica sectária e de fraco compromisso com os princípios da democracia liberal e das liberdades civis.

Francisco de Oliveira – Não acho que os críticos estejam vendo fantasmas. Acho que os críticos estão apenas incidindo que isso é uma característica do governo Lula. Na verdade, a coisa é mais grave. Os Estados da periferia do capitalismo estão condenados a ser Estados de exceção. São Estados pré-totalitários. Para agüentar o rojão da globalização desenfreada, eles tentam conter e controlar todos os limites da sociedade e da economia. Isso leva à banalização do instituto da Medida Provisória. Qualquer crise na periferia torna-se urgente e o Estado, então, utiliza esses mecanismos de exceção. No caso da informação, é o que está se apresentando.

Reginaldo Moraes – As palavras não são inocentes. Apropriação da informação pública? Quem se apropria? E quem é expropriado? De quem é, hoje, essa informação que se diz “pública”? Nesse campo, como diz o ditado, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Qualquer jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça – e que não correspondesse àquela de seu patrão – sabe do que estamos falando.

Será que temos mesmo dirigismo governamental, com a criação desse conselho? Engraçado é ver um detalhe desse projeto de lei enviado ao Congresso – e que não foi iniciativa do governo, mas da Federação dos Jornalistas, há vários anos. Ele disciplina a composição do Conselho. E ele... não tem representantes do governo. Detalhe singelo. A liberdade de imprensa atualmente em uso permite, por exemplo, que centenas de páginas e horas de transmissão de rádio e tevê tenham sido produzidas por esse assunto sem que certas pequenas coisas tenham sequer sido mencionadas. Por exemplo, essa, que os conselheiros serão eleitos entre todos os jornalistas profissionais. Não serão nomeados pelo governo.

Curiosamente, também, sequer notícia breve se registrou sobre o fato de que o Congresso Nacional de Jornalistas, recém-realizado na Paraíba, apoiou unanimemente o envio do projeto de lei. TVs, jornalões e rádios não deram essa notícia, nem para dizer que esses jornalistas são doidos: melhor não dizer, não é mesmo?

Os críticos não estão vendo fantasmas, não. Eles estão muito lúcidos. Estão atirando naquilo que vêem. Mas querem que pensemos que atiram em outra coisa. A “informação que chega à sociedade” não “chega” – é levada por alguém. Alguém que quer permanecer na sombra.

Roberto Romano – Tenho uma posição antiga sobre o tema. Em dois livros (O Caldeirão de Medéia e O Desafio do Islã) trato da situação contraditória seguinte: quanto mais os governos tornam-se opacos para os cidadãos, mais a cidadania é submetida às lentes dos administradores e perde condições de se defender da espionagem (CIA ou Abin, pouco importa o nome), da Receita Federal, etc. Esse problema é antigo e tem a idade do próprio Estado moderno. Todos os debates internacionais de hoje, no mundo acadêmico e político, sobre a razão de Estado, o encaram. Assim, o nosso governo de hoje nem é original. Ele retoma a prática de controlar os cidadãos para obter o monopólio das informações, com o uso de seus “quadros” em organismos para-estatais, como a Federação de Jornalistas, etc.

Quando governos querem o monopólio das notícias e das análises, eles deixam o terreno do jornalismo e penetram o campo da propaganda. Para os teóricos nazistas e todos os demais doutrinadores autoritários de “esquerda” ou “direita”, a liberdade, a democracia, os direitos são apenas relativos, jamais absolutos. É um modo de afirmar que a liberdade de imprensa, os direitos dos indivíduos, e tudo o que é mais sagrado na vida ética e moral, são relativos aos direitos do governo.

Os atuais dirigentes brasileiros herdaram uma visão instrumental das instituições e das prerrogativas jurídicas. Devem ser preservadas, no seu entender, apenas as formas que permitem aos partidos políticos a permanência nos palácios. Sua idéia sobre o mundo estatal enquadra-se perfeitamente nas figurações coletivistas do século 19 e 20. Elas estão longe de serem adequadas ao Estado democrático de direito. As investidas do atual chefe da Casa Civil, do ministro do Trabalho, do ministro encarregado pela Comunicação e, o mais espantoso, do próprio ministro da Justiça contra a imprensa ecoam perfeitamente as palavras emitidas em 1985 pelo então candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sobre as liberdades: “Acho que a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões” (Folha de São Paulo, 29/12/1985). As últimas medidas anunciadas pelo governo são “mecanismos” supostamente para garantir a palavra à sociedade, mas de fato dirigidas para impor teses favoráveis aos ocupantes ocasionais do governo. Todo um programa é agora implantado sine ira et studio, numa ideologia que se corporifica em atos normativos e reguladores. Fantasmas ?

Gostaria de lembrar que o escrito mais lúcido e alerta sobre os golpes de Estado, na literatura mundial, começa com as advertências de um fantasma. Refiro-me ao Hamlet de Shakespeare. O desenrolar da peça evidencia que mais fantasmagórica era a “realidade” do golpe de Estado. Este último não precisa ser cruento ou militar. Ele pode surgir como eficaz veneno, imperceptível para a opinião pública. Recordo também as análises de pesquisadores ligados à “Escola de Frankfurt” sobre a maneira pela qual os nazistas se apoderaram da imprensa alemã: compravam um jornal, mantinham a diagramação e introduziam paulatina e cautelosamente novos conteúdos, os almejados pelo partido. E grande parte dos leitores não percebeu a mudança. É o mesmo que se passa com as medidas “disciplinares” do governo brasileiro em relação à imprensa. As doses são homeopáticas mas o alvo é ampliar o monopólio do governo no mundo cultural. Quando ocorrem processos dessa natureza, o despertar é amargo. É preciso notar a técnica usada pelos partidários do governo (incluindo a Federação dos Jornalistas): repetir sempre a mesma tecla e atacar as pessoas que se recusam submissão aos ditames da hora. Tais métodos são fascistas e devem ser rechaçados enquanto é tempo.

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Três cientistas sociais e um filósofo avaliam o‘pacote’ do governo no campo da informação


continuação da página anterior

JU - O fato de essas medidas estarem ocorrendo em bloco caracteriza um programa político com viés de dirigismo cultural e estatal?

O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor da UFMG (Foto: Jefferson Coppola/ Folha Imagem)Fábio Wanderley - Como dito na resposta anterior, é sem dúvida um aspecto negativo e talvez o que mais justifica preocupação. Creio que há matizes muito importantes a serem observados. Quanto à questão da imprensa, por exemplo, embora a liberdade de imprensa e de expressão seja sem dúvida um valor crucial, é preciso reconhecer que a imprensa tende também a atuar, com alguma freqüência, de maneira que compromete dramaticamente os direitos dos cidadãos (a Escola de Base, Alceni Guerra e a movimentação financeira de Ibsen Pinheiro são clamorosas ilustrações disso que agora estão em foco), e não há nenhum sacrilégio em se colocar o problema de como regulá-la mais efetivamente.

Naturalmente, dada a delicadeza do assunto, o trabalho de construção institucional requerido é inevitavelmente complexo (não creio que o Conselho tal como sugerido seja a resposta adequada). Mas a reação da imprensa a respeito me parece exagerada e bem indicativa, na arrogância profissional que revela, dos perigos que uma imprensa irresponsável pode representar: note-se que a revista “Veja”, cuja leviandade em questões que envolvem a honra alheia ficou patente no caso Luiz Costa Pinto/Ibsen Pinheiro, não faz mais que “lamentar” em duas ou três linhas o erro cometido – muitos anos depois –, e não há nos outros órgãos muitas manifestações negativas sobre o assunto.

E casos como os três citados deixam claro que a possibilidade de recorrer à Justiça (como reconheceu pelos jornais, aliás, o próprio presidente do STF) é insuficiente como forma de obter reparação apropriada: afinal, a Justiça é lenta, além de ser de difícil acesso para o cidadão comum. Acho que argumentos do mesmo tipo recomendariam também que haja algum tipo de limitação à presteza do Ministério Público na divulgação de informações surgidas de suas investigações. Mas, em contraste com esses casos, acho muito mais problemática, por exemplo, a proibição de que funcionários públicos falem à imprensa. E a Ancinav me parece envolver uma tentativa inaceitável de impor certo tipo de conteúdo (nacionalista, social) à produção artística ou cultural.

Francisco de Oliveira - Sem dúvida. Há uma velha síndrome de dirigismo dos partidos de esquerda, isso não é exclusivo do PT. O PT, entretanto, ao chegar ao governo, constata que é impotente para dirigir o movimento da globalização. Volta-se então para atividades e setores que possam ser dirigíveis. É um sintoma grave, que ocorre no mundo todo; na periferia, porém, tem efeitos devastadores.


"Embora a liberdade de imprensa e de expressão seja sem dúvida um valor crucial, é preciso reconhecer que a imprensa tende também a atuar, com alguma freqüência, de maneira que compromete dramaticamente os direitos dos cidadãos" Fábio Wanderley Reis

O cientista social Francisco de Oliveira, professor da USP (Foto: Anrtoninho Perri)Reginaldo Moraes - Ocorrem em bloco? Não creio que se possa dizer isso. Quanto a dirigismo, o fato é que uma parte grande, mas muito grande, da mídia impressa, radiofônica e televisada está hoje bastante dirigida... por um punhadinho de empresas, que, em princípio, fazem o que querem, do jeito que querem. Alguém alguma vez chamou isso de dirigismo e manipulação? Sim, mas não aqueles que agora usam o termo. Especialistas no assunto – coisa que não sou – já mostraram o poder da grande mídia no sentido de “fazer a agenda”. O que a mídia faz não é, necessariamente, convencer você a respeito da pena de morte, da prisão para menores de 18 anos, da relevância da revelação do pai da filha da Xuxa para os destinos da infância brasileira.

Não, o que a mídia faz é marcar esses assuntos como aqueles que devem polarizar a atenção das pessoas, os temas sobre os quais as pessoas devem opinar e segundo os quais elas devem ser classificadas e julgadas. Isto canaliza o debate e as decisões. Não se vai exigir de um candidato a deputado suas opiniões sobre a política de ensino superior, de ciência, de iniciativa cultural, de saúde pública, mas vamos ver se ele é favor da pena de morte ou contra... Se ele tentar dizer que não é essa a pauta importante, é bem possível que o desqualifiquem. Ele “está fugindo da questão”.

O professor Reginaldo Moraes, titular do Departamento de Ciência Política do IFCH/Unicamp (Foto: Antoninho Perri)

JU - É possível implantar-se um projeto dessa natureza nesta altura do processo democrático brasileiro, sobretudo levando-se em conta que tal projeto advém de forças políticas que construíram sua reputação na luta contra a repressão da ditadura militar?

Fábio Wanderley - Na verdade, não acredito que seja possível, mas justamente porque suscita resistências muito grandes (quer se trate propriamente de um “projeto” ou simplesmente de manifestação de um cacoete autoritário de certos setores do governo ou do PT). De toda maneira, não me parece que seja o caso de ficarmos todos muito tranqüilos simplesmente porque houve a luta contra a ditadura.

“Do ponto de vista da opinião pública, isso é uma agressão flagrante. Mas, se há possibilidade de aprovação pelo Congresso, acho que existe risco. Exatamente porque todos os partidos viraram organismos estatais” Francisco de Oliveira

Francisco de Oliveira - Os partidos, ao chegarem ao governo, se estatizam. Na verdade, acabam virando órgãos do Estado, ao invés de partidos, de modo que a história pregressa não vale muito. Essa memória rapidamente se perde. Além do que, no PT, há transformações internas de monta, que já tenho analisado em alguns trabalhos. O PT vem sendo controlado por uma nova classe social que emergiu dentro do partido, particularmente porque é um núcleo forte de sindicalistas. Eles viraram administradores de fundo de pensão e, mais recentemente, altos executivos. Isso não só influenciou como mudou a natureza do partido. Ele não pode mais ser visto como partido dos trabalhadores. Ele inclui ainda trabalhadores, mas houve uma transformação importante em suas estruturas internas. O que houve foi uma união definitiva entre esses sindicalistas e a parte propriamente política do PT, que veio de outras experiências de esquerda. Hoje, todas as correntes foram marginalizadas, tanto aquela mais à esquerda como a católica.

Portanto, o PT não tem nenhum escrúpulo e está se comportando como qualquer partido estatizado. Nesse contexto, vejo pouco risco na viabilidade de implantação de um projeto dessa natureza. Já do ponto de vista da opinião pública, isso é uma agressão flagrante. Mas, se há possibilidade de aprovação pelo Congresso, acho que existe risco. Exatamente porque todos os partidos viraram organismos estatais.

O filósofo Roberto Romano, do Departamento de Filosofia do IFCH/Unicamp (Foto: Foto: Neldo Cantanti)Reginaldo Moraes - De fato, o projeto advém de quem lutou contra a ditadura. E a reação negativa ao projeto, em grande medida, de quem dela se beneficiou. Ou não? Mas a dificuldade para fazer andar alguma democratização da mídia, no Brasil, vai muito além disso.

Coincide com o fato de que, nas empresas de comunicação, como nas demais, reina o despotismo do capital, porque o trabalho não pode se organizar, opinar, etc. No Brasil não temos a garantia da liberdade de organização sindical nos locais de trabalho, nunca tivemos – não assombra que os donos dos meios de comunicação esperneiem.

Roberto Romano - É bom que se tenha a exata dimensão das coisas no mundo do pensamento político e ideológico. Boa parte dos que hoje tentam controlar o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa, a mídia e os audiovisuais, lutaram contra a ditadura. Mas não em nome de uma democracia que, para eles, é apenas sinônimo de “liberalismo burguês”. Eles lutaram para implantar um projeto cujo paradigma estava diante de seus olhos, na figura da URSS, “da pequenina e brava Albânia”, da Coréia, etc. Sua consciência foi produzida, desde a juventude, em moldes antidemocráticos. Eles aprenderam que o centralismo partidário, com o evidente dirigismo (a famosa “linha política” e a “palavra de ordem”) é o único meio de se transformar a sociedade e o Estado. Por motivos eleitorais, boa parte dos que hoje se encontram no governo assumiram de boca para fora os valores democráticos. Ninguém, no entanto, deixa hábitos antigos —sobretudo os do pensamento – de modo súbito. Um stalinista não se torna democrata repentinamente. Esta verdade está sendo vivenciada entre nós.

JU - Há a hipótese de que, ao propor medidas que julgava boas, o governo cometeu um erro de conceito e de forma, sendo surpreendido pela reação da sociedade. Nesse caso, o ônus a ser pago pelo governo será alto, o lucro nenhum e o recuo inevitável. Este cenário é possível?

Fábio Wanderley - Acho que sim, e na minha opinião é o que provavelmente acontecerá, ainda que o recuo possa ocorrer num aspecto e não em outro, ou ser maior num aspecto do que em outro.

Francisco de Oliveira - Em primeiro lugar, não se trata de erro de concepção do governo. Esta é a concepção do governo, de modo que não se tratou de equívoco ou de cochilo durante o qual passaram essas proposições. Agora, de fato ele está surpreendido com a reação da sociedade e de uma mídia que é bastante poderosa. Desse ponto vista, por causa dessa reação, provavelmente ele vai recuar. Não sei em que sentido nem em que novas proposições, mas provavelmente vai recuar. Até mesmo o Congresso será capaz de, quem sabe, jogar na gaveta esse tipo de projeto, mas não se tratou de equívoco de concepção. Essa é a concepção que está presidindo as estruturas dirigentes do PT hoje em dia.

Reginaldo Moraes - Reação da sociedade? De que “sociedade”? Quem, hoje, detém poder nesse campo? Seria necessário fazer um balanço de quem controla a mídia brasileira, de seu grau de endividamento e dependência frente a bancos credores e frente ao próprio governo federal. Consta que o maior grupo do país está enforcado e retido na coleira. Que um dos maiores jornais do país – famoso pelas suas posições liberais – está nas mãos de um grande banco, porque destruído financeiramente pelos seus antigos proprietários. Há, além disso, uma enorme e pouco clara rede de comunicações nas mãos de pastores eletrônicos de todo tipo. É essa a “sociedade” que reage ao Conselho?

"De fato, o projeto advém de quem lutou contra a ditadura. E a reação negativa ao projeto, em grande medida, de quem dela se beneficiou. Ou não? Mas a dificuldade para fazer andar alguma democratização da mídia, no Brasil, vai muito além disso" Reginaldo Moraes

Roberto Romano - Que existam prejuízos, isso é evidente. Já não é tão evidente que eles sejam para o governo. O Brasil é o país onde a oposição é proibida. Essa verdade não se deve apenas aos que estão no poder, mas liga-se à subserviência generalizada. Assim, o governo pode sair-se muito bem dessa enrascada, como tem conseguido escapar de situações desesperadas, como por exemplo o caso Waldomiro Diniz, do assassinato dos prefeitos de Campinas e de Santo André. O Brasil, com o atual governo, amplia seu destino de ter como lema e prático o famoso “é dando que se recebe”.

JU - Mas há também a hipótese de que o governo, sentindo-se forte com os primeiros sucessos na economia, esteja disposto a pagar o preço moral e lançar “redes de segurança” (sobretudo no plano da informação) que lhe garantam sua continuidade no poder. Teríamos assim uma espécie de chavismo à brasileira. O senhor acredita nisso?

Fábio Wanderley - Não acredito, pois creio que a aposta aí contida envolveria um grande erro de avaliação: o governo estaria abrindo uma caixa de Pandora que com certeza se voltaria contra ele.

"O governo pode sair-se muito bem dessa enrascada, como tem conseguido
escapar de situações desesperadas, como por exemplo do caso Waldomiro Diniz, do assassinato dos prefeitos de Campinas e de Santo André” Roberto Romano

Francisco de Oliveira - O problema do chavismo é muito mais complexo. O chavismo é uma espécie de recurso do culto a Bolívar numa sociedade em que há uma forte decomposição de classes. A Venezuela não tem operariado. E o pouco operariado que tem é um aliado do grande capital ligado aos negócios do petróleo. A grande massa do povo venezuelano só pode ser atingida através de medidas, que são a característica do chavismo. São aquelas que a literatura clássica apontava como típicas do populismo.

A tentativa desse populismo é a de incluir essas classes, que na verdade não são mais classes, na política. As que estão incluídas na política pendem todas para a direita. Algo semelhante está se passando no Brasil devido também à decomposição da classe trabalhadora. Ela foi varrida pela globalização e pela reestruturação produtiva; é uma classe que está com 20% de desemprego e com uma alta informalização. Há uma devastação de classes no Brasil à qual o governo federal tenta resolver com esse processo de permanente aparição do presidente na mídia. Esse é um recurso midiático para socorrer na verdade o que é fraqueza do governo. É uma ilusão pensar que o governo é forte. Ele, ao contrário do que arrota, é fraquíssimo e está completamente prisioneiro do capital financeiro. Veja-se agora o foro privilegiado do senhor Henrique Meirelles. Isso mostra que o governo capitulou, transformando-se em prisioneiro desses interesses. Esses recursos são típicos de uma situação em que você não tem realmente a hegemonia.

Reginaldo Moraes - Chavismo à brasileira? Chavez é Chavez, Venezuela é Venezuela. Outra coisa é outra coisa. Mas, se quisermos falar em chavismo seria bom dizer também o que são os donos de meios de comunicação daquele país e quais são suas democráticas iniciativas. Por que não se fala então de “bushismo à brasileira” ? Quando se iniciou a criminosa invasão do Iraque, houve um massacre de mídia “patriótica” para conseguir apoio popular àquela aventura. Hoje, é claro, não convém mencionar o tema.

Temos, de novo, essa idéia de segurar informação e manipular. Volto a perguntar: quem é o conselho? Quem o compõe? Quem tem medo de jornalistas intervindo no modo de operar das empresas de comunicação, tendo atrás de si a autoridade de um conselho profissional eleito, como têm os médicos, os dentistas, os advogados, os contabilistas...? A quem interessa?

Roberto Romano - Sim, acredito. E sinto muita tristeza. Heine, o grande poeta romântico, dizia que ao pensar na Alemanha, à noite, chorava. Eu tenho pesadelos com o Brasil. Duas ditaduras no século 20, e ainda possuímos consciências formadas na pedagogia da servidão. Enquanto isso, pesquisas dizem que a massa, na sua maior parte, está disposta a aceitar qualquer governo, mesmo ditatorial, que “resolva os problemas econômicos”. Como dizia outro poeta: “o ventre da besta é fértil…”.

Colaborou Álvaro Kassab