sábado, 21 de agosto de 2010

Mesmo assunto do post anterior.

São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010



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ANTONIO CICERO

Originalidade e plágio


Usar, no interior de uma obra, um texto que seja universalmente conhecido, de outro autor, não é plágio



RECENTEMENTE, Helene Hegemann, uma jovem alemã de apenas 17 anos, fez grande sucesso de crítica com seu primeiro romance, intitulado "Axolotl Roadkill". O problema é que logo se descobriu que longos trechos desse romance haviam sido copiados da obra de um autor menos conhecido. Pois bem, longe de pedir desculpas pelo plágio, a moça afirmou que "não existe originalidade; o que existe é autenticidade". Ao que um crítico comentou, com razão: "De fato, trata-se de um autêntico roubo".

É evidente que o fato de não haver originalidade absoluta não significa que não haja originalidade relativa ou que esta não possa em princípio ser conferida. Do contrário, o que justificaria chamar a própria Helene Hegemann de AUTORA de "Axolotl Raodkill"?

Contudo, a falsa tese de que simplesmente não existe originalidade tornou-se trivial nesses tempos de internet e de "cópia e cola", e é frequentemente invocada, nos Estados Unidos (será diferente no Brasil?) por alunos universitários acusados de plágio. Segundo a antropóloga Susan D. Blum, professora da Universidade de Notre Dame, em Indiana, "nossa noção de autoria e originalidade nasceu, floresceu, e pode estar murchando".

Ora, essas ideias da professora Blum parecem-me remontar ao (eu quase disse: "parecem-me ORIGINAR-SE no") ensaio "A Morte do Autor", escrito por Roland Barthes no ano de 1968. "A escritura", lê-se ali, "é a destruição de toda voz, de toda origem".

Tudo o que o escritor pode fazer é "imitar um gesto que é sempre anterior, jamais original. Seu único poder é o de misturar escrituras, opor umas às outras, de modo a jamais repousar em nenhuma". Suponho que isso seja o que o próprio Barthes fez em seus livros. Seria então aceitável que outro escritor pretendesse ser o autor desses livros?

O sentido mais legítimo da retórica da "morte do autor" é o de programaticamente afirmar a autonomia do objeto dos estudos literários -a autonomia do texto- contra a sua redução à psicologia, à história, à filosofia etc. Hegemann se sente capaz de empregar a mesma retórica para justificar o plágio porque, independentemente das intenções de Barthes, ela, como tantos outros, apropriou-se de tal figura para os seus próprios fins. Afinal, ele mesmo declarava que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor".

De todo modo, ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja "uma figura moderna, um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da "pessoa humana'".

A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica. Só as culturas orais primárias não a conheciam. Assim, é possível, por exemplo, que "Homero" fosse, na cultura oral primária, um nome genérico para determinado tipo de bardo, porém seria absurdo dizer algo semelhante de poetas líricos como Píndaro, Safo, Teógnis etc.

Normalmente, copiar uma obra ou um trecho de uma obra ipsis litteris, sem nada lhe modificar ou adicionar, e pretender ser o seu autor é inadmissível em qualquer sociedade letrada, pois não passa de impostura.

Contudo, usar, no interior de uma obra, um texto que, tendo sido escrito por outro autor, seja universalmente conhecido, não constitui plágio, mesmo que a fonte não seja citada. Assim podiam na Antiguidade clássica ser usados, por exemplo, os poemas atribuídos a Homero. Assim também podem ser usados os versos "No meio do caminho da nossa vida" e "E agora, José", no Brasil contemporâneo.

Se acusado de plágio, um poeta que use versos tão famosos pode dar ao acusador a mesma resposta que Brahms deu aos críticos que observaram uma grande semelhança entre um trecho de sua primeira sinfonia e um trecho da última sinfonia de Beethoven: "Qualquer imbecil percebe isso".

Já copiar uma obra pouco conhecida, como Helene Hegemann fez, é inaceitável, pois lesa o seu autor. A bem da verdade, o crítico francês Roger Caillois admite uma possibilidade legítima de fazê-lo. Para ele, sempre se justifica a apropriação de uma obra medíocre, caso o resultado seja uma obra-prima: mas as obras primas são muito raras.