domingo, 15 de agosto de 2010

Uma história do Brasil, resumida.

São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2010



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MINHA HISTÓRIA JOSÉ CLEVES DA SILVA

Culpado por suspeita

Foram três tiros na cabeça de minha mulher

O delegado, agora no caso Bruno, tentou me incriminar Decidi, então, investigar o caso por conta própria

Bruno Magalhaes /Folhapress

O repórter José Cleves da Silva posa para foto

RESUMO
José Cleves da Silva era repórter especialista em apurar casos de corrupção policial quando, aos 50 anos, foi vítima de um assalto e perdeu a mulher, Fátima Silva, 39, assassinada. Cinco dias depois, passou de vítima a suspeito: foi indiciado por homicídio pelo delegado Edson Moreira -hoje responsável pelo caso Bruno. Cleves provou falhas na investigação da polícia e foi absolvido. Os assaltantes nunca foram presos.

CRISTINA MORENO DE CASTRO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Foi em 10 de dezembro de 2000, por volta de 20h, em Belo Horizonte. Eu e minha mulher voltávamos das compras de Natal. Carro parado, a gente tentava acessar a via expressa quando veio o barulho: um cara batendo, arma na mão, pedindo para baixar o vidro. Eram dois homens, um de cada lado do veículo.
Entraram, mandaram tocar para um ambiente ermo. Senti a arma na minha nuca. Pegaram R$ 500. O que estava do meu lado viu o celular da minha mulher, pediu, ela assustou, o celular caiu. "Então toma", ele falou. Disparos na frente do meu nariz. Três tiros na cabeça dela.
Eles correram. Comecei a tremer, entrei em pânico, gritei. Fui para a via chamar socorro, até que chegou a cavalaria. Não tinha mais o que fazer. Ela já estava morta.

A ACUSAÇÃO
Na época eu estava em conflito com a cúpula das polícias Civil e Militar. Vinha de uma sequência de reportagens publicadas pelo jornal "Estado de Minas". Fui finalista do prêmio Esso de jornalismo três vezes, denunciando a corrupção policial.
No dia 12, o secretário de Segurança Pública designou um delegado para investigar a morte de minha mulher, Edson Moreira, esse mesmo do caso do goleiro Bruno.
De um dia para o outro, me informaram que foi encontrada uma arma lá. Essa arma era de um cabo da PM e esse cabo teria dito que ela foi comprada por mim. No dia 15, fui indiciado pelo homicídio de minha mulher.
Tem que ter motivação para matar a mãe dos seus cinco filhos. Eu não tinha. Minha testemunha central era minha sogra, que me defendeu. Meus filhos ficaram comigo. Não sabiam se choravam pela perda da mãe ou pela injustiça da polícia.

A COBRANÇA
Edson Moreira tinha quatro laudos, nenhum me incriminava. Não pus a mão naquela arma, não era a mesma do crime. O que o delegado fez? Mandou reter os laudos no Instituto de Criminalística para que o promotor não tivesse conhecimento deles.
O indiciamento foi aberto à imprensa, um teatro, e ali ele disse: "Como você explica o fato de que a arma encontrada, segundo a balística, é a mesma do crime?". Mentiu descaradamente. Respondi: "Se a arma é a mesma, que o senhor procure o dono, ele deve saber o que aconteceu".
Para justificar que não tinha pólvora no meu braço, resolveram colocar no laudo que usei luva. Fizeram uma segunda foto. A primeira tinha uma arma em cima de uma pedra. Fizeram uma montagem incluindo a luva.
Como é possível uma pessoa comprar a arma de um desafeto, matar a mulher sem nenhuma motivação, usar luva para apagar as provas e depois deixar a luva e a arma e chamar a polícia?
Uma semana após o assalto, vi que a imprensa embarcou na versão da polícia.
Em 21 de janeiro de 2001, a TV Globo fez reportagem sobre o caso. No dia seguinte, fui chamado de assassino por uma mulher na presença de minha filha, que disse: "Mulher feia, né, papai!".
Fui pré-julgado. É o que está acontecendo agora no caso Bruno. Não vejo a mídia questionar o delegado.
O "Estado de Minas" temeu corporativismo e imaginou que eu tinha cometido o crime. Não pagou meu advogado [Marcelo Leonardo, então presidente da OAB-MG].
Vendo que era crime contra liberdade de imprensa, meu advogado comprou a briga. De graça. Deixei o jornal, pois não tinha apoio.

A REAÇÃO
Em agosto de 2001, eu, meu filho mais velho e dois colegas começamos a investigar o assalto. Chegamos à quadrilha. Mas o rapaz que havia matado minha mulher tinha sido assassinado.
Enquanto isso, tive que implorar para não ser preso. Me submeti a humilhações da polícia, como, por exemplo, ser obrigado a reconstituir o assalto no mesmo carro ensanguentado e com as marcas recentes do crime.
Houve perseguição, coação de testemunha, telefone meu grampeado. O negócio não foi fácil, não. A gente se sente muito pequeno diante da opressão. A polícia já é uma instituição forte e, com a opinião pública a favor, com colegas meus achando que eu era criminoso, o processo se encaminhando daquele jeito, você vai fazer o quê?
Fiquei sem um tostão. Perdi meu apartamento. Fiz bicos. O diretor de um clube se negou a aprovar a minha ficha de sócio, alegando que eu era criminoso. É difícil retomar a vida quando a sociedade o tem como criminoso.

A REDENÇÃO
O julgamento foi dia 7 de abril de 2006. Fui absolvido por 7 a 0. O Ministério Público recorreu ao Tribunal de Justiça, ao STJ e ao STF e eles negaram todos os recursos.
Meu advogado elaborou um processo por danos morais contra o Estado, que tinha a obrigação de punir os matadores da minha mulher e em momento nenhum investigou o assalto.
Pelo contrário, o Estado em vez de investigar e punir os matadores, foi querer imputar a mim -a única testemunha do fato e vítima- a culpabilidade. Não interessava o assalto. Interessava tirar este repórter que incomodava muito à polícia.
Foi por isso que decidi escrever "A Justiça dos Lobos", livro que acabou publicado no ano passado.
Fui absolvido. Minha grande preocupação, agora, é o futuro da imprensa.


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PROFISSÃO PERIGO
Jornalista narra em livro a armação de que foi vítima

Por Jorge Fernando dos Santos em 28/7/2009

A Justiça dos Lobos – Por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus, de José Cleves da Silva, edição independente

Muito se fala em jornalismo investigativo, uma prática nem sempre presente nos jornais de hoje e que já glorificou muitos profissionais do ramo. No entanto, a dedicação ao trabalho e o compromisso com a verdade – doa a quem doer – podem ter um desfecho fatal, como o ocorrido com Tim Lopes, repórter da TV Globo queimado vivo por narcotraficantes numa favela carioca em 2 de junho de 2002. O episódio chocou a opinião pública e resultou na prisão e condenação de Elias Maluco e seus comparsas.

Dois anos antes, em Belo Horizonte, o jornalista José Cleves da Silva desceu aos infernos depois de ver a própria mulher ser assassinada durante um assalto. Não bastasse o choque da perda, o então repórter do Estado de Minas, jornal dos Diários Associados, viu-se convertido de vítima de assalto e testemunha do crime à condição de réu. Inocentado pela Justiça depois de oito anos de angústia, danos morais e materiais, ele narra a trágica história no livro A Justiça dos Lobos – Por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus. Publicação independente, a obra foi lançada em 30 de junho deste ano, numa solenidade promovida pela Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais com apoio do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais.

Premiado diversas vezes pelo teor de suas reportagens, José Cleves cultivou uma galeria de desafetos, que vai da máfia dos garimpos clandestinos a policiais acusados de envolvimento com caça-níqueis, venda de armas e de carteiras de habilitação. Ele também cobrava das autoridades maior investimento em segurança pública. No final dos anos 90, chegou a denunciar a manipulação de dados estatísticos referentes à criminalidade na Grande BH. O episódio brutal que mudaria para sempre sua vida ocorreu às vésperas do lançamento do seu primeiro livro, Distrito Zero – Memórias de um Repórter, no qual aborda o caso Baumgarten e a morte de Mário Eugênio, repórter do Correio Braziliense executado por policiais do esquadrão da morte de Brasília em 1984.

Três tiros na noite

A mulher de José Cleves, a enfermeira Fátima Aparecida de Abreu Silva, de 39 anos, foi morta no domingo, 10 de dezembro de 2000, por volta das 20h30. Segundo o jornalista, estavam a caminho de casa depois de visitar a irmã dela no bairro Camargos, Região Noroeste de BH. Assim que ele embicou o carro na Via Expressa Leste Oeste, surgiram das sombras dois jovens de no máximo 18 anos, que agiram depressa e sorrateiramente. A dupla se posicionou dos dois lados do Santana Quantum dirigido por ele, que sequer teve tempo de esboçar reação. Aquele que estava do seu lado apontava-lhe um revólver "preto e reluzente". Ocuparam o banco de trás do veículo, ordenando que ele tocasse em frente e entrasse numa rua à direita, logo adiante.

No momento em que o assalto se iniciava, Fátima Aparecida estava ao celular, falando com o filho Paulo. Mãe zelosa, ao se dar conta do ocorrido, perguntou como estava a caçula, Sandrinha. "Cuida da sua irmã", foram suas últimas palavras ao telefone. Os bandidos fizeram José Cleves parar o automóvel num quarteirão deserto e escuro, tomaram dele R$ 200 e esvaziaram a bolsa de sua mulher.

Quando os bandidos já saíam do carro, aquele que empunhava a arma viu o celular na mão de Fátima Aparecida e gritou para que ela o entregasse. Descontrolada, quase em pânico, ela deixou o aparelho cair no asfalto. "Toma", gritou o meliante, alvejando-a com três tiros na cabeça. Ao ver os dois bandidos sumirem na escuridão, José Cleves tentou arrancar o carro, mas não conseguiu. Tentou telefonar para a polícia, mas seus dois celulares estavam sem bateria. Correu para a avenida ali perto e em vão acenou para os carros que passavam. Encontrou um rapaz de camisa branca, que veio em sua direção, e pouco depois dois cavalarianos da PM, que constataram a morte de sua mulher. Mesmo transtornado, ele fez questão de prestar depoimento naquela mesma noite. Dois dias depois, passou à condição de suspeito.

Falhas e contradições da acusação

Mesmo sendo um repórter de polícia que sofria ameaças constantemente, José Cleves viu boa parte da mídia voltar-se contra ele. Pouco a pouco, os veículos de comunicação passaram a enfatizar a versão oficial apresentada pela polícia e pelo Ministério Público, sem atentar às contradições do processo ou sequer ouvir o outro lado. Não fosse pela solidariedade de familiares seus e de sua mulher, dos cinco filhos ainda menores de idade e de alguns poucos colegas de profissão – já que muitos passaram a evitá-lo –, ele poderia dizer que ficou sozinho diante dos lobos. De uma hora para outra, passou a viver o outro lado da notícia. De repórter investigativo a suspeito de um crime bárbaro, protagonizou uma história de suspense com requintes cinematográficos, daquelas em que o acusado luta sozinho para provar sua inocência.

Para complicar a situação, uma reportagem sensacionalista com 6m30s de duração, exibida em 21 de janeiro de 2001 no programa Fantástico da Rede Globo, julgou e condenou o réu por antecedência, dando ênfase à tese sustentada pelo delegado de homicídios encarregado do caso. José Cleves, então, percebeu que estava a caminho da condenação. No dia seguinte, muita gente que tendia para o seu lado começou a duvidar de sua versão dos fatos. Versão esta sustentada desde o primeiro depoimento ao delegado de Furtos e Roubos.

Uma cópia da tal reportagem foi exibida no Tribunal do Júri, sendo uma das principais peças do processo de acusação. Ainda segundo José Cleves, o inquérito policial tinha vários "furos", inclusive o desaparecimento de provas materiais que teriam sido forjadas. A boa notícia é que, apesar do esforço da promotoria em condená-lo, as falhas e contradições da acusação pesaram a seu favor e ele foi absolvido por sete votos a zero. Também na segunda instância prevaleceu sua inocência. Depois de um longo calvário, o jornalista pôde finalmente se ver livre em 14 de outubro de 2008, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) o absolveu da acusação de assassinato, acatando as decisões das demais instâncias e determinando o arquivamento do processo.

Em busca de reparação

Em seu livro, José Cleves afirma não ter recebido apoio de seus antigos patrões, apesar das promessas que lhe fizeram. Sua tese é de que a tentativa de incriminá-lo era uma manobra para silenciar o jornal, que há anos vinha incomodando a "banda podre" da polícia mineira. Por estranha coincidência, a equipe de repórteres de polícia foi praticamente desfeita, inclusive com algumas demissões. Sua sorte é que o advogado Marcelo Leonardo, ex-presidente da OAB em Minas Gerais, abraçou a causa. Acionado pelas jornalistas Ana Malta, Maria Clara Prates e Bertha Maakaroun, o renomado jurista acreditou na inocência do réu e conseguiu prová-la em todas as instâncias da Justiça. Outro apoio importante veio da Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, com destaque para os deputados João Leite, Durval Angelo e Nilmário Miranda.

A absolvição de José Cleves, no entanto, não traz de volta sua mulher nem o sossego da família. Tampouco condena os verdadeiros culpados do crime, já que os agentes da lei não se preocuparam em investigar a versão sustentada por ele. Dois marginais apontados como suspeitos do assalto foram mortos misteriosamente. Na orelha do livro, Dídimo Paiva, um dos jornalistas mais respeitados do país, afirma que "Cleves agora vai iniciar outra batalha em que os pobres sempre acabam perdendo: entrar na Justiça em busca da reparação civil e moral que sofreu". E pergunta: "Mas será que o Judiciário brasileiro tem agilidade para resolver o caso? Ou vai levar 30 anos para encerrar um processo simples?"

Inicialmente licenciado das funções de repórter da editoria Gerais e posteriormente desligado do Estado de Minas, José Cleves continua desempregado. Seu propósito com o livro A Justiça dos Lobos não é apenas desatar a mágoa que o corrói desde o assassinato de sua mulher, mas dar seu testemunho aos leitores. Seu principal intuito é denunciar os abusos cometidos no país toda vez que se estabelece o conluio do Estado opressor com o chamado quarto poder, representado pela imprensa – sobretudo quando esta se mostra mais interessada na espetacularização da notícia do que na devida apuração dos fatos.

Absolvição publicada em 16 linhas

Além de bem escrito, o livro de José Cleves é rico em detalhes, fotos, depoimentos e trechos do processo criminal no qual ele se viu envolvido na condição de réu. Sua história nos deixa várias lições. Em primeiro lugar, quem julga e condena não é a polícia nem a mídia, mas a Justiça. Somente depois que o juiz da última instância bate o martelo é que podemos declarar a culpa ou a inocência do réu. Em segundo lugar, o jornalista deve saber ouvir e dar voz a todos os lados envolvidos no fato a ser noticiado. Em se tratando de um colega, isso não implica em corporativismo, mas reforça o respeito ao código de ética da profissão. Em terceiro lugar, se um jornalista conhecido se vê condenado por antecipação pelos próprios colegas, que dirá o cidadão comum, desprovido de dinheiro e de poder numa sociedade injusta e desigual.

No momento, José Cleves percorre diversas cidades proferindo palestras em faculdades de Comunicação e autografando o livro, no qual procura esclarecer os fatos que mudaram para sempre os rumos de sua vida. É bom que se diga que o seu caso só não teve maior repercussão no país porque – ao contrário da tragédia ocorrida com Tim Lopes – a empresa em que trabalhava simplesmente virou-lhe as costas. Prova disso é que a notícia de sua absolvição publicada no jornal ao qual serviu com lealdade e profissionalismo durante muitos anos se resumiu a 16 linhas num canto de página.