sábado, 21 de agosto de 2010

Notícia previsível, muito previsível.

Insisto: o melhor tratamento do problema se encontra no livro de Max Weber, A ciência como Vocação. Mas as causas imediatas do fenômeno encontram-se na prática universitária, piorada desde que Margareth Tatcher inventou a "produtividade" como instrumento para o governo alocar recursos de pesquisa. Ela domou Cambridge e Oxford com semelhante truque. Daí, o procedimento se espalhou pelo mundo. Se a ética acadêmica não era efetiva, desde os primórdios da universidade, ela piorou desde então. Os modos são os seguintes: quem mais publica, mais frequenta o Citation index, "merece" mais verbas. Esta é a verdadeira, sim, a verdadeira, ponta do iceberg. A que se oculta é o agregado em grupelhos de pesquisadores, docentes etc. que, aproveitando o sigilo da assessoria ad hoc, afasta de modo covarde os concorrentes, de modo inapelável. Assim, tudo se concede aos que, naqueles grupos, conseguem amealhar citações (os favores trocados na técnica "eu te cito, tu me citas" entram na receita), e sobretudo bolsas, etc. Quando os parceiros percebem desvios nas pesquisas, calam até quando for possível. E não raro intimidam quem denuncia (cortando recursos, escrevendo resenhas virulentas e quejandos). Se não dá mais para esconder o colega, jogam-no às feras, o esquecem. Elegem novas lideranças geniais que, suposta ou realmente, merecem bolsas, incentivos, privilégios. Desde que, claro, obtenham páginas no Citation Index. Ciência? Não. Marketing, batalha por verbas e verbo, prestigio, coleguismo, compadrio, e tudo o mais. É o lado sombrio da política acadêmica (ligado às corridas pelos cargos, assessorias, plataformas para futuras incursões no Estado, nas firmas privadas, e outras fogueiras de vaidades). Assim, a indústria do plágio, das falsificações, das guerras internas, só tende a crescer. Que bom. Não estarei vivo nos próximos 50 anos. Pobres estudantes: ou aceitarão a picaretagem generalizada, ou serão remetidos a colonias de educação comportamental. Para aprender o manejo das picaretas. RR

São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010



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Estudioso da moral pode ser fraudador

Marc Hauser, de Harvard, que também estuda protolinguagem em animais, passa por investigação nos EUA

Cientista teria feito uma interpretação forçada de estudo com primata; biólogo e universidade não comentam o caso


REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR INTERINO DE CIÊNCIA
RICARDO MIOTO
DE SÃO PAULO

Um dos principais defensores da hipótese de que a moralidade é inata, tendo evoluído naturalmente nos ancestrais do homem, está sendo acusado de... fraude.

Marc Hauser, biólogo da Universidade Harvard, teria falsificado dados de experimentos, afirmam antigos subordinados do pesquisador.

Procurados pela Folha, tanto Hauser quanto a universidade se recusaram a falar. Em declaração oficial, Harvard só diz que o professor está sendo investigado e que "o registro científico de seu trabalho será corrigido".Os detalhes da suposta fraude têm aparecido aos poucos, desde a semana passada. Mas o que talvez seja a peça decisiva do quebra-cabeças veio à tona anteontem, em reportagem do jornal "Chronicle of Higher Education", dos Estados Unidos.Um ex-assistente de pesquisa de Hauser forneceu documentos e e-mails comprometedores ao jornal, sob a condição de ficar anônimo. As mensagens mostram um Hauser irritado com as dúvidas de seus colaboradores.


MACACOS FALANTES

Segundo o ex-assistente de pesquisa, o problema principal envolvia experimentos sobre linguagem com macacos resos (veja quadro). Neles, Hauser e companhia queriam verificar se os bichos captavam certos padrões de som, parecidos com as sílabas da fala.

Um estudo assim, aliás, havia sido relatado nesta Folha em 2004. Ocorre, porém, que o então assistente teria notado algo estranho. Enquanto as observações feitas pelo professor mostravam os primatas captando alguns dos padrões de sílabas, as assinadas por outro assistente, vendo o mesmo vídeo, diziam que nada acontecia.

Junto com um aluno de pós-graduação, o assistente teria sugerido pedir a ajuda de um terceiro observador para tirar a teima. Hauser reagiu: "Estou ficando meio p. aqui", teria escrito num e-mail. "Não houve inconsistências [nos dados]!"A troca de e-mails e outras conversas parecidas teriam levado subordinados a denunciar Hauser à direção de Harvard, deflagrando uma investigação que começou em 2007 e continua até hoje.


REFERÊNCIA

Os cientistas que estudam primatas se dizem preocupados. "Os trabalhos dele são referência para muitos outros, estavam entre os mais citados na área", diz Maria Emilia Yamamoto, psicóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Os resultados de Hauser realmente nunca tinham sido replicados por outros cientistas, mas, para a pesquisadora, isso nunca foi encarado como um indicador de possível desonestidade."Não é incomum não se conseguir reproduzir os resultados, isso não era preocupante. A condição dos animais em diferentes lugares pode variar, por exemplo."

Segundo ela, os trabalhos eram "cuidadosos, muito bem escritos. Se os dados que ele utilizava como base não eram confiáveis, quem poderia saber? Em princípio, você acredita no cientista."Eduardo Ottoni, etólogo (especialista em comportamento animal) da USP, prefere ser cauteloso sobre as denúncias. "Tem um elemento de "Schadenfreude" [alegria com a desgraça dos outros] nessa história, principalmente porque se trata de um cara VIP", afirma ele.

Ottoni lembra, porém, que alguns pesquisadores da área já diziam que Hauser era descuidado em seus experimentos, "embora excelente do ponto de vista teórico".

Uma possível falha seria o fato de que os responsáveis por anotar as reações dos macacos já sabiam de antemão qual eram os estímulos, o que poderia gerar vieses. "Pode haver um efeito VIP aí. Se fosse pesquisa minha, o revisor do artigo ia me debulhar. Mas, como era o Hauser, ele pode ter sido mais complacente", diz Ottoni.

São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010




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ANÁLISE

Fraudes são ponta de iceberg que se começa a enxergar

MARCELO LEITE
DE SÃO PAULO

Acontece nas melhores famílias -de primatas e de cientistas. Estrelas de grandes universidades, como Harvard, não podem parar de pedalar. Se o fazem, publicam menos, atraem menos a atenção de jornalistas, e financiamentos fartos secam. Marc Hauser não é o primeiro. Não será o último.

É mais comum a acusação recair sobre uma estrela de segunda grandeza. Foi o caso da brasileira Theresa Imani-shi-Kari, nos anos 1980.Depois de um estudo inovador de imunologia com o Nobel David Baltimore, uma estudante denunciou falhas nos dados da brasileira. O Congresso dos EUA e o FBI entraram na investigação. A sua carreira estagnou. Tempos depois, foi inocentada. Não se comprovou malícia.

O caso é narrado num bom livro de Daniel Kevles, "O Caso Baltimore". Havia certa histeria no Congresso com suposta avalanche de fraudes com verba pública na ciência. Com o tempo, o interesse de deputados em busca de notoriedade arrefeceu.

A ironia é que, enquanto o assunto saía da agenda nos EUA, fraudes provavelmente se multiplicavam no mundo. Essa tese está no livro "A Grande Traição", do historiador Horace Freeland Judson.Da fusão fria de Fleischmann e Pons (1989) aos clones humanos do sul-coreano Woo-Suk Hwang (2005), falcatruas estão em alta.
Na quarta, esta Folha noticiou que o número anual de denúncias de fraude científica aumentou 161% nos EUA em 16 anos, de 86 para 217. Já aconteceram dois congressos mundiais sobre o tema.É a ponta de um iceberg que se começa a enxergar, inclusive no Brasil. Houve pelo menos dois casos rumorosos, ambos na USP. Que mais estudantes corajosos denunciem os traidores.