Próximo Texto | Índice Estudioso da moral pode ser fraudador Marc Hauser, de Harvard, que também estuda protolinguagem em animais, passa por investigação nos EUA Um dos principais defensores da hipótese de que a moralidade é inata, tendo evoluído naturalmente nos ancestrais do homem, está sendo acusado de... fraude. Marc Hauser, biólogo da Universidade Harvard, teria falsificado dados de experimentos, afirmam antigos subordinados do pesquisador. Procurados pela Folha, tanto Hauser quanto a universidade se recusaram a falar. Em declaração oficial, Harvard só diz que o professor está sendo investigado e que "o registro científico de seu trabalho será corrigido".Os detalhes da suposta fraude têm aparecido aos poucos, desde a semana passada. Mas o que talvez seja a peça decisiva do quebra-cabeças veio à tona anteontem, em reportagem do jornal "Chronicle of Higher Education", dos Estados Unidos.Um ex-assistente de pesquisa de Hauser forneceu documentos e e-mails comprometedores ao jornal, sob a condição de ficar anônimo. As mensagens mostram um Hauser irritado com as dúvidas de seus colaboradores.
Segundo o ex-assistente de pesquisa, o problema principal envolvia experimentos sobre linguagem com macacos resos (veja quadro). Neles, Hauser e companhia queriam verificar se os bichos captavam certos padrões de som, parecidos com as sílabas da fala. Um estudo assim, aliás, havia sido relatado nesta Folha em 2004. Ocorre, porém, que o então assistente teria notado algo estranho. Enquanto as observações feitas pelo professor mostravam os primatas captando alguns dos padrões de sílabas, as assinadas por outro assistente, vendo o mesmo vídeo, diziam que nada acontecia. Junto com um aluno de pós-graduação, o assistente teria sugerido pedir a ajuda de um terceiro observador para tirar a teima. Hauser reagiu: "Estou ficando meio p. aqui", teria escrito num e-mail. "Não houve inconsistências [nos dados]!"A troca de e-mails e outras conversas parecidas teriam levado subordinados a denunciar Hauser à direção de Harvard, deflagrando uma investigação que começou em 2007 e continua até hoje.
Os cientistas que estudam primatas se dizem preocupados. "Os trabalhos dele são referência para muitos outros, estavam entre os mais citados na área", diz Maria Emilia Yamamoto, psicóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Os resultados de Hauser realmente nunca tinham sido replicados por outros cientistas, mas, para a pesquisadora, isso nunca foi encarado como um indicador de possível desonestidade."Não é incomum não se conseguir reproduzir os resultados, isso não era preocupante. A condição dos animais em diferentes lugares pode variar, por exemplo." Segundo ela, os trabalhos eram "cuidadosos, muito bem escritos. Se os dados que ele utilizava como base não eram confiáveis, quem poderia saber? Em princípio, você acredita no cientista."Eduardo Ottoni, etólogo (especialista em comportamento animal) da USP, prefere ser cauteloso sobre as denúncias. "Tem um elemento de "Schadenfreude" [alegria com a desgraça dos outros] nessa história, principalmente porque se trata de um cara VIP", afirma ele. Ottoni lembra, porém, que alguns pesquisadores da área já diziam que Hauser era descuidado em seus experimentos, "embora excelente do ponto de vista teórico". Uma possível falha seria o fato de que os responsáveis por anotar as reações dos macacos já sabiam de antemão qual eram os estímulos, o que poderia gerar vieses. "Pode haver um efeito VIP aí. Se fosse pesquisa minha, o revisor do artigo ia me debulhar. Mas, como era o Hauser, ele pode ter sido mais complacente", diz Ottoni. São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010
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sábado, 21 de agosto de 2010
Notícia previsível, muito previsível.
Insisto: o melhor tratamento do problema se encontra no livro de Max Weber, A ciência como Vocação. Mas as causas imediatas do fenômeno encontram-se na prática universitária, piorada desde que Margareth Tatcher inventou a "produtividade" como instrumento para o governo alocar recursos de pesquisa. Ela domou Cambridge e Oxford com semelhante truque. Daí, o procedimento se espalhou pelo mundo. Se a ética acadêmica não era efetiva, desde os primórdios da universidade, ela piorou desde então. Os modos são os seguintes: quem mais publica, mais frequenta o Citation index, "merece" mais verbas. Esta é a verdadeira, sim, a verdadeira, ponta do iceberg. A que se oculta é o agregado em grupelhos de pesquisadores, docentes etc. que, aproveitando o sigilo da assessoria ad hoc, afasta de modo covarde os concorrentes, de modo inapelável. Assim, tudo se concede aos que, naqueles grupos, conseguem amealhar citações (os favores trocados na técnica "eu te cito, tu me citas" entram na receita), e sobretudo bolsas, etc. Quando os parceiros percebem desvios nas pesquisas, calam até quando for possível. E não raro intimidam quem denuncia (cortando recursos, escrevendo resenhas virulentas e quejandos). Se não dá mais para esconder o colega, jogam-no às feras, o esquecem. Elegem novas lideranças geniais que, suposta ou realmente, merecem bolsas, incentivos, privilégios. Desde que, claro, obtenham páginas no Citation Index. Ciência? Não. Marketing, batalha por verbas e verbo, prestigio, coleguismo, compadrio, e tudo o mais. É o lado sombrio da política acadêmica (ligado às corridas pelos cargos, assessorias, plataformas para futuras incursões no Estado, nas firmas privadas, e outras fogueiras de vaidades). Assim, a indústria do plágio, das falsificações, das guerras internas, só tende a crescer. Que bom. Não estarei vivo nos próximos 50 anos. Pobres estudantes: ou aceitarão a picaretagem generalizada, ou serão remetidos a colonias de educação comportamental. Para aprender o manejo das picaretas. RR
São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010