| |
Rebanhos e propaganda
O livro de Serge Tchakhotine (O estupro das massas pela propaganda política) foi editado pela primeira vez na França em 1939. Membro do Partido Social Democrata alemão, o autor foi obrigado a se exilar após a vitória do nazismo. A França era dirigida, seja bem notado, por socialistas, supostos inimigos de Hitler. Quando recebeu a cópia de seu trabalho impresso, o autor teve a surpresa de notar cortes e pesadas censuras às suas ideias. Maior espanto teve ele ao ser informada a fonte da violência: o ministro das Relações Exteriores da França, Georges Bonnet, socialista exemplar... Foram arrancadas as passagens que, segundo o ministro, poderiam “desagradar (!) tanto a Hitler quanto a Mussolini ”. Desde a primeira página (a dedicatória à França livre também foi cortada pelo ministério, por ser “fora de moda”), o livro, portanto, mostra quem deve ser muito criticado quando ditaduras sanguinárias se instalam no poder. No caso da Alemanha e da Itália fascistas, imensa culpa cabe à esquerda francesa, aos dirigentes ingleses e a todos os que alegam “razões de Estado” quando é preciso lutar contra a tirania escancarada.
Os referidos socialistas, como os pares alemães derrotados eleitoralmente por Hitler, tinham de si mesmos uma imagem de excelência, quase de perfeição. E confiavam mais na burocracia interna do partido (os quadros “superiores”) do que nos militantes. É contra eles que Tchakhotine se levantou ao constatar a sua incompetente propaganda, oposta ao barulho totalitário. Baseado nos trabalhos de Pavlov, mas usando sugestões da psicanálise, antropologia social, pesquisas empíricas sobre marketing e outros instrumentos analíticos (ele já emprega dados da cibernética, a partir Norbert Wiener) o autor desenvolveu, enquanto era possível, intensa prática eleitoral para defender a república de Weimar. Levando a sério a importância dos símbolos na guerra política, ele encontrou meios de neutralizar a suástica com sinais agressivos que denotavam a frente democrática. Assim, a cruz hitleriana era cortada pelos militantes democráticos (que tudo faziam por sua conta e risco, sem apoio das direções partidárias) com três flechas, o que reduzia a zero a persuasão hitlerista. Outras técnicas são descritas no livro. Em todos os lugares em que os métodos de Tchakhotine foram empregados, venceram os candidatos hostis a Goebbels.
Os dirigentes negaram apoio, dinheiro, material à campanha. No mesmo átimo, o totalitarismo era financiado por banqueiros, industriais, imprensa venal, sindicatos (conferir a biografia de Hitler publicada por Joachim Fest, que traz informações preciosas sobre o caixa dois nazista) e mesmo igrejas. As 600 páginas de O estupro das massas pela propaganda política” demonstram as bases, as técnicas, os alvos e os meios empregados no marketing comercial e político. Uma constatação repetida ao longo do texto é gravíssima, ainda em nossos dias ou, talvez, sobretudo na hora presente. “No máximo, 10% das pessoas humanas são capazes de resistir à técnica da propaganda afetiva (...), os 90% restante sucumbem ao estupro psíquico”.
O livro não é um manual. Ele desce aos fundamentos da vida coletiva, mostra as violências do poder institucionalizado nas ordens religiosa, política, econômica, bélica. Poucas análises do discurso totalitário ostentam lucidez semelhante à de Tchakhotine. Somado aos estudos de Victor Klemperer, Elias Canetti, Vance Packard (The hidden persuaders), o trabalho integra o conjunto dos clássicos cuja leitura é ainda hoje obrigatória para estudiosos e líderes políticos responsáveis.
Claro, muita coisa ocorreu na história e na teoria desde 1939. Mas o retorno do nazismo - e demais formas autoritárias -, com a internet e passeatas na Europa e nos EUA (mesmo no Brasil), indica que é tempo de ler aqueles monumentos, completando o que ali falta com pesquisa e, sobretudo, muito respeito voltado à população, ou pelo menos aos 10% que não aceitam serem tangidos como rebanho pela propaganda, sobretudo quando ela usa truques afetivos. Diante do arrazoado em pauta, todo brasileiro pensante deveria dizer : “De te fabula narratur”.