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A liberdade de
expressão está em risco?
CLAYTON LEVY e EUSTÁQUIO GOMES
Ao longo das últimas duas semanas o governo Lula, eleito dentro de um contexto democrático, foi colocado sob uma suspeição inusitada: o de que estaria se deixando levar pela “tentação autoritária”. A pedra de toque foi o anteprojeto para a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes dos conselhos já existentes para as categorias de profissionais liberais como médicos e advogados. A grita foi geral: interpretou-se a medida como uma tentativa de controle da mídia e da liberdade de informação, com o risco adicional de que a tarefa possa vir a ser confiada a um braço sindical do governo. O governo se defende com o argumento de que “a sociedade tem o direito à informação prestada com qualidade, correção e precisão, baseada em apuração ética dos fatos”, conforme exposição do ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini.
Outros sintomas de “dirigismo” governamental foram evocados, como a tentativa de expulsão do jornalista do The New York Times em maio passado, o anteprojeto de lei que cria a Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav), o decreto que pretende proibir funcionários públicos de dar informações à imprensa, a tentativa de limitar o alcance da ação do Ministério Público e, por último, o decreto que permitiria ao governo, sem autorização adicional da Justiça, disseminar em suas instâncias executivas informações sobre pessoas físicas e jurídicas cujo sigilo fiscal, bancário e telefônico for quebrado.
Nesta e nas duas páginas seguintes, os professores Francisco de Oliveira (USP), Fábio Wanderley Reis (UFMG), Roberto Romano e Reginaldo Moraes, ambos do IFCH/Unicamp, na esteira dos desdobramentos da polêmica, avaliam as intenções do governo.
Jornal da Unicamp – Segundo os críticos dessas medidas, o que está por trás do “pacote regulador” do governo é um esforço de apropriação da informação pública. Ou seja, o governo gostaria de controlar a qualidade da informação que chega à sociedade e, ao mesmo tempo, ter acesso livre e privilegiado a informações sigilosas sobre os cidadãos. Como o senhor analisa essa postura? O senhor vê nisso algum risco ou os críticos estão vendo fantasmas?
Roberto Romano – Tenho uma posição antiga sobre o tema. Em dois livros (O Caldeirão de Medéia e O Desafio do Islã) trato da situação contraditória seguinte: quanto mais os governos tornam-se opacos para os cidadãos, mais a cidadania é submetida às lentes dos administradores e perde condições de se defender da espionagem (CIA ou Abin, pouco importa o nome), da Receita Federal, etc. Esse problema é antigo e tem a idade do próprio Estado moderno. Todos os debates internacionais de hoje, no mundo acadêmico e político, sobre a razão de Estado, o encaram. Assim, o nosso governo de hoje nem é original. Ele retoma a prática de controlar os cidadãos para obter o monopólio das informações, com o uso de seus “quadros” em organismos para-estatais, como a Federação de Jornalistas, etc.
Quando governos querem o monopólio das notícias e das análises, eles deixam o terreno do jornalismo e penetram o campo da propaganda. Para os teóricos nazistas e todos os demais doutrinadores autoritários de “esquerda” ou “direita”, a liberdade, a democracia, os direitos são apenas relativos, jamais absolutos. É um modo de afirmar que a liberdade de imprensa, os direitos dos indivíduos, e tudo o que é mais sagrado na vida ética e moral, são relativos aos direitos do governo.
Os atuais dirigentes brasileiros herdaram uma visão instrumental das instituições e das prerrogativas jurídicas. Devem ser preservadas, no seu entender, apenas as formas que permitem aos partidos políticos a permanência nos palácios. Sua idéia sobre o mundo estatal enquadra-se perfeitamente nas figurações coletivistas do século 19 e 20. Elas estão longe de serem adequadas ao Estado democrático de direito. As investidas do atual chefe da Casa Civil, do ministro do Trabalho, do ministro encarregado pela Comunicação e, o mais espantoso, do próprio ministro da Justiça contra a imprensa ecoam perfeitamente as palavras emitidas em 1985 pelo então candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sobre as liberdades: “Acho que a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões” (Folha de São Paulo, 29/12/1985). As últimas medidas anunciadas pelo governo são “mecanismos” supostamente para garantir a palavra à sociedade, mas de fato dirigidas para impor teses favoráveis aos ocupantes ocasionais do governo. Todo um programa é agora implantado sine ira et studio, numa ideologia que se corporifica em atos normativos e reguladores. Fantasmas ?
Gostaria de lembrar que o escrito mais lúcido e alerta sobre os golpes de Estado, na literatura mundial, começa com as advertências de um fantasma. Refiro-me ao Hamlet de Shakespeare. O desenrolar da peça evidencia que mais fantasmagórica era a “realidade” do golpe de Estado. Este último não precisa ser cruento ou militar. Ele pode surgir como eficaz veneno, imperceptível para a opinião pública. Recordo também as análises de pesquisadores ligados à “Escola de Frankfurt” sobre a maneira pela qual os nazistas se apoderaram da imprensa alemã: compravam um jornal, mantinham a diagramação e introduziam paulatina e cautelosamente novos conteúdos, os almejados pelo partido. E grande parte dos leitores não percebeu a mudança. É o mesmo que se passa com as medidas “disciplinares” do governo brasileiro em relação à imprensa. As doses são homeopáticas mas o alvo é ampliar o monopólio do governo no mundo cultural. Quando ocorrem processos dessa natureza, o despertar é amargo. É preciso notar a técnica usada pelos partidários do governo (incluindo a Federação dos Jornalistas): repetir sempre a mesma tecla e atacar as pessoas que se recusam submissão aos ditames da hora. Tais métodos são fascistas e devem ser rechaçados enquanto é tempo.