segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Corrigindo a Tagarelice, Maria Sylvia Carvalho Franco

Dado o Tsunami de adulação desavergonhada do governo Lula e de sua delfina, pela midia "burguesa" (salvo raríssimas exceções, basta ler os jornais e assistir os programas de TV e rádio) a profa. Maria Sylvia Carvalho Franco escreveu o artigo abaixo. Pelas reações da canalha petista e adjacências, ela conseguiu lancetar o tumor de servilismo jornalístico e acadêmico que impera em nossos dias. Clima similar de chaleiragem, só me lembro de uma situação: quando Collor foi eleito. O namoro sem pudor só acabou quando o moçoilo lindo que fala muitas linguas mandou a PF invadir a Folha. Até então, nas páginas daquele jornal e da maioria dos demais, era proibido criticar o rapaz. Depois...as redações sairam pedindo artigos contra o truculento. Edições de domingo passado, que trouxeram colunas de supostos (eles adoram usar o termo) jornalistas independentes, constituiram verdadeiros vomitivos de bajulação baixa, de rapapés ao governo e à sucessora. Assim, publicar o texto abaixo, do qual publico uma versão inicial mais ampla, foi mais um ato de coragem da professora, a qual muito amo e admiro.

Roberto Romano


No Caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo, o título dado à versão abreviada foi "Corrigindo a Tagarelice" (Domingo, 21 de novembro de 2010, página J3).



Mulheres e Poder

Maria Sylvia Carvalho Franco

A eleição de Dilma Roussef causou frisson geral, por ser mulher e chegar à mais elevada magistratura "neste país". Ouviu-se retinir, em vários canais de televi­são, vibrantes "é a primeira mulher a co­mandar (ou governar) o Brasil; a "pri­meira mulher a ser Chefe de Estado neste país"; "a primeira mulher a decidir os des­tinos do país". Um pouco de história do Brasil não faria mal às vivazes jorna­­listas que alardearam essas máximas e aos seus animados, algo zom­­beteiros, colegas masculinos.


E a Princesa Isabel? A historio­grafia recente desfez o perfil que a reduzia à caro­lice e à privacidade, retratando-a bem mais acerto. Culta (sua instrução igualar-se-ia à "ministrada aos homens", deli­berou seu pai), vivendo em ambiente ilustrado (lembre-se dos frutos da Missão Francesa, a a­­bertura das Faculdades de Medicina e Direito, da Politécnica, do ensino popular noturno e dos cursos pro­fissionalizantes), interessou-se pelo sufrágio feminino e pela edu­cação pública para ambos os sexos, propondo a criação de escolas, o prepa­ro dos mestres, a garantia de recursos. Com André Rebouças, cogitou uma reforma agrá­ria capaz de integrar ex-escravos ao sistema social. Apoiou os abolicionistas promoven­do fugas de escravos, escondendo-os, angariando recur­sos, financiando sua alforria e inde­nização. Afir­mou posições no plano simbólico, osten­tando camélias brancas cultiva­das no Quilom­­bo do Leblon. Nos perío­dos em que foi Regente, logo Chefe de Estado, sustentou seus jui­zos e colheu o momento oportuno para concretizá-los, sancionan­do códi­gos que de fato mu­daram o destino do país, co-mo a Lei do Ventre Li­vre e a Lei Aurea, em meio a fortes choques de interesses internos e inter­nacionais. Na Questão Religiosa, por força de seu catolicismo, co­lo­cou-se contra o pai laicizante e sofreu duras críticas da impren­sa, cuja liberdade manteve.

Antes de Isabel, foram Chefes de Estado sua avó Leopoldina e sua trisavó Maria 1ª. A noiva de D. Pedro, versada em artes e ciências, aqui aportou com cientistas, músicos, pintores. Apesar do casamento infausto, elze­lou por seus deveres e cum­priu-os em momento crucial da Indepên­dência. Em meio à tensão en­tre brasileiros e portugueses, face à amea­ça de guerra civil, com o príncipe em São Paulo e com a notícia de que Por­tugal agiria contra o Brasil, a Regente convocou (com José Bonifácio, ministro das relações exteriores) o Con­se­lho de Estado e assi­nou o decreto da Inde­pendência, depois referendado por Pedro 1º. Avaliou, com acuidade polí­tica, os distúrbios em Portu­gal e suas se­qüelas no Bra­sil, advertindo o marido sobre a hora pro­pícia para proclamar a Inde­pendência: "O pomo está maduro. Colhe-o já, senão ele apodrece".



Assim, Dilma não é a primeira Chefe de Estado ou de Governo ou a primeira mu­lher a dirigir o país. Aprove-se ou não suas antecessoras, elas detiveram um poder efetivo, interfe­rindo na estrutura so­cial e política. A diferença entre a Princesa, a Impera­­triz, a Rainha e a Presidente, é a eleição em uma democracia: diverso é o regime, mas não o status de Chefe de Esta­do ou do Go­verno. E para dizer a verdade, nem tanto, dado o cunho cesarista do Executivo e a outorga do poder, legado a Dilma por direito de suces­são, "por força de uma escolha indireta, quase imperial". (João Santana)

O registro culto da educação recebida por aquelas soberanas liga-se ao arquétipo aristocrático, difundido nos séculos 17 e 18, mol­dando perso­nagens eminentes na vida pública. Mas se quisermos examinar as formas do poder feminino em nosso país, não podemos nos restringir ao setor mais visível. Em artigo sobre a família brasileira, que subverteu, entre nós, os estereótipos da mulher submissa, Antonio Candido a revela, nas camadas dominantes, como chefe do núcleo doméstico e cabeça de uma empresa, gerenciando gran­des estabelecimentos produtivos e pro­vendo sua massa de trabalhadores. Passado o escravismo, esse modelo subsistiu com o trabalho livre.

O teor político desse poder familar fica realça­­do ao pensarmos que a estrutura e gestão de núcleos domésticos, abarcando família complexas, forneceu o modelo para a reflexão sobre a gê­nese e ordenação de sistemas sociais, com as formas de domí­nio neles exercida. Nessa linha, a critica filosófica e política contemporâneas recolheram os princí­pios e o arranjo dos tipos patriarcais e patrimoniais centrados no poder pessoal. Trata-se da transposição, para o governo, da casa senho­rial e de seus cargos, funções­­, dignidades e privilégios, com a dominação vo­luntariamente aceita como um benefício ao dominado (M.Weber). Es­se cânon, alterado por determinações inerentes aos tempos mo­­dernos ­(como o nexo ínsito entre escravidão e capitalismo) tem ves­tígios no Brasil. O mais evidente de seus traços —o poder vinculado ao favor— é, uma derivação desse vieux style. Essa herança, junto a outras condições históricas ­—a forte centralização, o arremedo fe­derativo e a penúria local— emana da ética transferida, de modo auto­mático e rentável, do âmbito privado para o civil.

Se passarmos para as camadas pobres, de mulhe­res­ que desempenham três turnos de trabalho e enfrentam, por vezes, a desagregação que ronda suas casas —maridos sem emprego, enfermos ou irresponsáveis, jovens drogados ou delinquentes— o ba­lanço não é menos significativo. Trata-se de pessoas mo­destas, mas ins­truidas e criteriosas, que esteiam a família, e­xercem autoridade, provem abrigo e ali­mento, ga­rantem educação aos filhos, valorizam uma vida dígna e, por cima, cultivam a consciência dos direitos humanos, traba­lhistas e políticos, bem como sua necessidade para melho­rias sociais. O acesso ao trabalho e à remuneração ­—a exigência de um go­verno que ofereça empregos e não esmolas— norteia esse ideário e prática.

Nesse quadro —da soberana, à senhora e à trabalhadora— nossa herança é de figuras fortes e proficientes. Assim, no discurso de vitória, Dilma comoveu-se com supina auto-complacência: ao dizer: "gostaria que os pais e as mães das meninas pudessem olhar hoje nos olhos delas e dizer: ‘Sim, a mulher pode". Agua benta e pretensão ... De água benta ela abusou e sua preetensão a mo­delo feminino inédito é impertinente, além de menosprezar mulheres cujos alvos divergem dos seus (tal co­mo preferir a vi- da íntima) e devem ser respeitados. Urge inverter sua fala: as meninas podem e devem mirar-se nos olhos de muitas mães corajosas e profícuas, para neles se espelharem.

Nas palavras acima, projetaram-se figuras de mulheres que sairam da menoridade. Não assim com Dilma: "Você inventou tu­do isso. Você é o responsável. A ideia foi sua", disse ela, em prantos, no ombro de Lula. Regredindo a meios arcaicos de ascenção feminina, ela alçou-se como candidata graças a um homem. Sua jactância como paradígma femi­nino torna-se mais confrangedora quando vemos, no polo oposto do mes­mo pro­cesso eleitoral, uma outra mulher, que se autoconstruiu e se movimenta na cena pública com elegância inata e discrição natural, com sua própria retórica, valores e projetos genuinamente seus. Pode-se discordar de Marina Silva, mas sua figura autônoma moveu miríades de eleitores.

Voltando a Dilma e seu patrono. As eleições foram sobretudo ganhas por eles lá onde expandiu-se a bolsa família. O resultado, nos mapas eleitorais, destacado pelos analistas, envolve uma constatação de fato, não um preconceito. Nem se pode aventar que Dilma ganharia a eleição mesmo se excluido o Nordeste. Esse é um raciocínio falho pela base: o Nordeste integra-se ao universo eleitoral e não pode ser eli­minado. A hipótese pertinente indaga como seria a distribuição dos votos —na região e no cômputo geral— se as determinações socio-políticas e econômicas do Nor­deste fossem di­versas. Mais instrução e consciência cívica, menos favores e poder pessoal, mais trabalho e menos óbolos, condições opostas às existentes ad hoc, poderiam gerar outros resultados, dado o leque de cor­respondências dos votos no conjunto das outras áreas.

Na dialética do protetor e do protegido é eminente a reversão de papeis. Entre Lula e Dilma, o dilema está posto: ou subsiste a supremacia de Lula, ou Dilma (como seu padrinho) despreza os que a be­neficiaram. O beco é sem saida: deixar-se dominar é suicídio; esquivar-se com ingratidão é vício pessoal, mas trair em política é imenso risco para a fé pública e a manuten­ção do poder (leia-se Maquiavel). No Brasil, quando o poderoso trai, pode salvar-se (Lula); quando o mais fraco o faz, sucumbe ( Pitta, Fleury).

Esperemos que Dilma, espelhando-se nos olhos de suas antecessoras e de suas concidadãs, contribua para mudar de fato "este país". Ademais, pouco importa o gênero: o necessário é um presidente responsável.