sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Trecho de uma entrevista sobre o marxismo, dada ao jornal da Unicamp com outros colegas. Marxismo? Marxismo, ou....deixemos de lado, não vale a pena.

Marx não se deseja utópico. Desde A Ideologia Alemã, a sua filosofia procura captar o mundo tal como ele se manifesta, recolhendo a essência do trato entre homem e natureza, em desenvolvimento imanente. Em vez de universalidades vazias (como o Homem, a Sociedade, o Estado etc.,) o pensador pretendeu usar a ciência de seu tempo. “O físico, para se dar conta dos procedimentos naturais, ou estuda os fenômenos quando eles se apresentam em sua forma mais saliente e menos obscurecida por influências perturbadoras, ou experimenta em condições que asseguram tanto quanto possível a regularidade de sua marcha.” (O Capital). O símile entre a crítica da economia política e a física, tal como a entende Marx, mostra que o seu alvo não reside em nada exterior ao tempo e ao espaço.

No caso da sociedade capitalista, a grande procura do pensador é a sua lei natural de desenvolvimento. No pósfacio ao Capital há uma resenha da revista russa O mensageiro Europeu, onde se enuncia que o método de Marx “é rigorosamente realista”. Uma só coisa o preocupa: “encontrar a lei dos fenômenos (das Gesetz der Phänomene zu finden); não só a lei que os rege (…) mas sobretudo a lei de sua mudança e desenvolvimento, a lei de sua passagem (Übergang) de uma forma a outra”. Não se pode falar em utopia em Marx, pelo menos nos textos teóricos. A recusa dos socialistas utópicos como Saint-Simon e outros, é comum no par Marx/Engels.

Comentadores aproximaram o seu pensamento e as concepções de Fichte, no relativo à livre atividade humana. Mas o lado “realista” é essencial nos escritos de Marx. No século XX, suas investigações são trucidadas pela máquina de moer cérebros chamada Partido, suas pesquisas são encolhidas em algumas fórmulas a priori. Toda a sua ciência foi tragada pelas palavras de ordem dos líderes partidários e o realismo científico se transformou em “realismo” da razão estatal soviética.

Nesse clima de esvaziamento conceitual e volitivo surge Ernst Bloch, cuja utopia impulsiona alguns revolucionários e lhes permite esquecer o dogma partidário que “tudo” explica no mundo histórico e natural. E muitos militantes que se negam a dobrar os joelhos às pretensas “leis” de Marx (para os teóricos oficiais da URSS eram certezas que dispensavam a crítica e a pesquisa) assumem uma perspectiva utópica. Mas o utopismo não abarcou o marxismo como um todo. Pelo contrário, foram conduzidos ao máximo tanto o realismo vulgar quanto uma versão oportunista da razão de Estado.


Merleau-Ponty, ao criticar Claude Lefort (A Contradição de Trotsky e o problema revolucionário, Temps Modernes, 1949 ), aponta o naturalismo de Marx como fonte dos equívocos marxistas. Descobertas as leis do seu desenvolvimento, torna-se possível revolucionar uma sociedade. “A dialética havia estabelecido entre o presente e o passado uma dupla relação, de continuidade e descontinuidade. O capitalismo cria seus próprios coveiros, prepara o regime que o derrubará, o futuro emerge do presente e o fim brota dos meios de que ele é apenas a soma total e o sentido.” O marxismo “fala da revolução como uma onda que toma o Partido e o proletariado onde eles estão e os leva para além do obstáculo. Ou então, ao contrário, põe a revolução além de tudo o que existe, num futuro que nega o presente, no final de uma depuração infinita.” A passagem do capitalismo ao socialismo está garantida: existe a ciência do materialismo histórico e dialético. A passagem do capitalismo ao socialismo não está garantida: a parúsia ocorrerá apenas num futuro sempre adiado, enquanto o Partido e a sua forma estatal garantem as conquistas do pretérito, nos limites de um só país. Daí o pêndulo entre revolução armada e a luta eleitoral.


Regis Debray (Tempo e Política, Temps Modernes, 1968) indica o milenarismo presente nas decisões partidárias. De um modo ou outro, trata-se de jogar as esperanças no futuro, porque “um dia”, com maior número de votos, chegará a hora da sonhada revolução. Os que se insurgem contra semelhante contínuo temporal, como o próprio Debray nos anos 60, assumem a luta armada como quebra da lógica milenarista eleitoral. O dia certo, o kayrós, pensa Debray, deve ser imposto pelos revolucionários hic et nunc. Mas as duas estratégias fundamentam-se numa certeza: existem leis que regem a passagem do capitalismo ao novo modo de produção e sociedade. Trata-se de uma questão de tempo, longo no caso do comunismo oficial, acelerado pelas organizações armadas, no caso dos guerrilheiros.

Um comentário do referido descompasso noético é feito pelo lingüista Roman Jakobson, não suspeito de ter sido preso pela razão de Estado miúda que assolou militantes e dirigentes comunistas: “Em 1930, após a morte de Maiakóvski, anotei o seguinte: lançamo-nos em direção ao futuro com excessivo ímpeto e avidez para poder salvaguardar algum passado. O laço dos tempos rompeu-se. Vivemos demais no futuro, nele pensamos demais, acreditamos nele, não temos mais a sensação de uma atualidade que se baste a si mesma, perdemos o sentimento do presente… tínhamos apenas os encantadores cantos que nos falavam do futuro, e, de repente, esses cantos, saídos da dinâmica do presente, transformaram-se em fato de história literária”.

Muitos marxistas viveram a paixão do futuro, imaginaram que o passado supostamente abolido na URSS traria novos dias, desde que a dialética materialista fosse entendida perfeitamente, pela repetição das suas fórmulas, e aplicada sem questionamentos. Stalin enuncia “quatro princípios fundamentais do método dialético marxista”: a) a interdependência geral de todos os fenômenos, a lei da totalidade; b) o movimento, pois “segundo o método dialético, só é invencível o que nasce e se desenvolve”; c) a transformação da quantidade em qualidade, num acúmulo quantitativo gradual e rupturas súbitas, fazendo passar de um estado a outro. E d) a lei dos contrários, “conteúdo interno do processo de desenvolvimento”. (Stalin, O materialismo dialético e o materialismo histórico).

E Lenin, antes de Stalin, enuncia as teses inquestionáveis do marxismo em Materialismo e Empiriocriticismo. “A verdade absoluta resulta da soma das verdades relativas em via de desenvolvimento. As verdades relativas são reflexos relativamente exatos de um objeto independente da humanidade. Esses reflexos tornam-se sempre mais exatos. Cada verdade científica contém, apesar de sua relatividade, um elemento da verdade absoluta”.

Além do líder russo, outros teóricos avançaram enunciados com pretensões epistemológicas e políticas. É o caso de Mao: “Para que se complete o movimento que conduz ao conhecimento justo, é preciso freqüentemente muitas repetições do processo que consiste em passar da prática ao conhecimento, depois do conhecimento à prática. Tal é a teoria marxista do conhecimento, a teoria materialista da dialética do conhecimento” (Cinco Ensaios Filosóficos). Seqüência admirável, extraída de um texto não menos admirável publicado na França ainda em 1975 : “Viva o marxismo-leninismo maoísmo! Viva a guerra popular”, da União dos Comunistas da França Marxista Leninista (U.C.F.M.L.). O Materialismo e Empiriocriticismo fornece a grande fórmula da verdade objetiva, inscrita na história. O desenvolvimento desta última é uma aproximação gradativa da verdade, cuja sede é o Partido. E o Partido é o detentor da teoria, da certeza, do ser.

Escutemos Trotski no XIIIº Congresso do PC na URSS : “Ninguém dentre nós (…), nem pretende nem pode ter razão contra seu Partido. Definitivamente, o Partido tem sempre razão (…) Não se pode ter razão a não ser com e para o Partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão” (citado por Claude Lefort, Un homme en trop). Como analisa Lefort, identificados o real e o Partido, razão e Partido, “da realidade à teoria, como da teoria à realidade, a passagem é sempre evidente”. Se a teoria não o prevê, um fenômeno não existe. “Sem a orientação da doutrina marxista-leninista, doutrina todo poderosa porque verdadeira, nada de bom e duradouro pode ser alcançado” (D. A. Câmara, Forjemos nosso Partido à imagem e semelhança do Partido de Lenin e Stalin, Problemas, 1953). Entre as evidências, a mais solar: “Somente a sabedoria coletiva do Comitê Central, tendo à frente o camarada Prestes, permite dar aos militantes uma educação de elevado teor ideológico”.(M. Alves, “Elevar o nível ideológico do Partido, tarefa essencial na luta pela vitória do Programa [Informe em nome do Presidium do C.C.]” Problemas, 1956). A técnica pedagógica é translúcida: tratando-se do Programa, “seus fundamentos, suas teses, seus objetivos e suas tarefas devem ser profundamente compreendidos e assimilados. Cada comunista necessita ficar saturado das novas idéias” (A. Câmara, Novo Programa, Novas Tarefas, Novos Métodos, Problemas, 1954).
Finalmente: “Guiados pelos ensinamentos do camarada Stalin, nosso educador, estudemos e assimilemos a doutrina marxista-leninista” (Luis Carlos Prestes, Nossa Política, Problemas, 1950). Para todas essas citações, leia-se Rückert, Sérgio Joaquim, Persuasão e Ordem: a escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na década de 50, mestrado/Unicamp, 1987.

Essas formas doutrinárias foram introduzidas e aceitas voluntariamente pela massa dos militantes, com perícia cirúrgica e litúrgica: “todo lugar comum, todo cliché, é na realidade uma espécie de reza, funciona pelo mecanismo da repetição e da sugestão, veicula na vida social a mesma potência hipnótica das ladainhas na vida religiosa” (Shoshana Felman, Folie et Cliché). De Marx aos que se julgaram, em Moscou ou no Brasil, infalíveis consciências políticas do proletariado, ocorreu um enrijecimento noético. A pesquisa se transformou em catecismo. E tudo isso tem muito a ver com a razão de Estado, o realismo que se curva ao existente em nome de uma revolução mitológica, a ser revelada no Final dos Tempos.

Segundo Max Weber, quando uma seita percebe que o Dia de Juízo demora a chegar, ela se adapta para viver no mundo “tal como ele é”. Surge a Igreja burocrática e prudente, com Santas Inquisições e sacramentos, ladainhas. Ao examinar a história dogmática do cristianismo, marxistas atilados poderiam ler no final : De te fabula narratur. Não leram. A utopia técnica enquanto política tem a idade de Platão, basta atentar bem para a forma e o conteúdo da República. O Renascimento, época das utopias (Morus, Campanella, Bacon) definiu o modelo tecnológico e político da modernidade (o famoso knowledge and power meet in one baconiano). As ideologias clássicas, pelo menos as geradas no século XVII francês, inglês, alemão, foram todas ligadas às técnicas. O liberalismo é ininteligível sem a passagem pela tecnologia e pelo ordenamento mecânico do universo e da sociedade. Recolhemos hoje o resultado de uma cultura milenar que se apóia no símile da máquina e do mundo.

Ao contrário do que afirmam Heidegger, Hans Jonas e outros pensadores que devem, no entanto, ser estudados com respeito e cautela, penso que as representações técnicas precisam ser valorizadas ao máximo. O retorno às formas primitivas de cultura sendo uma impossibilidade, resta introduzir, como aliás proclamam alguns românticos mais lúcidos, entre eles Novalis, “alma na máquina”. O problema reside no conceito de ditadura, algo que determina o juízo possível sobre os jacobinos franceses e os bolchevismos. Um partido ditatorial, que se rege pelas doutrinas mencionadas na primeira resposta, conduz ao massacre de quem pensa diferente, no interior ou fora da organização política. O autoritarismo dogmático que invade a fala de militantes e dirigentes, prenuncia os campos de concentração.Entre a democracia interna, exposta em termos homiléticos, e a sua prática, há um abismo. Veja-se o PT: os dirigentes todo poderosos nada viram, nada ouviram, nada cheiraram, nada tocaram, nada perceberam no partido e no governo, do presidente de honra aos líderes menores. Tudo foi efetivado sem consultas às bases, do “recurso não contabilizado” às decisões governamentais sobre o superávit primário atual.

O centralismo “democrático” é apenas um outro nome para “ditadura”, com os frutos previsíveis em todo coletivo que proíbe o debate real, a crítica, o acesso a todos os dados. Quem forneceu os “recursos não contabilizados”? Quando este e demais segredos forem abertos pelo próprio partido aos militantes e ao público, será possível dizer, sem provocar gargalhadas, que ele é democrático.Uso com freqüência, para descrever a atitude de todos as lideranças políticas, a análise de Elias Canetti sobre o poderoso enquanto sobrevivente. Pouco importa o seu discurso anterior, as alianças anteriores, os companheiros do passado: se for preciso para a sua sobrevida, o poderoso alegremente jogará tudo fora.

Fui um crítico duro do governo de FHC. Mas para ser justo, não é possível identificar sua frase “esqueçam o que escrevi” (ele nega a sua autoria) e o “nunca fui de esquerda” do atual presidente. Uma pessoa de esquerda pode errar no passado e corrigir seus pontos de vista. Quando FHC foi eleito, poucos esperavam que ele faria um governo de esquerda, pois as suas teses eram conhecidas desde longa data. A própria “teoria da dependência” não se enquadra nos parâmetros habituais do marxismo e fora criticada por vários intelectuais, mais próximos da esquerda do que FHC, entre os quais Francisco de Oliveira.

Lula foi eleito porque prometeu um governo de esquerda, em todos os sentidos, inclusive no econômico. Se ele e seus amigos viram no programa de seu partido apenas e tão somente “bravatas” e se, a partir da “Carta aos Brasileiros Donos de Banco” negaram todo o seu passado, a coisa é bem mais grave do que no caso de FHC.Quando o marxismo ainda era uma doutrina prestigiosa nos campi, alguns estudantes exigiram que “numa universidade marxista, se estudasse Marx”. Errado. Em primeiro lugar, uma universidade pública não é marxista nem bakuninista, nem liberal ou católica.

Em segundo, a seguir Marx, seria preciso assumir o seu modus operandi: ler Aristóteles, Hegel, Adam Smith, Ricardo, Malthus, para efetivar a crítica da economia política. A crítica efetiva só pode ser feita, depois que o estudioso domina as razões básicas das teses criticadas. “Não ler e não gostar”, ler apenas os autores autorizados pelo grupo ou partido, beira o fanatismo. Não é possível abrir mãos dos textos de Marx e de muitos marxistas notáveis pelo saber. Como não é possível abrir mão da filosofia grega, dos teólogos que pensaram a idade média e toda a cultura letrada. Ler, examinar, verificar escritos, sem protocolos, é condição de liberdade.Creio que ele “não dá conta” de todos esses problemas difíceis. Como, aliás, ninguém pode se jactar de conhecer todo o universo implicado na pergunta acima. Alguns cenários globais podem ser produzidos para ajudar a intelecção do mundo atual, mas a busca dos elementos empíricos e a sua análise com auxilio de conceitos, definem um processo longo, penoso, que exige trabalho interdisciplinar prudente e aberto ao diálogo.

No mundo inteiro surgem instituições, movimentos e grupos dedicados a pensar o mundo atual. As análises publicadas não trazem muita esperança, mas também não jogam medo absoluto no futuro imediato. Apenas para ficar na questão dos recursos naturais e, nela, o problema das águas. Sem petróleo (algo que motiva os piores conflitos bélicos em nossos dias) é possível a sobrevivência da humanidade, pois energias alternativas existem e podem ser aprimoradas. Mas sem água desaparece a vida humana. Vastas populações estão condenadas à morte certa no mundo. Ensaios de cooperação entre países e movimentos políticos opostos trazem alguma esperança neste setor. Em Israel, técnicos e cientistas palestinos e israelenses trabalham em conjunto para recuperar as fontes hídricas da região. Algo semelhante pode ser feito em todos os continentes. Mas isso exige muito saber técnico e muito diálogo entre partidos, governos, Estados. Note-se que falamos de efetividades econômicas que determinam o destino de coletivos inteiros. E muitos pensadores marxistas ou não marxistas podem ajudar na tarefa de entender e administrar esses desafios.

Roberto Romano