AS MULHERES EM “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”
J. R. Guedes de Oliveira
Em diversos estudos que tivemos a oportunidade de apreciar, com respeito às obras de Guimarães Rosa, encontramos divisores distintos, todos eles encetando aspectos criativos e recriativos do presente autor, como, por exemplo, as mais de três mil palavras que ele incorporou à nossa literatura. Contudo, todos esses ensaios o enfoque se dirigia para elementos paisagísticos, minerais, animais e situações vividas por personagens como Riobaldo, Miguilim, Manuelzão e outros. Muito embora a maioria dos estudos tratava da figura literária de Guimarães Rosa como um tudo, ficou relegado a um segundo plano algo que falasse da mulher, sobre a mulher.
Isto posto, neste cinqüentenário de surgimento da obra em questão, revolucionária em todos os sentidos, vamos retratar esta doce figura, que tanto influenciou a literatura vivida por Rosa, apanhando, para isso, as sua consagrada criação, que foi Grande Sertão: Veredas.
O objetivo deste esforço é trazer à baila a personagem feminina, decifrando-a de maneira tal, que o leitor da monumental obra ficasse mais satisfeito em conhecê-la, posto que tenha deixado de vê-la em seu íntimo. Mais ainda que isso, seria, também, uma espécie de tributo a mulher, que exerceu papel preponderante na vida de Guimarães Rosa: sua mãe, Dona Francisca (Chiquitinha); Dona Lydia (sua companheira que lhe deu duas filhas (Agnes e Vilma); Dona Aracy (de segunda núpcias, eterna e dedicada mulher); Dona Albertina, sua inseparável secretária na Divisão de Fronteiras do Itamarati; Dona Olga Moreira Barbosa (figura das mais singelas e queridas de Belo Horizonte, viúva do Dr. Pedro Barbosa, da nossa relação de amizade de há anos); suas filhas Agnes e Vilma, já referenciadas aqui; sobrinhas; filhas de amigos mais chegados, como a de Afrânio Coutinho; e sua neta que, por último, lhe dirigiu palavras no domingo do dia 19 de novembro de 1967, poucas horas antes de sua morte (diremos, até, minutos).
Sobre Dona Olga Moreira Barbosa, fazemos, aqui, uma observação contada por ela própria sobre a figura Do escritor.
Quando Guimarães Rosa estava compondo este seu célebre livro, procurava cercar-se de todos os meios possíveis e imagináveis em busca da perfeição. Metódico em suas descrições, anotando todas as questões que tinha dúvidas e desejava esclarecê-las, por vezes procurava a opinião da Dona Olga Moreira, para dirimir dúvidas e ajudá-lo em determinado trecho da obra. Não sabia ela que estes pequenos detalhes de leitura e opiniões eram todas acatadas por Rosa e com especial atenção. Só mesmo depois que o livro veio à lume é que ela soube que estas suas observações, pequenas colaborações despretensiosas, tinham a melhor acolhida por parte do autor. Isto ela nos rememorou numa conversa que tivemos há pouco, em sua casa, na capital mineira.
Seria longo de mais enumerar outras tantas mulheres que conviveram com o saudoso autor e receberam dele um carinho todo especial. Este carinho que encontramos na literatura Roseana e que não deve ser descartado da crítica comum, curiosa em desvendar aspectos importantíssimos de obras consagradas, como a exposta nesta singela homenagem ao “maior ficcionista do século XX, da literatura nacional”.
Como Guimarães Rosa foi um eterno apaixonado pelo belo, em sua essência, nada mais justo que estudar a mulher, em sua composição literária. É, pois, um revigoramento de sua beleza interior, produzindo obra prima da literatura nacional, com a pureza de sua alma e da sua enorme capacidade criativa e fantástica inteligência.
Benedito Nunes, em esplêndido ensaio com o título de “O amor na obra de Guimarães Rosa”, nos fala de vários personagens do autor, revelando o seu amor pelas coisas, animais, o ser humano e aspectos do grande sertão. Fala da Menina, dando ênfase ao seu caráter e personalidade. Enfim, traduz, de maneira fiel, o que o autor viu e sentiu na elaboração de sua obra.
Mas a figura da mulher, nos escritos de Guimarães Rosa, toma forma singela, despertando no leitor uma curiosidade profunda em conhecê-la no desenrolar do romance.
Começamos a figurar a mulher, já no início da obra, quando ele nos diz:
“Olhe, tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!” (pág. 16).
Nhorinhá foi uma figura de extraordinário magnetismo no relato do romance. Rosa deu corpo e alma a “mulher moça”, como ele chamou a esta filha de Ana Duzuza:
“Diadorim não estava perto, para me reprovar. De repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira d´água. Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajunto nós dois , num grosso rojo avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refresco, limonada de pera-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pelo – alegria que foi, feito casamento, esponsal” (pág. 28).
Descreve a mãe de Nhorinhá, velha senhora, filha que falava ser de ciganos. É bom levar que Rosa sempre teve em perfeita harmonia em sua literatura, a figura de ciganos. Ele sempre o descrevia com carinho e encanto:
“Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana Duzuza: falava ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até – contanto que fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros – não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos farinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a banda o liso do Sussuarão” (pág. 29).
A figura de Otacília, que permeia em Grande Sertão: Veredas, não pode ser esquecida da crítica. O autor a descreve como mulher de muito amor, que viveu nas Serras dos Gerais:
“A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais – Buritis Altos, cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse. Saudade se susteve curta” (pág. 42).
O autor ainda fala da mulher de localidade onde se desenrola o romance:
“ – Ah, a vida Vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador – todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano na Macaca, os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona Próspera Blaziana, Dona Adelaide no Campo-Redondo, Simão Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do Canastrão, ... (pág. 87).
E tem mais, quando ele trata de moça bonita, forte e vistosa e de Dona Abadia, outra personagem do romance:
“Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosa´uarda – moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Webaba, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José – ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Webaba de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei – carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo – supimpas iguarias” (pág. 89).
E continuava falando da mulher, com a mesma característica que imprimiu em todos os seus escritos:
“Os doces, também. Estimei seo Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até os meninos, irmãozinhos de Rosa´uarda, mas com tamanha diferença de idade” (pág. 89).
E a filha de Dodô Meirelles, moça bonita, cheia de graça, descrita assim:
“A lá, perto de casa de Mestre Lucas, morava um senhor chamado Dodô Meirelles, que tinha uma filha chamada Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu achava consolo em que ela me visse – que soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz!” (pág. 96).
A figura emotiva, que espelha uma mulher vigorosa e forte. Esposa de Mestre Lucas:
“Dona Dindinha, mulher de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas lágrimas de bondade: - “Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho... E você assim tão moço, tão bonito...” Aí, nem cheguei a ver aquela menina Misótis. A Rosa´uarda, vi, de longes olhares” (pág. 99).
Já esta personagem de Guimarães Rosa (Maria Mutema) carece de vida: é uma simples mulher, sem qualquer adjetivo que possa a qualificar, mas de coração sofrido:
“Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar” (pág. 170).
Outra mulher na obra do autor:
“O pessoal próprio de Titão Passos era que formavam o bando menor de todos. Mas gente muito valente. Valentes como aquele bom chefe. “De que bando eu sou?” – comigo pensei. Vi que de nenhum. Mas, dali por diante, eu queria encostar direto com as ordens de Titão Passos. – “Ele é meu amigo...” – Diadorim no meu ouvido falou – “... Ele é bisneto de Pedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!” Mas eu nem tive surto de perguntar a Diadorim o resumo do que ele pensasse” págs. 205/206).
José Bebelo falando de sua origem, num diálogo no romance:
“ – “...Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu, José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco Vizeu Antunes – foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...” (pág. 211). PS: notar, sempre, que o autor às vezes utiliza-se de várias formas para o nome de suas personagens, como Bebelo e Rebelo.
E quando o autor fala da fazenda da Dona Mogiana:
“O que eu inventei de conhecer era donde tinha estado, quando Zé Bebelo deu com eles, que vinha voltando de Goiás. – “Ah, senhor sim, nas beiras... Roças do rio São Marcos, senhor sim, no Esparramado... Fazenda duma Dona Mogiana...” Cabras dessa Dona Mogiana? Eram. Tinham sido. Mas com sua labuta de plantações. Que qualidades de crime eles tinham feito, para principiar, crimes de boa merência?” (pág. 376).
O autor descreve outra mulher, em sua obra. Fala de Maria-da-Luz com uma descrição nítida de seus dotes físicos:
“Mas que, porém, beleza a elas também não faltava, isto sim. Uma – Maria-da-Luz – era morena: só uma oitava de canela. Os cabelos enormes, pretos, como por si a grossura de um bicho – quase tapavam o rosto dela mesma, aquela nharinha-moura. Mas a boquinha era gomo, ponguda, e tão carnuda vermelha se demonstrava. Ela sorria para cima e tinha o queixo fino e afinado. E os olhos água-mel, com verdolências, que me esqueciam em Goiás... Ela tinha muito traquejo. Logo me envoltou. Não era siguilgaita simples” (págs. 397/398).
O autor continua com as suas personagens, em seguida:
“A outra, Hortência, mãe muito dindinha, era a Ageala, conome assim, porque o corpo dela era tão branquinho formoso, como frio para de madrugada se abraçar... Ela era ela até no recenso dos sovacos. E o fio-do-lombo: mexidos curvos de riacho serrano, desabusava” (pág. 398).
Finalizando, o autor cita a última figura do seu romance, Brazilina:
“Pois, primeiro, eu tinha outra andada a cumprir, conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele – gente-do-evangelho. Saí somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço.” (pág. 457).
Eis, pois, a apresentação das mulheres em Grande Sertão: Veredas, da José Olympio Editora, 13a. edição, 1979, Rio de Janeiro, RJ.