A ideologia das aspas
10 de março de 2013 | 2h 09
Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo
Jean-Pierre Faye, linguista e autor de fina análise do
discurso totalitário, mostra a troca e a circulação das palavras nas
formas ideológicas. Termos gerados no uso social da direita no espectro
político não raro integram falas e textos da esquerda. O contrário
também ocorre com frequência. Ao trânsito de vocábulos ou slogans Faye
chama "ferradura ideológica", a qual prende as falas no itinerário
sinistro cujo fim é a perda de sentido lógico ou ético. A expressão
"nacional-bolchevismo", cunhada para acolher um movimento que pretendia
unir elementos do fascismo e do comunismo, mostra à saciedade a
pertinência da proposta elaborada por Faye (no livro Linguagens
Totalitárias).
As expressões verbais enunciam sentimentos, raciocínios, verdades ou
mentiras. A dissimulação dos corpos se amplia nos artifícios retóricos e
surgem os que ludibriam e os enganados. O realismo político define-se
como arte de tratar com má-fé a própria mente para depois iludir os
tolos com mágica oracular. Instalados no poder, os truculentos costumam
ser francos entre seus pares, camaleões ou raposas diante da massa
humana que os aplaude ou apupa. Na praça eles defendem nobres ideais,
mas nos palácios empregam a tortuosa razão de Estado.
Nuclear na ética, a consciência nos conduz acima das feras, orienta a
razão, que sem ela ignora a diferença entre o bem e o mal (Rousseau). A
sua expulsão da ordem política deveria prevenir os que hoje se
alimentam do poder concedido pelas urnas. Recordemos: "Às favas, sr.
presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência". Assim
falou o ministro do Trabalho e da Previdência Social na edição do AI-5,
em 1968. Comprovando o itinerário proposto por Faye, parte da esquerda
brasileira assume atitude idêntica e joga hoje no lixo a consciência.
Ela trairia um falso moralismo. Nos extremos ideológicos a recusa da
consciência se arrima na salus populi, outro item da ardilosa razão de
Estado.
Como agem os que, no poder, ironizam quem ainda sente o que os gregos
chamavam aidós, ou seja, vergonha de praticar coisas erradas? Eles
começam desacreditando a consciência ética. Como não sentem rubor, dizem
que a política não se faz sem colocar as mãos na torpeza (uso ignaro
das teses enunciadas por Sartre, o autor de As Mãos Sujas). Certa feita,
em réplica à luta pela moralidade no Brasil, um realista afirmou que
apelar para a noção de consciência era algo irrelevante e ridículo.
Mengele, escreveu ele, também possuía consciência. A mesma pessoa
afirmou rir às escâncaras quando escuta alguém invocando a consciência
como critério de ação e juízo. As vítimas de Mengele não riram, com
certeza, diante de seus atos e palavras. Nem as vítimas das ditaduras
que amestraram o Brasil no século 20.
Com a zombaria os realistas (no poder ou na sarjeta, não raro os dois
lugares se confundem) sempre usam aspas para desqualificar quem ainda
não se deixou prender pelo cinismo ou pela tibieza. Aspas foram
inflacionadas na propaganda fascista, nazista e comunista. É preciso
arrancar um indivíduo da vida pública? Aspas no seu nome, em seus
títulos, nacionalidade, condição humana!
Victor Klemperer, outro estudioso que observou técnicas fascistas da
fala, nota o uso das aspas no extermínio dos que desafiam oficialismos.
"A língua do Terceiro Reich tem horror da neutralidade, porque ela
sempre precisa de um adversário e sempre precisa derrubar este
adversário." Se os revolucionários espanhóis têm uma vitória, se possuem
oficiais ou um quartel-general, eles são ditos "vitoriosos" ou
"oficiais". A mesma regra foi usada contra os russos que teriam uma
"estratégia". A Iugoslávia teria um "marechal", Tito. Chamberlain,
Churchill, Roosevelt eram "estadistas"; Einstein, um "pesquisador
científico"; Rathenau, "um alemão"; e Heine, escritor "alemão".
O uso das aspas, para expor os inimigos ao ridículo, generalizou-se
no fascismo de tal modo, diz Klemperer, "que nenhum artigo de jornal ou
discurso impresso deixava de estar delas apinhado (...). As aspas
pertencem tanto à língua impressa do Terceiro Reich quanto à entoação de
Hitler e Goebbels, elas são intrínsecas às duas" (LTI: Lingua Tertii
Imperii). É bom recordar tais frases quando militantes e teóricos do
poder usam aspas para desqualificar seus críticos. O mais comum na
língua do governismo brasileiro é escrever que a corrupção imaculada não
é aceita pelos "ditos intelectuais". Semelhante tática eivada de
misologia mostra que de libertário e democrático o discurso e a prática
nada têm.
Outro vezo fascista era negar aos intelectuais de certa origem
(racial, política, ideológica, religiosa) os títulos acadêmicos. Quando
as aspas se mostravam insuficientes, era proibido nomear alguém
(professores, médicos, advogados, juízes em desgraça) segundo os seus
diplomas universitários. Os judeus foram os mais humilhados. Mas a
técnica foi aplicada a outros inimigos do Reich (Bruno Bettelheim, The
Informed Heart: the Human Condition in Modern Mass Society). O método
não vicejou apenas entre os fascistas de direita. Os da esquerda também
usaram aspas para desacreditar inimigos. As formas de governo liberais
eram ditas "democráticas", os professores não ortodoxos em termos de
stalinismo eram "intelectuais", etc. Comunhão negra dos nada santos
militantes, diria Merleau-Ponty. A técnica da desqualificação é a mesma,
porque é o mesmo estilo de fazer política: aniquilar quem pensa
diferente. Tal é a regra dos que agora ovacionam os palácios
brasilienses.
Quando Stalin discursava, era proibido interromper os aplausos. Quem
parasse primeiro era julgado inimigo do povo. As mãos dos companheiros
ficavam inchadas, quentes e doloridas. O problema resolveu-se com
funcionários no fim da sala carregando baldes de água fria. Haja gelo
para acalmar a fúria bajulatória dos que seguem os poderosos de plantão!
* Filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor, entre outros livros, de 'O caldeirão de Medeia' (Perspectiva)