A Religiosa, última aula.
Prof. Roberto Romano
Ao analisar o pensamento e as práticas de Diderot no plano do
teatro, Béatrice Didier ([1]), autora de
corretos trabalhos sobre a música no século 18 (sobretudo nas relações entre
música, energia, ópera) indica o elo entre seu determinismo materialista e a
sua concepção teatral. Ela mostra que a figura do pai, onipresente em suas
peças (morto ou vivo) é o símbolo do determinismo biológico. Ninguém escolhe o
próprio genitor, assim como o ser humano não pode mudar o ritmo e a mudança que
ocorre no interior da natureza. Assim, para usar o mote de Jacques o Fatalista,
“tudo está escrito lá encima”. Mas o homem deve fazer de conta que é livre. É
assim que Jacques o faz, e assim ele é mais eficaz do que seu patrão, que
confessa uma doutrina voluntarista. Os heróis submetidos ao pai, portanto,
reconhecem o determinismo e buscam agir dentro de seus limites, mas não se
subordinando cegamente a ele, mesmo nos piores resultados, nos fracassos
trágicos.
Tal é a tela de fundo de A Religiosa. Aqui temos uma tripla
(ou mesmo quádrupla) determinação que tange a vida da heroína. Em primeiro
lugar o determinismo biológico cego que a torna filha de um desconhecido,
devendo ela “pagar”pela sua origem no âmbito familiar, social, jurídico e
religioso. Aqui, temos o elemento essencial da tragédia grega: o
desconhecimento pelo herói da origem de seus males, algo devido à Τύχη .
(Tyche). O erro viria da ignorância, ensina a filosofia clássica. Depois, o
determinismo social, vivido como se fosse elemento da natureza, decide quem é “filho legítimo”e quem não é.
Aqui, a decisão cabe ao pai “verdadeiro” que assume o rebento, ou ao postiço,
que pode aceitar a missão paterna ou não. De qualquer modo, a mulher que gerou
o filho não tem voz ativa na sociedade patriarcal. Quem não foi assumido como
legítimo sofre o peso de uma desgraça tão impiedosa quanto a marcha da natureza
cega. Note-se que na Europa, particularmente na França absolutista, o costume machista
se atenua em parte com o reconhecimento pelo rei, nobres, e mesmo burgueses dos
filhos bastardos. Estes chegavam a ser tratados, social e juridicamente, como
dignos de respeito e consideração. Como enuncia um autor do século 18,
Ferrière, “Comme le mariage est la seule voie légitime de la propagation du
genre humain, on distingue la condition des bâtards de celles des enfants
légitimes; et même on ne donne le nom d'enfant aux bâtards qu'en y ajoutant
quelque épithête, comme d'enfants naturels, ou autres. Les bâtards sont
capables du droit des gens et du droit civil comme ceux qui sont nés en
légitime mariage, par la raison que c'est la naissance seule dans un pays qui
donne le droit de bourgeoisie et la capacité des effets civils. Ils peuvent
donc acquérir et posséder toutes sortes de biens et de charges dans le royaume,
ce qui est d'autant plus juste qu'on doit honorer la vertu, quelque part
qu'elle se trouve”. ([2])Mas quanto menor a
grandeza dos bens familiares e mais estreita a mentalidade da família, menos
eram reconhecidos os bastardos, mais sofriam eles o castigo de uma “culpa”que
não lhes poderia ser atribuída.
Trata-se do caso, em A Religiosa. Depois temos o determinismo jurídico. Embora
atenuada pelos costumes, sobretudo nas famílias aristocráticas e ricas, a regra
da ilegitimidade tolhe as possíveis movimentações livres no mundo social,
político e mesmo religioso. Aqui, o mesmo Ferrière citado anteriormente
descreve a crueldade “santa”de maneira a concorrer com o texto diderotiano.
Cito o trecho do Dicionário de Prática : “Se
os bastardos não podem ser promovidos às ordens, nem possuir benefícios na Igreja a não ser através da
dispensa, não significa que algo lhes deva ser imputado por ocasião de seu
nascimento; mas é apenas porque a mejestade da casa de Deus exige que seus
ministros e funcionários seja isentos da menor mácula, mesmo daquela que não
pode ser imputada a eles, mas aos que os lhes deram o ser. A razão e a
religião, portanto, trabalharam unidas para punir o vício não admitindo no
estado eclesiástico quem nasceu fora do casamento, porque é fruto da
incontinência dos que lhe deram o ser”. Suzanne sequer poderia pedir licença
para estar no convento como religiosa. Para “esconder”a culpa de sua geração,
os pais mentiram hipócritamente para a sociedade, o Estado, a Igreja. Assim,
temos o determinismo social e político dando-se as mãos para impedir a
liberdade de um indivíduo humano.
Os determinismos são desafiados ao longo de A
Religiosa por meio dos mais diversos procedimentos. Ela tenta usar a
lingua contra o sacrifício que lhe é imposto. E perde. Tenta usar a lingua
escrita, remetendo cartas às autoridades e ao marques de Croismare. Perde.
Tenta assumir uma atitude distante em relação às regras monásticas, de modo a
guardar alguma livre atitude corporal e anímica. Perde. Sua morte, no final, é
o ápice do determinismo, que no seu caso não pode ser desviado, como em Jacques
o Fatalista.
Leitor de Platão, além de ser um entusiasta dos trágicos
gregos, Diderot descreve a tragetória de Suzanne como uma tentativa contínua e
desesperada de lutar contra a Fortuna, sendo finalmente vencida de modo
terrível. A narrativa pictórica de A Religiosa é na verdade uma peça teatral
trágica, sendo os conventos cenários onde se espelham as paixões e sentimentos
baixos da sociedade e do Estado. O teatro recolhe as duras verdades e mentiras
do mundo, seja ele sagrado ou profano. Como disse, leitor de Platão ( e também
tradutor do filósofo durante sua estadia nas celas de Vincennes), Diderot sabe
perfeitamente que nas Leis (obra muito lida pelos juristas
e filósofos modernos, desde o século XVI até hoje) se encontra o símile de
nosso destino e o das marionetes, movidas por mãos invisíveis. Na altura de 644
d o Ateniense propõe indicações do que é a e esperança (ἐλπίς) diante do futuro. A que traz dor(λύπης) é dita “medo” (φόβος) e a que traz prazer é dita “confiança” e
para pensar tais coisas, existe o cálculo sobre o bom e o péssimo. O cálculo, quando
se torna um decreto público se chama “lei”. Diante das dificuldades para
entender a tese, por Megilo, o Ateniense propõe a imagem: “Vamos conceber o
assunto deste jeito. Vamos supor que cada um de nós, criaturas vivas, é uma
engenhosa boneca dos deuses, seja para uso como brinquedo para eles ou para
algum propósito sério (pois nada sabemos quanto a tal ponto). Mas sabemos que
existem que dentro de nós existem afecções, como fios ou cordas, que nos
empurram e, sendo opostos uns aos outros, puxam em opostas direções; aqui
reside a linha que divide o bem do mal. Porque, segundo nosso argumento delara,
há uma dessas forcas que empurram que todo homem deveria seguir, mas existem
outros fios que agem em sentido contrário”. Além de Platão, Diderot era cultor de
Horácio. Este, nas Sátiras (II, 7, 82) enxerga o homem como uma pequena marionete.
Importa nos deter na Sátira citada porque é nela que se
encontra todo o mote de O Sobrinho de Rameau, a grande obra
diderotiana sobre a fortuna do sábio e do medíocre. Naquele trecho, após
condenar o indivíduo que foge de um espaço a outro, como se fosse dirigido
imediatamente por Vertumnio, o deus das mudanças, e de um tempo para outro
(chora pelos tempos antigos, mas jamais aceitaria neles viver ou voltar),
Horácio ensina, como os seus colegas de filosofia, que o sábio comanda a si
mesmo, não teme a pobreza, não teme a morte, nem a prisão, ele resiste aos
próprios desejos, despreza as honras, vive em si mesmo como se fosse uma esfera
perfeita, sobre a qual nenhum corpo pode se alojar e contra a qual se quebra a
Fortuna, impotente.
Suzanne reúne em si mesma as qualidades do sábio, mas não
totalmente, e as da marionete deslocada no espaço e no tempo, sem descanso. Ela
não pode ser sábia, visto que é determinada de fora (o termo mais certo seria
“alienação”), mas não é totalmente louca, porque busca afirmar sua autonomia e
independência diante da riqueza, das honras. Ela, no entanto, tem horror (φόβος)
da prisão e não pode a ela se resignar estoicamente. Ela conduz a
esperança (ἐλπίς)
de sair do convento até o máximo. Mas sua luta tem como obstáculo maior
a lei que a sociedade dá a si mesma e a todos. E a lei é tirânica. Dá para entender o porque do dito diderotiano
sobre A Religiosa, “a mais terrível sátira sobre os conventos”. Neles
ninguém consegue ser sábio in totum, nem louco. Todos são agidos como pequenas
marionetes das quais se ignora o manipulador dos fios. Quem deseja analisar O
Sobrinho de Rameau e A Religiosa (além de outros textos
de Diderot, como Jacques o Fatalista e as peças teatrais) precisa inspecionar
com o máximo apuro a Sátira de Horácio e as Leis de Platão. ([3])
Além dos determinismos naturais e sociais apresentados em A
Religiosa (o embate de um ser humano que, à semelhança de bonita
borboleta se recusa a ficar espetada numa parede de cela) temos outros
problemas de ordem ética e moral que afligem as pessoas até hoje. É o caso do
aborto em situações desesperadas. Como sua mãe era hipócrita e dizia ser
cristã, o aborto não foi praticado e Suzanne nasceu. Diderot aconselha, pela
voz de Suzanne, em casos semelhantes, o remédio do assassinato no berço: “Matai
vossa filha em vez de a aprisioná-la num claustro contra sua vontade; sim,
matai vossa filha. Quantas vezes desejei ter sido morta por minha mãe ao
nascer! Ela teria sido menos cruel”. Um
comentador, Dominique Julien, nota que Suzanne não parece ter consciência de
que tal é a função de seu encerramento no claustro pela sua mãe : matá-la para
o mundo, para a família, para ela mesma. A tentativa reiterada, física ou
imaginária de suicídio (a tentação de se jogar num poço profundo) pode ser a
marca de seu desespero, mas também o desejo de levar o gesto da mãe ao máximo,
matando a si mesma para que a genitora retornasse a um tempo sem máculas, à uma
inocência agora impossível. A imagem da enterrada viva é obsessiva em Suzanne.
Metáfora da vida social, política, jurídica, o romance
diderotiano só encontra similar no século 20, com os textos de Kafka. Que esta
obra reúne elementos éticos, estéticos, políticos, religiosos, sociais, é
patente. O sentido de semelhante síntese ainda ergue comentários e comentários
dos especialistas. Com o curso que agora acabamos, pretendi levar aos
estudantes as facetas de um autor que é filósofo, esteta, teatrólogo, crítico
de arte, poeta, artesão, dicionarista, naturalista, médico, etc. Ou seja, com
Diderot retroagimos a uma tempo em que a filosofia não era uma “disciplina”a
mais no âmbito das ciências humanas. Ela era a busca de totalizar o saber e a
prática dos seres humanos. Ela era, sobretudo, um desejo de liberdade no
pensamento e na ordem social. Coisas que hoje parecem utópicas e desprovidas de
sentido. Boas férias para os senhores!
[2] Claude-Joseph de
Ferrière: Dictionnaire de Droit et de Pratique (Paris, Bauche
Libraire,1771), página 58 e seguintes. Existe edição eletrônica na Gallica, BNF.
[3] Importa consultar o clássico de Ernst
Robert Curtius, A literatura européia e a Idade Média Latina, sobretudo o
capítulo sobre as metáforas do teatro. Existe edição brasileira pela Edusp.