quarta-feira, 13 de março de 2013

Antes da escolha de Bento XVI, escrevi o artigo abaixo. Na época, os ignaros jornalistas brasileiros, sempre pequenos em cultura e cérebro, torciam para D. Hummes. Agora, para Dom Scherer. Mas sempre as tolices sobre a Igreja, a superficialidade, a fofoca miúda. Em ocasiões assim é possivel aquilatar melhor o quanto NÀO temos uma imprensa digna de sua história. Temos tarefeiros das redações. Arrogantes e idiotas, mas tarefeiros, nada mais.

 

Os símbolos na Igreja
(*) Roberto Romano da Silva

A cultura recolhe símbolos que orientam e servem para distinguir valores, dignidades, emoções coletivas. É bom recordar o sentido primevo do símbolo, que surge na Grécia homérica com a guerra e sua face terrível. Nos ataques às famílias, assassinatos, traições e desconfianças, como reconhecer um amigo?  A resposta é simples: quando dois seres, unidos pela “philia”, se despedem, quebram um objeto em duas metades e cada um deles fica com a sua parte. Mais tarde, mudada a sua face pela velhice e sofrimento eles se encontram (ou os seus filhos) e unem as duas metades. À diferença do signo, cuja potência se esgota em denotações, o símbolo encerra uma força incalculável de união.

Instituições ricas em símbolos ultrapassam em dignidade as que se baseiam em signos lógicos, jurídicos, políticos, econômicos. A Igreja é um tecido simbólico intrincado. A nos inspirar em Tertuliano, ela é uma calda de pavão com múltiplas cores, todas convergindo para o efeito maior, a vista do arco-íris. Nela, têm lugar todas as raças, culturas e idéias. A única exigência é que a harmonia do todo seja assumida pelos particulares. Administrar cada uma das formas e conduzi-las à concórdia sempre foi o desafio dos pastores. O catolicismo reúne os opostos e os conduz, na observação de E. Canetti, rumo ao Eterno. A hierarquia não se deixa dominar pela voragem do tempo que desgraça os Estados, a sociedade civil e os mercados. J. le Goff o diz bem num artigo eloqüente: “Tempo da Igreja e tempo do mercador”. Este último deixa-se penetrar pela rapidez das trocas, vende e compra o tempo na forma dos juros. Mas a Igreja declara que o tempo a Deus pertence e adverte contra a divinização das moedas.

Dentre os símbolos do governo eclesiástico, a tiara papal apresenta interesse. O adorno foi utilizado até Paulo 6 e guarda todo o seu poder evocador. Ela é um capacete encimado pela cruz. Na sua base sucedem-se três diademas reais, simbolizando os três campos onde se exerce o poder pontifício. A sua forma atual foi produzida em vários períodos. No primeiro, por volta de 900 depois de Cristo, ela não era tinha nenhuma coroa. No reino de Bonifácio 8 (1294-1303) surge uma coroa e depois outra. Bonifácio lutou contra Eduardo 1 da Inglaterra a propósito da proibição, feita pelo rei, da remessa de recursos para a Santa Sé. O soberano precisava de muito dinheiro para a guerra. A resistência dos padres ingleses lhes valeu serem postos fora da lei. O papa retrucou proclamando a Escócia como feudo papal e proibindo Eduardo de invadi-la. O rei consegue que Parlamento o “proíba” de obedecer ao papa. Surge a bula Clericis laicos (1296) que determina a inferioridade dos leigos e dos soberanos.  O escrito “ofende” Eduardo e o rei da França, Felipe IV, que também proíbe as taxas para Roma. Bonifácio 8 escreve então a maior defesa da superioridade papal na Bula Unam sanctam (1302). O rei francês manda prendê-lo em Anagnani. O  papa, detido por alguns dias, morre devido ao insulto. 

Assim como as duas Bulas, a tiara indica que se o rei possui uma coroa, o papa exibe duas, após Bonifácio VIII. Chegamos à fase, onde se acrescenta a terceira coroa, uso que se tornou comum e caro nos reinos de Paulo II (morto em 1464), Sixto IV (morto em 1484) e Julio II, cuja tiara valia 200 mil ducados. Julio II é o papa que imaginou a igreja de São Pedro, para cuja construção foram buscados recursos entre os fiéis e príncipes leigos. As indulgências deram pretexto para a Reforma luterana. Quebrou-se a Igreja, simbolicamente, em duas partes. Julio II foi conhecido como general que tentou submeter as repúblicas e reinos italianos, geralmente cidades. Erasmo de Rotterdam redigiu um panfleto contra ele: “Julio II, a quem se negou o reino dos céus”. No texto, o pontífice aos berros bate na porta do paraíso,  exige entrada triunfal. Pedro o desconhece e diz que ele, a pedra angular da Igreja, nunca usou armas, jamais invadiu reinos, abominou arrancar taxas de pobres… Se Erasmo e Lutero tinham razão, só o exame histórico pode definir. A Igreja, sob João Paulo II, reconheceu pontos em que Lutero estava com o direito. A tríplice coroa mostra que o papa é superior ao império e aos reis e ainda ostenta um formidável poder temporal. 

Porque falar agora sobre a tiara? Porque a imprensa, brasileira e internacional, exibe pleno analfabetismo quando fala da Igreja, nisto seguida por uma chusma de analistas que enxergam o poder eclesiástico com as lentes da política civil. O vexame sobre o suposto desejo de aposentadoria, no Testamento de João Paulo 2, mostrou que jornalistas célebres não sabem ler um documento e são ainda mais ineptos quando se trata dos símbolos. Nos próximos dias, será decidido quem usará a tiara, representando o poder da Igreja em humana plenitude.  Discutir o próximo conclave ao redor de nomes é exibir incultura histórica e antropológica. Os indivíduos, na Igreja, servem a comunidade, não o contrário. Seus nomes se apagam no tecido simbólico cujo alvo maior é preservar a riqueza espiritual. A tiara indica a superioridade da Igreja sobre os assuntos políticos. O papa não pode ser a criatura deste ou daquele governo temporal. Se a diplomacia brasileira estivesse em melhores mãos, não existiria o ridículo atroz dos discursos em prol do cardeal Hummes. A imprudência do Planalto prejudica as suas chances entre seus pares. Se eleito, Dom Cláudio o será apesar do governo brasileiro. Voltarei aos símbolos na Igreja, até que tenhamos um novo papa.