"O que traria a volta da direita?", pergunta Ivo Lesbaupin.
"Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do
agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos
povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal?
Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização
da reforma agrária?" E ele responde: "Tudo isso está sendo feito por
este governo".
Segundo o professor da UFRJ, "existe uma direita mais à direita que
este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas
que este governo está montado para atender aos interesses dos grandes
grupos econômicos, também não há dúvida".
Ivo Lesbaupin
é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É mestre
em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro - IUPERJ - e doutor em Sociologia pela Université de
Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG Iser Assessoria, do Rio
de Janeiro, e membro da direção da Abong. É autor e organizador de
diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).
Eis o artigo.
A privatização do megacampo petrolífero de Libra (área de pré-sal) é um divisor de águas. Todos os movimentos sociais do Brasil, inclusive alguns muito próximos ao governo, se posicionaram contra. O governo se manteve inflexível e, copiando o governo FHC nas grandes privatizações (Vale, Telebrás), garantiu o leilão com segurança policial e tropas militares, de um lado, e batalhões de advogados da Advocacia Geral da União para derrubar liminares, de outro.
O governo deixou claro de que lado está.
Muitas das análises sobre os governos do PT (Lula-Dilma) partem do pressuposto de que houve antes um governo de direita, neoliberal, o de FHC, e que hoje temos um governo se não de esquerda, ao menos de centro-esquerda, de coalizão.
Seria um governo em disputa, que ora tomaria medidas mais voltadas
para os setores populares ora voltadas para os setores dominantes. Isto
dependeria da maior ou menor pressão de cada um dos lados.
Este pressuposto leva a crer que este governo mereça todo o nosso
apoio para evitar a "volta da direita". Porque esta volta traria
políticas que não queremos ver novamente.
Os governos do PT indubitavelmente deram mais atenção ao social que
os governos anteriores, como o aumento real do salário-mínimo e o
programa Bolsa-Família, e reduziram fortemente o
desemprego. A política externa é mais independente e também solidária
com os governos progressistas de outros países da América Latina. E
poderíamos citar uma lista de avanços ocorridos nos últimos dez anos,
avanços que devem ser mantidos e devemos apoiar.
Há setores do governo que têm uma preocupação centrada na sociedade,
nos trabalhadores, que se dedicam a uma maior democratização. Mas,
infelizmente, estes setores não mandam no governo. E, na hora da
cobrança, apoiam as grandes decisões (Belo Monte, Libra...).
Porém, se examinarmos mais de perto, o que nos impressiona não são as
diferenças com os governos anteriores, são as semelhanças – cada vez
maiores, à medida que o tempo passa. O governo FHC é
considerado uma “herança maldita”. Mas a política econômica que
privilegia o capital financeiro permanece de pé: os bancos tiveram mais
lucros nos governos do PT do que antes. E estes governos introduziram
medidas que favoreceram ainda mais os investidores financeiros ao
isentá-los, em vários casos, de imposto. Não foi feita nenhuma reforma
estrutural nas estruturas geradoras da desigualdade no país. No entanto,
foram feitas reformas estruturais para atender aos interesses do
capital, como a reforma da previdência do setor público, aprovada no
primeiro ano do governo Lula.
Os recursos do país: para quem vão prioritariamente?
Se queremos saber para quem o governo trabalha, temos de examinar o
orçamento realizado: para onde estão indo os recursos? Os recursos do
país são destinados fundamentalmente ao pagamento da dívida pública,
interna e externa, e de seus juros. A dívida externa chegou em dezembro
de 2012 a 441 bilhões de dólares e a dívida interna a 2 trilhões e 823
bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida).
O orçamento realizado de 2012 mostra que 44% do nosso dinheiro foi
usado para os juros, amortização e rolagem da dívida, enquanto que
apenas 5% para a saúde e 3% para a educação. Em suma, o destino de quase
metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país – que são
aqueles que recebem os juros da dívida -, além dos credores externos.
Cada décimo de aumento dos juros pelo Banco Central significa maiores
ganhos para os que já são muito ricos.
Portanto: o primeiro setor cujos interesses são atendidos é o capital financeiro (bancos e investidores financeiros)
Obras de infraestrutura: para as empreiteiras
Mas, há um segundo setor que é também privilegiado pelo governo: são as grandes empreiteiras – Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez... Elas estão em todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas – Belo Monte é o exemplo mais notório – e até na do Maracanã. Em 1993, durante a CPI do Orçamento, o senador José Paulo Bisol
havia denunciado a existência de um “governo paralelo” no país: eram as
grandes empreiteiras, que distribuíam entre si as licitações das obras
públicas. Denunciou, mas nada aconteceu... A maior parte destas obras
são financiadas pelo BNDES, com recursos públicos, portanto.
Estas empreiteiras são também, junto com os bancos, as principais
financiadoras das campanhas eleitorais. Este dado nos ajuda a entender o
empenho do governo na realização de certas políticas – os megaprojetos,
por exemplo, as privatizações, outro exemplo – e no impedimento de
controles sobre o capital – a não realização da auditoria da dívida, por
exemplo.
Portanto, o segundo setor cujos interesses são atendidos é constituído pelas grandes empreiteiras.
O agronegócio: o grande aliado do governo no campo
E há um terceiro setor que tem recebido muito apoio do governo: o
agronegócio. O governo ajuda a agricultura familiar, sem dúvida, mas a
proporção é de 90% para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar.
Esta é a razão pela qual, em dez anos de governos do PT, a reforma
agrária não avançou: o principal aliado do governo no campo é o
agronegócio, não os movimentos sociais. E certas medidas que favorecem
este setor acabam sendo aprovadas no Congresso – o Código Florestal -, porque o governo não quer perder este aliado.
Portanto, o terceiro setor cujos interesses são atendidos é o agronegócio.
Povos indígenas: pedra no caminho do agronegócio, de megaprojetos de infraestrutura, de grandes mineradoras
O governo está ressuscitando a política indigenista da ditadura, para
a qual "o índio não pode atrapalhar o progresso do país". O capítulo
sobre os povos indígenas foi comemorado, na época, como um dos mais
avançados da Constituição Cidadã. Pois exatamente os direitos destes
povos originários ás suas terras estão sendo derrubados: pouco a pouco, a
cada nova usina hidrelétrica, a cada nova lei ou portaria (ou
código...), os direitos estão sendo violados e até as demarcações já
feitas correm o risco de serem questionadas. Para atender aos interesses
de setores do capital, este governo está desprezando os direitos dos
povos indígenas.
O sistema tributário reprodutor da desigualdade social permanece
Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo, que o governo FHC
acentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este
sistema concentra renda, é um “Robin Hood” às avessas, tira dos pobres
para dar aos ricos. É um sistema pelo qual os pobres pagam
proporcionalmente mais que os ricos, porque nele o peso maior está no
imposto sobre o consumo. Mesmo aquele que não têm renda para pagar
imposto de renda compra bens, compra alimentos. E no preço dos bens está
incluído o imposto.
Embora tenha introduzido pequenos avanços, no essencial esta herança de FHC
foi mantida pelos governos do PT: a regressividade do sistema
permanece. E a combinação de superávit primário (...) com a política
monetária de juros altos incidentes sobre a dívida pública resulta “num
dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres para
os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo. (...) Na
verdade, o mais poderoso mecanismo de concentração de renda na economia é
essa combinação de política fiscal e monetária perversa, onde o Estado
atua como um redistribuidor de renda e de riqueza a favor dos poderosos”
(Assis, 2005: 89) (1).
Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma
reforma tributária, para tornar o sistema progressivo (os que podem
mais, pagam mais). Mas o governo não fez isso: ao contrário, apresentou
um projeto de reforma que não mexe no caráter regressivo e que cortará
recursos da Seguridade Social, se for aprovada.
Haveria uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos
para os ricos: seria a realização de uma auditoria da dívida pública.
Ela provaria que uma parte da dívida que nós pagamos é irregular e isto
reduziria substancialmente a sangria de recursos públicos. A única
auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham
documentos que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos
depois, quando o Equador fez sua auditoria, em 2009:
65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa dívida
externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar
de 1964-1985, quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há
sérias suposições de que parte desta dívida é indevida. O que só uma
auditoria poderia verificar e comprovar (a CPI da dívida evidenciou
várias irregularidades que teriam de ser examinadas, mas PT e PSDB se
uniram para impedir que esta CPI tivesse resultados).
Esta é uma exigência da constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os governos do PT
puseram em prática. Preferiram favorecer os poucos privilegiados que
ganham com a manutenção do status quo. E desfavorecer os muitos que
sofrem as consequências de os recursos públicos não serem empregados
onde deveriam: pois esta é a razão da falta de recursos suficientes para
a saúde, a educação, o transporte, o saneamento básico, para os
serviços públicos em geral.
Havia ainda uma grande diferença entre o governo neoliberal de FHC e os governos do PT: as privatizações. No entanto, o governo Lula
não fez uma auditoria das privatizações, como se esperava; não
reestatizou nenhuma das empresas privatizadas, como fez o governo Evo Morales. O governo Lula privatizou algumas rodovias federais e o governo Dilma passou a privatizar tudo: portos, aeroportos, rodovias, hospitais universitários e até riquezas estratégicas como o petróleo.
O governo FHC havia quebrado o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar de reiterados protestos dos movimentos de trabalhadores, especialmente dos petroleiros. O governo Dilma promoveu o leilão de petróleo do campo de Libra
– cujas reservas valem no mínimo 1 trilhão de dólares - e tem ignorado
solenemente a oposição dos movimentos sociais. O petróleo é nosso? Não,
parte dele será das empresas privadas e estatais estrangeiras que
venceram este leilão, assim decidiu o governo brasileiro. É como se só
devesse satisfação ao setor privado, às multinacionais: os interesses do
país, as reivindicações dos movimentos populares não são prioritárias.
O que traria a volta da direita?
Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do
agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos
povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código Florestal?
Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização
da reforma agrária?
Tudo isso está sendo feito por este governo.
Com exceção dos líderes do PSDB, todos os líderes da direita são hoje aliados do governo: Sarney, Renan Calheiros, Jader Barbalho, Romero Jucá, Collor, Maluf, Sérgio Cabral, Kátia Abreu...
Apesar de sua prática, de suas políticas fundamentais, o governo
mantém um discurso de esquerda, de quem defende os direitos dos pobres e
oprimidos e que "a direita quer solapar", "olhem o que a grande mídia
diz de nós". Os movimentos de trabalhadores e demais movimentos sociais
veem suas reivindicações desprezadas (povos indígenas), não atendidas
(reforma agrária) ou mal atendidas (recursos para a agricultura
familiar).
Movimentos sociais e entidades da sociedade civil precisam
constantemente se mobilizar, denunciar, fazer pressão, para evitar perda
de direitos, para evitar retrocessos maiores. E a maioria das vezes não
o conseguem (Libra é apenas um exemplo).
Apesar da defesa e do apoio de alguns movimentos sociais, o governo
nunca se sentiu obrigado a cumprir os compromissos assumidos com relação
aos trabalhadores: nem a reforma agrária, nem a auditoria da dívida,
nem a defesa das terras dos povos tradicionais...
A grande mídia é denunciada por autoridades públicas como parcial,
agressiva, injusta com o governo, adepta de uma postura demolidora. Mas o
governo nada faz para democratizar os meios de comunicação no Brasil,
nada faz para quebrar o oligopólio existente, através da regulamentação
do setor, que permitiria abrir o espectro das comunicações para outros
atores. Por que? Porque, na verdade, apesar das críticas a aspectos
secundários, a grande mídia apoia todos os projetos importantes do
governo: o pagamento da dívida sem auditoria, os aumentos da taxa de
juros (supostamente para conter a inflação), as usinas hidrelétricas na
Amazônia, a transposição do S. Francisco, o leilão de Libra... As
críticas da grande mídia mantêm a aparência de que os interesses da
direita não estão sendo atendidos e que o governo é "de esquerda". A
manutenção desta aparência interessa aos que querem se manter no poder.
Na verdade, o governo receia a entrada em cena de outros meios de
comunicação, capazes de trazer outras opiniões, de fazer a crítica a
aspectos centrais da atual política. É por isso que, neste campo, tudo
fica como está.
Existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é
possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado
para atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há
dúvida. Ele tem certamente várias políticas louváveis, faz o
enfrentamento da pobreza, reduz a miséria, melhora a capacidade de
consumo dos pobres com mais crédito. Mas não muda as estruturas
geradoras da desigualdade social e, por isso, continua transferindo a
maior parte da renda e da riqueza do país para os mais ricos do país e
do mundo. E entregando nossas riquezas naturais para o setor privado e
as multinacionais. Isso mostra claramente a quem este governo serve em
primeiro lugar.
Nota do autor:
1.- ASSIS, José Carlos de (2005). A Macroeconomia do pleno emprego.
In: SICSÚ, João, PAULA, Luiz Fernando de, MICHEL, Renaut (orgs.)
(2005). Novo desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com
eqüidade social. Barueri, Manole; Rio de Janeiro, Fundação Konrad
Adenauer, p. 77-93.