Roberto Romano
Quando doutrinas jurídicas mostram elos inequívocos com práticas genocidas, obrigação ética é examinar os textos, sem o direito de elogiar seus pressupostos e conclusões. O anti-semitismo de Carl Schmitt requer tal atitude deontológica. Médicos, juízes, professores universitários, advogados, pesquisadores das ciências sociais, se profissionais competentes, conhecem a eugenia e a política assassina do nazismo, defendidas por militantes ignaros ou intelectuais. A culpa dos últimos é mais grave.
No
caso de C. Schmitt, ninguém pode elogiar suas doutrinas e calar o
incitamento ao genocídio nelas explícito. Bom número de universitários,
jornalistas e partidos de esquerda aplaudem, em nome da luta contra a
corrupção, pronunciamentos favoráveis ao jurista mais notório do
nazismo. Para citar Walter Benjamin, se não mantivermos a memória acesa,
“nem os mortos estão seguros”. Quem sofre na carne o preconceito racial
não tem o direito de ignorar o que significa Schmitt na história do
Direito e das ideologias. E. Bloch, autor do livro O Princípio Esperança
o situa entre “as prostitutas do absolutismo que se tornou
completamente mortífero, do absolutismo nacional-socialista.”(Droit
Naturel et Dignité Humaine, Paris, Payot, 1976, p. 57).
Schmitt
uniu as formas legais nazistas e as ditaduras que a SA (destruída por
Hitler e trocada pela Gestapo) impuseram à Alemanha. Para conhecer o
pensamento de Schmitt, examinemos seus escritos, mesmo que tal mister
exija a máscara contra gases fétidos.
Nos
últimos vinte anos ele se tornou o patrono da esquerda e dos que
renovam o fascismo. Sua leitura raramente é feita em primeira mão, os
axiomas que ele inventou chegam aos catecúmenos por propagandistas como
G. Agambem e outros. Ignorando sua atividade efetiva, não o lendo
diretamente, muitos transmitem ao coletivo o seu antissemitismo
totalitário.'
Yves
Ch. Zarka, autor de pesquisas essenciais sobre Hobbes (cujos textos são
usados por Schmitt para combater a democracia) e a razão de Estado,
desmascara ao mesmo tempo Schmitt e a esquerda que hoje o assume. Cito o
juízo de Zarka, escritor a ser usado por mim até o final das presentes
análises. “Existia uma corrente pró schmittiana de extrema direita. O
que não é surpresa. Schmitt é reivindicado pela ala a que ele pertenceu.
Mas é nova a adesão às teses de Schmitt entre intelectuais da esquerda
ou extrema esquerda. Era impossível em 1960 ou 1970 que tais setores se
referissem a um pensador ligado ao nazismo, mas hoje ocorre o contrário.
Como entender a sedução do pensamento de Schmitt entre os intelectuais
de esquerda? A razão principal, creio, é a crise profunda do pensamento
de esquerda pós marxista. Como o pensamento marxista caiu na indigência,
perdeu todo crédito, é incapaz de suscitar a menor adesão intelectual,
bom número de teses schmittianas surgem como tábua de salvação. É como
se Schmitt fornecesse a versão renovada, revigorada, expressa em outros
termos, de teses e temas antes mantidas no pensamento e no combate
marxista. Assim ocorre na crítica ao liberalismo, parlamentarismo,
representação política, formalidade dos direitos humanos, no tema
central da luta ou da guerra na história, na questão do inimigo (de
classe, estrangeiro) etc. Em tais pontos. Schmitt parece suscetível de
tomar o bastão de Marx (...) para defender as mesmas posições ou
combater os mesmos adversários (...) O mesmo jurista, hoje guru de uma
parte dos intelectuais, conduziu décadas antes os que o seguiam,
repetindo o grande jurista alemão E. Kaufmann, “para a lama do niilismo e
de sua variante nacional-socialista”. (Un détail nazi dans la pensée de
Carl Schmitt, Paris, PUF, 2005, pp. 92-93).
Schmitt usa frases rápidas que geram persuasão
capaz de obnubilar a mente dos jejunos em sofística. Mesmo W. Benjamin
já sofrera os seus encantos no livro A origem do drama barroco alemão.
Naquele escrito, o conceito de Schmitt sobre a ditadura é acolhido como
se não fosse um pilar do previsível Estado nazista. Benjamin não
problematiza o enunciado que reza ser “soberano, quem decide sobre o
estado de exceção”. Outros empréstimos de Schmitt são visíveis naquele
escrito. Mas o seu cochilo é inocente perto das asserções de rara leveza
ética, redigidas por Agamben e pares sobre os poderes democráticos, por
eles incluídos na “exceção”.
Schmitt
é racista e sua maneira de pensar não pode ser aproveitada para a
invalidar o Estado e a sociedade onde vigoram os direitos humanos. A
democracia tem falhas, mostradas por Platão e Hobbes. Se ela resistiu
aos ataques daqueles pensadores, as fórmulas de Schmitt estão longe de
aniquilar as noções de Constituição e de Estado de direito. Com seus
artifícios, ele não efetuou a tarefa de coveiro da liberdade. Foi
preciso o Holocausto para levar sua missão ao fim genocida. Quem deseja
controlar minha análise leia, ou releia o texto de Schmitt intitulado
Estado, movimento, povo (Staat, Bewegung, Volk, Hamburg, Hanseatische
Verlagsanstalt, 1933; tradução italiana em Schmitt, C. : Principii
politici del nazionalsocialismo, Firenze, G.S. Sansoni, 1935) ".
Schmitt
indica três elementos da unidade política: o Estado, o movimento
nazista, o povo alemão. E parte em guerra contra a noção de uma
universalidade política. Ele ataca a igualdade legal dos componentes
sociais e políticos do Estado. Mesmo o conceito de Allgemeine
Staatslehre (doutrina geral do Estado) é por ele rechaçado como preso ao
pretérito liberal da Europa. A própria palavra Allgemein (geral), diz
ele, sugere um Estado de todos, incompatível com o Estado nazista,
apenas e tão somente dos alemães legítimos. Ao dizer “povo”, Schmitt
visa o alemão de raça ariana, à exclusão dos que, mesmo com a
nacionalidade formal alemã, pertenceriam a outras etnias. Judeus,
ciganos, negros, turcos, árabes seriam alheios e inimigos do povo
tedesco. É preciso cuidado com a palavra “povo” nos escritos
schmittianos. Brasileiros não alemães, por exemplo, estão expulsos de
sua definição do povo. Aplicar o termo ao Brasil e à sua Carta Magna,
além de um erro na exegese do autor, é temeridade ética e política.
Segundo
Schmitt, cada um dos itens (Estado, Movimento, Povo) poderia exprimir
“a unidade política” do nazismo: “O Estado no sentido estrito como parte
político-estática, o movimento como o elemento político dinâmico, o
povo como elemento não político que se desenvolve e cresce sob proteção e
à sombra das decisões políticas” (Schmitt). O movimento, continua o
autor, pressiona e lidera o Estado e o povo. A liderança que define o
movimento é algo próprio do nazismo. Com essa noção tripartite, Schmitt
nega os ritos da justiça conhecida em todos os regimes políticos
anteriores ao nazismo, mesmo no Estado absoluto. É conhecida a história
do moleiro que processou o rei prussiano. E ganhou a causa. Schmitt
alerta para que decisões políticas jamais cheguem às cortes de justiça,
porque no seu entender a igualdade das partes, inerente ao devido
processo legal, permitiria atividades “do inimigo aberto ou oculto do
Estado Novo” (Staat, Bewegung, Volk citado, p. 21). Teratologias assim
são a regra em Schmitt.
Schmitt
queria o Estado livre das cortes de Justiça, para evitar que os
governantes pudessem ser questionados. Ele não é único na faina de negar
à cidadania o direito de obter reparações ou impedir atos ilegítimos.
R. Höhn, seu protegido e depois concorrente no poder nazista, também ele
jurista, concorda que seria perigoso levar o Estado e o movimento ao
devido processo legal. Ambos atacam G. Jellinek porque este teria
reduzido o Estado à personalidade abstrata para garantir direitos
públicos aos indivíduos. No entender de Höhn “O Estado como pessoa legal
e o conceito de comunidade se excluem mutuamente”. (Cf. Stirki, Peter
M. R. Twentieth-century German Political Thought, ed. cit. p. 90).
Schmitt não limita suas receitas de teratologia
jurídica ao presente nazista. Ele busca investir suas teses na história
do Estado alemão. No escrito Staat als ein konkreter, an eine
geschichtliche Epoche gebundener Begriff (O Estado como conceito
concreto, adstrito à uma época histórica), publicado em
Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954 (Berlin, Duncker
& Humblot, 1958), ele discute o Estado e a soberania desde o século
16 e proclama ter chegado o fim do Estado como organização política
geral. Desde a instauração nazista o povo é a forma da unidade política.
E vem a sua definição do nacional socialismo: “identidade racial
incondicional (Artgleichheit) entre o líder e o séquito (Gefolgschaft)”.
Schmitt entende “raça” no sentido vulgar. (Cf. Staat, Bewegung, Volk,
ed. cit. p. 42).
Como
indica M. Stolleis, juiz e pesquisador do Direito, depois de 1933
“ninguém foi mais rápido ou mais competente em suprir o novo regime com
slogans” do que Schmitt. Ao analisar Staat, Bewegung, Volk, afirma
Stolleis: “Schmitt distingue o aparato burocrático e militar de comando
(Estado), o partido do Estado (o movimento) que seguem rumo a uma via
similar, visando um só ponto e o ‘povo’ organizado em unidades
autônomas, incluindo as igrejas. A lei definida pelo Estado se tornou
agora puro instrumento. A legalidade, que antes mediou a legitimidade,
foi amesquinhada a um ‘modo funcional do aparelho burocrático do
Estado’”. (Cf. Stolleis, Michael, A History of Public Law in Germany,
1914-1945, Oxford, Un. Press, 2004, p. 340). Termina Stolleis: “Com o
Estado, Movimento, Povo, Schmitt articulou a trindade que invadiu toda o
aparelho de propaganda do regime”.
“Povo”,
é preciso repetir, inclui apenas os arianos. Tal povo é protegido pelo
Estado nazista com força física e leis excepcionais. Assim ocorreu com a
lei de 14 de julho de 1933, que autoriza a esterilização em casos de
imbecilidade hereditária, esquizofrenia, loucura depressiva, epilepsia
hereditária, dança de São Guido, cegueira hereditária, surdez idem,
grave deformação física. Algo pior surgiu com as leis de Nuremberg. Os
decretos eugênicos se detinham no pretenso saber científico. As leis de
Nuremberg definiam a cidadania em termos raciais e nomeavam o inimigo de
raça, o judeu. Aqui importa ler (falo sempre para os honestos que não
vivem do ouvir falar nem de slogans) os livros de Fr. Neumann (Behemot.
The Structure and Practice of National Socialism, Oxford, University
Press, 1944) e de R. Hilberg (La destruction des Juifs d’Europe, Paris,
Arthème Fayard, 1988). Schmitt segue a diretiva posta em Mein Kampf. “O
alvo supremo deve ser a expulsão total dos judeus.” Hitler fala em
exterminar (Vernichtung) e mesmo em uso de gaz contra eles. A sorte da
Primeira Guerra Mundial, segundo o futuro Führer, seria outra se no
fronte, em vez de soldados, 10 mil ou 15 mil hebreus tivessem sido
expostos aos gazes asfixiantes. Schmitt/Hitler foram eficazes. Mataram
milhões de judeus.
Não
é possível atribuir inocência a quem elogia a eutanásia ou o genocídio.
Na Alemanha nazista ou no Brasil de hoje, pregar aquelas medidas é
crime. Se alguém usa conceitos genocidas e diz ignorar o seu
significado, exibe incompetência para exercer cargos públicos. Se os
utiliza e conhece os sentidos neles presentes, o crime é maior. Schmitt
exibe anti-semitismo, traduziu aquela ideologia em textos jurídicos
postos em leis. Ele ajudou a estabelecer a exclusão social e biológica
que gerou o Holocausto.
Em 1938 os judeus foram obrigados a acrescentar ao
seu nome o título de “Sara” ou “Israel”. Como indica Yves Charles Zarka,
desde 1936, em discurso intitulado A ciência alemã do direito na luta
contra o espírito judeu (Die deutsche Rechtswissenschaft im Kampf gegen
den jüdischen Geist, in Deutsche Juristen Zeitung, XLI, n 1, pp. 15-21)
Schmitt inventa a purificação racial da escrita jurídica. Devem ser
evitadas, diz ele, referências aos autores judeus. Se for impossível
cortar o nome, se acrescente o adjetivo “judeu”. No escrito O Leviatã na
teoria do Estado de Tomas Hobbes (Der Leviathan in der Staatslehre des
Thomas Hobbes, Stuttgart, Klett- Cota, 1938) ele usa a identificação
recomendada e cita “um sábio judeu, Leo Strauss”, “Spinoza, o primeiro
judeu liberal”, “o judeu Mendelssohn” etc.
Se
era impossível impedir que os judeus usassem a língua alemã, mais
difícil o combate para que eles fossem excluídos do território. O judeu,
na ideologia nazista, é inimigo externo e interno, penetra na alma
alemã e conspira contra o Reich no países liberais como a França, a
Inglaterra, os EUA. O judeu: inimigo estratégico. Desde O conceito do
político (Der Begriff des Politischen, text von 1932 mit einem Vorwort
und drei Corollarien, Berlin, Duncker & Humblot, 1963) Schmitt dá o
tom: “Os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados na sua
significação concreta, existencial, não só como metáforas ou símbolos”. A
essência do político está no conflito extremo, com a morte do
adversário. O inimigo, para o nazismo e para Schmitt, é o judeu. O
conceito de inimigo, bem como o de decisão, povo, movimento, estado de
exceção, ditadura, são comuns ao nazismo e a Schmitt como pares
siameses. É má fé ou ignorância tentar separá-los para os aplicar em
contextos diferentes do totalitário.
O
jurista faz suas as leis de Nuremberg. Quando aquela teratologia
jurídica foi editada, Schmitt já detinha cargos importantes no Estado
nazista. Göring o nomeou para o Conselho de Estado da Prússia, onde
partilhou o espaço com Himmler e outros dignatários do regime. Em 1933 é
professor titular de direito público em Berlim. No mesmo ano ele
publica Estado, Movimento, Povo. Em 1934 dirige o Deutsche Juristen
Zeitungen, órgão oficial do direito nacional socialista. E publica O
Füher protege o direito, onde justifica Hitler depois da “Noite das
Longas Facas”. Eis o estilo schmittiano: “O Füher executa
verdadeiramente os ensinamentos extraídos da história alemã. Isto lhe dá
o direito e a força para fundar um Estado Novo e uma Ordem Nova. O
Füher protege o direito contra o pior uso abusivo, no instante do
perigo, ele legisla diretamente em virtude de sua qualidade de Füher e
de suprema autoridade judiciária”. (Der Füher schützt das Recht in
Deutsche Juristen Zeitung, XXXIX, n 15, pp. 945-950). É possível usar em
nossos dias os conceitos de Schmitt como se fossem universais? Minha
resposta é negativa.
Afirmar que um nazista inspira formas democráticas é tão desprovido de
significação quanto dizer que Minha Luta gera direitos humanos. Mas
intelectuais europeus e norte-americanos de hoje jogam ao público a
armadilha envenenada. Exemplo nauseante: ao escrever sobre o estado de
exceção, certo comentarista afirma que o conceito “se relaciona com a
preservação do Estado e defesa do governo legitimamente constituído e
das instituições permanentes da sociedade. E argumenta que a ‘exceção é
diferente da anarquia e do caos’(nosso comentarista cita O conceito do
Político, RR). Ela é uma tentativa para restaurar a ordem. Os excessos
bárbaros e o puro poder arbitrário não constituem o objeto de Schmitt”. O
comentário afirma que Schmitt é conservador, mas seu “pensamento se
distingue do fascismo e do nazismo em sua subordinação de todas as
instituições sociais a entidades idealizadas como o Líder do povo.
Porque, segundo Schmitt, a exceção nunca é a regra, como ocorria com o
fascismo e o nazismo” (Cf. P. Hirst, Carl Schmitt’s decisionism in Ch.
Mouffe (ed.) The Challenge of Carl Schmitt, New York, Verso Ed., 1999,
p. 12).