Quinta, 14 de novembro de 2013
Comissão Nacional da Verdade e a prática de “fazer não fazendo”. Entrevista especial com Jair Krischke
“Tenho uma grande preocupação com o resultado final da
Comissão, porque entendo que ela foi criada tardiamente, o que dificulta
muito a investigação”, diz o historiador.
Foto: http://bit.ly/REIlq7 |
“No ambiente político brasileiro há uma prática de ‘fazer não fazendo’. Quer dizer, a Comissão da Verdade foi criada, mas na verdade não gera efeitos, não resulta em nada, o que é muito grave”, declara Jair Krischke, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Há um ano o historiador concedeu um depoimento na Comissão Nacional da Verdade, relatando suas pesquisas acerca do período militar e informando que arquivos secretos da época estão em poder do Comando Militar do Sul e da Polícia Federal,
“a qual foi um braço importante do aparelho repressivo brasileiro”.
Entretanto, lamenta: “A Comissão não teve coragem de bater na porta do
Comando Militar do Sul e recuperar o acervo, que é do povo gaúcho”.
Segundo ele, as Comissões Estaduais da Verdade, a
exemplo da Comissão do Rio Grande do Sul, pouco avançam em suas
investigações, visto que foram criadas a partir de Decretos e “encontram
dificuldades em atuar, porque, quem tem a prerrogativa de intimar
alguém para dar um parecer e está respaldada por lei é a Comissão
Nacional da Verdade, a qual não tem dado aquele exemplo fundamental às
Comissões Estaduais”, assinala.
Na avaliação de Krischke, a Comissão Nacional da Verdade foi “usurpada nas suas atribuições pela ministra Maria do Rosário,
porque todo esse trabalho de investigação é de competência da Comissão
Nacional da Verdade, mas quem tomou a frente da exumação do
ex-presidente Jango foi a ministra, num gesto de
usurpação de atribuição para transformar isso em um show midiático
dentro da sua campanha eleitoral”.
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Jair Krischke (Foto: jcrs.uol.com.br) é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil.
Confira a entrevista.
IHU
On-Line - Entre as críticas às Comissões Estaduais da Verdade,
destacam-se a falta de foco nas atividades e a fraca articulação com
outras comissões. Por que isso acontece e como a atuação dessas
comissões poderia melhorar?
Jair Krischke – A maioria das Comissões Estaduais
foi criada por Decreto, e isso prejudica o trabalho delas porque não há
legitimidade da lei; tecnicamente, este é um limitante grave. Por outro
lado, as dificuldades nascem de outras situações: há no Brasil a
aceitação de uma mentira oficial de que os arquivos da ditadura não
existem mais. Isso acaba transitando em julgado, mesmo quando todas as
evidências demonstram que isso não é verdade.
O estado do Rio Grande do Sul foi o único que, publicamente, disse que queimou os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, mas logo depois alguns documentos ressuscitaram — conseguimos recuperá-los em Montevidéu. Quando vim de Montevidéu com esses documentos, a revista Veja
publicou uma matéria de quatro, cinco páginas, e os principais jornais
do Brasil também publicaram informações sobre o assunto. De lá para cá,
investigando, descobri que esses documentos do DOPS encontram-se microfilmados no Comando Militar do Sul.
Em 1995, o general Lucena, então comandante do Exército, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, disse: “Sou da opinião de que o Exército deve devolver aos estados os arquivos do DOPS”. Se isso não é confissão, não sei mais o que poderia ser.
Quando o governador Tarso Genro assinou o Decreto que criou a Comissão Estadual da Verdade, fui entrevistado pela Rádio Guaíba
sobre a criação da Comissão. Na ocasião, disse que lamentava o fato de
ela ter sido criada por Decreto, deveria ter sido feita por lei, mas
aplaudia a iniciativa do governador do estado, e acreditava que
estávamos diante da oportunidade de a Comissão Estadual bater às portas
do Comando Militar do Sul e recuperar os documentos que
lá se encontram, os quais são um patrimônio do estado do Rio Grande do
Sul pelo seu valor histórico. O jornalista que me entrevistou foi ao Comando Militar do Sul, entrevistou o coronel das relações públicas, que confirmou a existência dos arquivos.
Eu sugeri que ele entrevistasse posteriormente o governador Tarso Genro, que disse que se tratava de uma atribuição federal. No ditado popular, “deu uma curva no jornalista”. É dessa forma que as Comissões Estaduais,
com mais ou menos valor, atuam. Todas elas encontram dificuldades em
atuar, porque, quem tem a prerrogativa de intimar alguém para dar um
parecer e está respaldada por lei, é a Comissão Nacional da Verdade, a qual não tem dado aquele exemplo fundamental às Comissões Estaduais.
IHU On-Line - A criação de Comissões Estaduais por Decreto foi uma estratégia?
Jair Krischke – Provavelmente, sim. No ambiente
político brasileiro, há uma prática de “fazer não fazendo”. Quer dizer, a
Comissão da Verdade foi criada, mas na verdade não gera efeitos, não
resulta em nada, o que é muito grave.
IHU On-Line - Como a comissão do Rio Grande do Sul tem
atuado? O senhor criticou a declaração do Presidente da Comissão
Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, de que a Comissão teria
investigado o caso do coronel da reserva Julio Miguel Molina Dias, em
novembro do ano passado.
Jair Krischke – Se o presidente da Comissão, em declaração ao jornal Folha de São Paulo, elenca como grande feito da Comissão do Rio Grande do Sul o caso dos documentos do Coronel Molina, então estamos mal, porque isto não é mérito da Comissão, não é mérito sequer da polícia gaúcha.
É importante eu relatar como isso aconteceu, para entender o caso. O Coronel Molina
foi assassinado e as filhas dele procuraram o delegado que presidiu o
inquérito, manifestando suas preocupações com a segurança. O delegado
perguntou por quais razões temiam pela segurança, então elas entregaram
os documentos. Qual é o mérito? Elas entregaram os documentos porque
tinham medo. Posteriormente, vieram de Brasília dois membros da Comissão Nacional da Verdade
para arrecadar esses documentos, os quais foram negados pelo delegado,
que estava cumprindo ordens. O pior é que os membros da Comissão
retornaram quietos para Brasília. Quando ficamos sabendo disso,
percebemos o risco de esses documentos desaparecerem. Preocupado com o
caso, telefonei para o jornalista Rubens Valente, do jornal Folha de São Paulo,
e relatei o caso, dizendo que a única forma de evitar o sumiço dos
documentos era o jornal publicar uma matéria dizendo que os documentos
existiam.
O que fez o glorioso estado do Rio Grande do Sul, através do seu governo? Chamou o Dr. Cláudio Fonteles, à época um dos comissionários da Comissão Nacional da Verdade,
para entregar os documentos, e entregaram uma cópia em xérox. Aí está
demonstrado claramente o procedimento de atuação dos estados. Lamento
que a Comissão do Rio Grande do Sul se arrogue o direito de dizer que seu grande feito foi esse. A Comissão não teve coragem de bater à porta do Comando Militar do Sul e recuperar o acervo, que é do povo gaúcho.
No meu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, comecei falando de arquivos e disse que é mentira quando afirmam que os arquivos do Rio Grande do Sul foram queimados. É regra do sistema internacional de inteligência não queimar arquivos. E o Exército cumpriu isso.
IHU On-Line – Por que a Comissão Nacional da Verdade não buscou esses arquivos?
Jair Krischke – O meu depoimento está registrado e
todos sabem que os arquivos existem. Mas ninguém vai buscá-los. Falei
solenemente: “Eu disse, a imprensa publicou, o coronel confirmou, o
governador disse que era atribuição federal e, estando aqui, estou
informando aos senhores”.
Mencionei ainda uma edição do programa Fantástico, da Rede Globo, de dezembro de 2002, a qual mostrou documentos do serviço secreto da aeronáutica queimados na base aérea de Salvador,
na Bahia. A partir daí, o repórter entrevistou o coronel chefe da força
aérea secreta, que disse que isso era muito grave e que seria
investigado. Quem não nasceu anteontem sabe que é impossível alguém
entrar com uma câmera de TV na base aérea. Em outubro de 2010, o então
comandante da força aérea, Brigadeiro Juniti, fez a
entrega de 60 mil documentos do serviço secreto da força aérea ao
arquivo nacional. Quer dizer, primeiro disseram que os documentos haviam
sido queimados e, depois de oito anos, apresentam todos esses
documentos. É, no mínimo, estranho.
Também falei que, infelizmente, não estamos ouvindo falar em buscar os arquivos que estão na Polícia Federal, a qual foi um braço importante do aparelho repressivo brasileiro. Ninguém fala disso. Mas a Polícia Federal tem um extraordinário arquivo. Essa informação constou no meu depoimento de 18 de novembro do ano passado.
Também falei que, infelizmente, não estamos ouvindo falar em buscar os arquivos que estão na Polícia Federal, a qual foi um braço importante do aparelho repressivo brasileiro. Ninguém fala disso. Mas a Polícia Federal tem um extraordinário arquivo. Essa informação constou no meu depoimento de 18 de novembro do ano passado.
IHU On-Line - Considerando seus relatos sobre as informações
acerca dos arquivos existentes, pode-se dizer que há muita exploração
política em torno da Comissão Nacional da Verdade e dos casos de
exumação do corpo do ex-presidente João Goulart e da morte do
ex-presidente Juscelino Kubitschek?
Jair Krischke – Quanto à exumação do corpo de João Goulart — porque nos casos de Juscelino e do Lacerda não se fala em exumação —, digo que a Comissão Nacional da Verdade foi usurpada nas suas atribuições pela ministra Maria do Rosário, porque todo esse trabalho de investigação é de competência da Comissão Nacional da Verdade. Não há dúvida nenhuma. Mas quem tomou a frente da exumação do ex-presidente Jango foi a ministra,
num gesto de usurpação de atribuição para transformar isso em um show
midiático dentro da sua campanha eleitoral. Mas aí não podemos atribuir à
Comissão Nacional da Verdade esse feito. A única coisa que podemos atribuir à Comissão Nacional da Verdade é ter capitulado a sua atribuição.
IHU On-Line – Se o responsável pela Comissão Nacional da Verdade fosse outro, a condução seria diferente?
Jair Krischke – É claro que sim, até porque se trata
de uma atribuição. Digo isso porque até pouco tempo eu participava
desse grupo na Procuradoria Geral do Rio Grande do Sul, a qual também
foi “tratorada”, passada por cima. Há coisas que eu não posso dizer
publicamente, porque aí resultaria em problemas internacionais.
A Justiça Federal de Passo de Los Libres, na Argentina, está em marcha com um processo penal pelo possível assassinato do presidente Jango. Aqui no Brasil o caso é tratado como Civil, até porque, como diz a Maria do Rosário, a Lei de Anistia
anistiou todos os casos e não há mais o que investigar. Ocorre que a
morte ocorreu em território argentino e será investigada pelos
argentinos.
O compromisso do Estado brasileiro com o setor militar não quer saber de coisíssima nenhuma. A própria Maria do Rosário
diz que a anistia liquidou com tudo, ou com qualquer pretensão
punitiva. Mas, na Argentina, a lei permite que o juiz saia de território
argentino e vá aonde for necessário para tomar um depoimento, e isso
será feito.
IHU On-Line- Você se sente frustrado ao avaliar a atuação da
Comissão da Verdade, depois de tantos anos de pesquisa sobre a história
do período militar?
Jair Krischke - Todos os dias é “uma bola nas costas”. Para você ter ideia, no meu depoimento, falei muito da Operação Condor e da documentação que tenho sobre ela. A primeira Operação Condor aconteceu em dezembro de 1970 em Buenos Aires, e fez, entre as vítimas, o Coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, o seu filho, também de nome Jefferson,
e um sobrinho. Mostrei os documentos, disse que o filho dele estava
vivo, morando no Rio de Janeiro, e que eu já havia acertado com ele que
iria tomar seu depoimento no Rio. Disse, inclusive, que alguém da Comissão Nacional da Verdade deveria me acompanhar. Marcamos a entrevista para o dia 16 de janeiro, numa sala da OAB, onde seria possível gravar a conversa. Em cima da hora recebi a notícia de que a Comissão Nacional da Verdade
não se faria representar — tenho esse e-mail guardado. Ou seja, a
Comissão não autorizou a gravação do depoimento, mas gravei e mandei a
gravação para a Comissão Nacional da Verdade.
IHU On-Line- Por que as Comissões de São Paulo e Rio de
Janeiro são as que melhor estão atuando entre as dez comissões
estaduais?
Jair Krischke – A Comissão de São Paulo foi criada no âmbito da Assembleia Legislativa e criada por lei, portanto está funcionando muitíssimo bem, tomando depoimentos e fazendo investigações.
Os membros da Comissão têm feito audiências e, no mínimo duas ou três
vezes na semana, me ligam para comentar sobre aspectos importantes.
Semana retrasada a Comissão tomou o depoimento do filho de um argentino
desaparecido no Galeão, o depoimento da mulher de outro desaparecido no Rio de Janeiro também.
IHU On-Line- Quais são os avanços e limites da Comissão da
Verdade? Ela tem conseguido atingir o objetivo de investigação da
história do período militar?
Jair Krischke – Tenho uma grande preocupação com o
resultado final da Comissão, porque entendo que ela foi criada
tardiamente, o que dificulta muito a investigação. Mas também é a última
oportunidade que o povo brasileiro terá de conhecer sua história
recente. Mas, de qualquer sorte, mesmo que se produza pouco frente ao
que se poderia produzir, será muito importante. Será um avanço sobre
essa escuridão a que fomos submetidos durante todos esses anos.
IHU On-Line- Deseja acrescentar algo?
Jair Krischke – Continuo com a expectativa de que a Comissão bata nas portas do Comando Militar do Sul e recupere o acervo de arquivos.