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Novidade faisandée
Roberto Romano - O Estado de S. Paulo
19 Julho 2014 | 16h 00
Renovação do carcomido une tanto a ‘nova’ candidatura oficial quanto os ‘novos’ oposicionistas
Em sabatina realizada essa semana um candidato à
Presidência da República, que se apresenta como arauto do novo na
política, justificou suas alianças com políticos regionais retrógrados.
Ele afirmou, sem titubear, ser preciso atingir o domínio do poder
central que alimenta os mesmos coronéis para… acabar com os oligarcas! O
enunciado doura a velha pílula distribuída a mancheias em eleições
majoritárias do Brasil. Nada foi dito pelo candidato sobre o preço a ser
pago aos velhos políticos pelo apoio recebido. A fuga, na campanha, de
temas polêmicos em termos éticos, como no caso do aborto, é um
verdadeiro lip service aos vetustos donos de votos. Modo geral, todos os
itens dos debates que exigem firmeza e competência são afastados pelos
candidatos, para não perder nas urnas. Temos aí o nó górdio do
presidencialismo brasileiro. A vagueza dos programas de governo,
requentados e postos ao dispor da Justiça Eleitoral, vem da ausência de
ideologia, doutrina, política consistente, o que gera acertos esdrúxulos
como os defendidos pelo candidato sob a capa do “realismo”. O exemplo
torna evidente a crise de legitimidade que corrói o Estado brasileiro. A
hipertrofia do Executivo federal é paga com trocas de cargos, atraso,
controle dos eleitores, venalidade parlamentar, olhos cegos da Justiça.
Nossa desordem institucional segue a ampla crise do
Estado no âmbito planetário. A máquina de governar, firmada nos séculos
16 e 17 na Europa, mostra claros sinais de exaustão. Tomemos os famosos
monopólios do Estado expostos por Max Weber. Durante séculos os
engenheiros do poder civil tentaram impor aqueles monopólios usando a
mentira (a raison d’État), a dissimulação, o segredo, a força desabrida
contra os direitos da cidadania. Hoje, mesmo para Estados poderosos, é
difícil a imposição legítima da força física (na polícia e na guerra).
Finanças predatórias impedem arrecadar o suficiente para manter
políticas públicas (saúde, educação, lazer, ciência e tecnologia).
Quadrilhas ligadas ao comércio de drogas, tráfico de escravos,
prostituição lavam dinheiro e desafiam sistemas penais. Até o Vaticano
precisou suspender a nada santa lavanderia nele instalada, como muitos
governos laicos. Os monopólios da força física, da norma jurídica e da
captação dos impostos são ineficientes para atender às necessidades de
uma população planetária que migrou para as grandes cidades.
Políticas públicas exigem grandes recursos humanos e
financeiros. Impossível garantir o controle urbano e dos elementos
(solo, água, ar, por exemplo) sem gastos estratosféricos em formação de
pessoas especializadas, laboratórios, máquinas. A ciência e a técnica
precisam mover recursos em escala macrológica para atingir em parte os
objetivos de fornecer água, energia elétrica, comunicação social, saúde
pública, esgotos, vias públicas, empregos. A previdência social resume
todos esses aspectos, pois deve garantir o futuro do idoso em ambiente
urbano, inseguro, ameaçado por epidemias.
Apenas um exemplo: a Darpa (Defense Advanced Research
Projects Agency) dos EUA recebia há tempos cerca de US$ 3 bilhões para
aplicar em pesquisa universitária sobre pontos vitais, como serviços e
investigações médicas. Hoje, seu orçamento cresceu. Mas o incentivo
monetário, naquele país, é bem maior no campo da defesa: em 1990, apenas
em fundos “secretos” (que garantem a espionagem e outros itens da
segurança nacional), o estimado pelos especialistas era de US$ 30
bilhões. Para manter o caixa em situação precária, naquele país ocorre
uma guerra perene entre Executivo e Legislativo, guerra que se amplia ao
plano da saúde pública, educacional, etc. Mesmo com eficaz política de
taxação, a crise de 2008 abalou a economia e a ordem nacional.
Municípios antes prósperos, como Detroit, encontram-se à beira da
falência. Algo similar ocorre na Europa: a França, a Inglaterra e a
Alemanha enfrentam de maneiras diferentes os desafios de manter
políticas públicas estáveis. Outras nações, como a Espanha, a Itália e a
Grécia, sofrem uma tempestade no plano fiscal e cortam direitos sociais
antes garantidos.
Se voltarmos os olhos ao Brasil, percebemos a fenda
aberta diante da sociedade e dos poderes públicos. Quase atingindo a
cifra de 200 milhões de habitantes, não possuímos meios para lhes
garantir as condições básicas de existência moderna. O gasto nacional em
ciência e tecnologia é de 1,74% do Produto Interno Bruto (PIB),
enquanto nos EUA, China e Japão é de 3% a 4%. O sr. Luiz Inácio da Silva
afirmou que, ao final do seu primeiro mandato, a aplicação em ciência e
tecnologia seria de 4% do PIB. A desmesura da promessa mostra que os
problemas mais prementes são tratados com superficialidade pelos
partidos e líderes políticos.
Sem ciência e técnica proporcionais ao tamanho de
nossa população urbana, impossível propor ações que garantam direitos
estáveis à cidadania. Num país em que cerca de 60% das coletividades não
têm água e esgoto dignos do nome, é clara a camuflagem dos problemas
operada pelos programas de governo, não só dos que habitam hoje os
palácios como das oposições.
Daí a retórica oca que fala em “mais novidade” e do
“novo na política” e silencia sobre os meios e recursos a serem movidos
para se estabelecer ou ampliar a infraestrutura necessária à técnica, à
mobilidade urbana, etc. O palavrório da propaganda, em todos os partidos
de grande porte, cala os projetos sérios nas políticas públicas.
No que diz respeito à garrulice sobre o “novo”, Joe
Klein, abalizado analista da propaganda e dos fatos eleitorais nos EUA,
mostra que o truque de alardear a superioridade de uma candidatura
surgiu com o gasto e conservador Richard Nixon em 1968. Como fazer votar
numa pessoa que, diziam seus adversários democratas, não era fiável
sequer para garantir a qualidade de um carro usado? Fácil: os
marqueteiros idealizaram um “new Nixon” ao gosto do mercado. O truque
deu certo, o que levou Daniel Boorstin a escrever (no livro The Image)
que líderes inventados pelo marketing são “uma nova categoria do vazio”.
A mágica de renovar o carcomido, no Brasil de hoje, é usada servilmente
e causou a coincidência entre a “nova” candidatura oficial e as “novas”
candidaturas oposicionistas, que se ocupam em preservar “o que está
bom” sem ousar dizer o quê. Outros exemplos de cópia canhestra do
marketing político norte-americano pela propaganda brasileira podem ser
rastreados no livro de Joe Klein Politics Lost - From RFK to W: How
Politicians Have Become Less Courageous and more Interested in Keeping
Power than in Doing what’s Right for America.
Nossa história escancara o controle férreo das
províncias, depois Estados, pelo poder central. É como se as regiões,
sobretudo as que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco,
Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas algumas), fossem submetidas
ao butim permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a
nossa “federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e
municípios, em todas as políticas públicas. A partir de Brasília, regras
uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional. Do Oiapoque ao
Chuí há uma uniformização gigantesca que obriga os poderes regionais a
se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federativa, perdendo
tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas
em plano local.
Em outras federações, como a norte-americana, vigoram
leis diversas nos setores penais, educacionais, tecnológicos. No Brasil,
a mão de ferro da Presidência controla, dirige, pune e premia os
Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários do
Planalto. Nesse controle, os vetustos oligarcas regionais surgem como
operadores de face dupla: servem para trazer os planos do poder central
aos Estados e para levar ao mesmo poder as aspirações de Estados e
municípios. O lugar onde ocorrem as negociações entre os dois níveis
(central e estadual) normalmente é o Congresso. Ali, Presidência e
ministérios buscam apoio a seus alvos, inclusive e sobretudo na
proposição de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários sem as
“negociações”. Assim, os planos de inclusão social e democratização
societária patinam na enorme lama do “grande Brasil”, enquanto as
unidades federadas aguardam as “providências” de uma burocracia lenta,
incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento
regionais.
No âmbito fiscal, a concentração de poderes deixa
Estados e municípios à míngua. Verbas provenientes de impostos ou a eles
ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades
menores ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nos
ministérios econômicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à
mendicância junto ao poder central. É praticamente impossível
democratizar a sociedade sem a efetiva federalização do Brasil.
Testemunhamos, todos os anos, a caminhada de prefeitos do país inteiro
rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em
leis eleitorais e de estruturas burocráticas. Enquanto tal situação
permanecer, a fábrica de manobras corruptas (nas duas pontas, nos
municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento. Uma
Presidência limitada no tempo tenta pressionar o Legislativo para que
ele emita leis favoráveis às pretensões do Executivo. De modo idêntico,
vêm as pressões sobre o Judiciário para que reconheça a legitimidade das
mesmas leis.
Os compromissos com a república dos coronéis diminuem o
ímpeto do planejamento sóbrio, da chamada às competências técnicas, do
diálogo efetivo com os eleitores. As linhas frouxas dos programas
partidários tocam superficialmente nas reformas (outro mantra que se
repete há pelo menos 50 anos) necessárias. Fala-se em reforma política
sem tocar na atual estrutura dos partidos: oligarquizada, nada receptiva
para com os eleitores da base, pois consultas aos votantes do partidos
deixaram de existir e jamais tivemos eleições primárias entre nós. O
caixa do fundo partidário e os programas televisivos são propriedade dos
dirigentes, ninguém é candidato sem o baciamano e a bênção dos donos de
partido, que permanecem nas direções ad eternum. Tais posseiros da
política mandam nos partidos, mesmo quando presos por sentença do STF.
Falar em reforma sem democratizar as agremiações é puro escárnio. Para
atender os financiadores de campanha, nenhum problema grave da economia,
do urbanismo, dos transportes é tratado nos programas com rigor e
profundidade. Para agradar à massa, nenhum tema controverso é discutido.
A ladainha entoada por todas as candidaturas importantes vem de
Poliana: tudo será róseo, se formos eleitos. Lembram o Fura-Fila, que
ajudou um prefeito complicado a vencer eleições para a Prefeitura de São
Paulo? Agora, o canto das sereias é ainda mais onírico, mais mentiroso,
mais lesivo aos interesses do País.
É preciso apurar as noções de democracia, de união
federal, sociedade livre, etc., se quisermos pensar o Brasil. Aqui, o
modo de unir os Estados tem pouco de “federalismo”. Segundo a jurista
Anna Gamper, “o federalismo combina o princípio da unidade e da
diversidade. As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem
ser admitidas a participar do nível federal”. Mas Brasília controla os
Estados, para que sustentem os interesses de quem ocupa a Presidência.
As oligarquias regionais trazem os planos do Executivo nacional aos
Estados e levam ao mesmo poder as pautas das regiões.
Voltemos às alianças defendidas pelo “novo”candidato à
Presidência (ele não é único a advogar tais acertos com velhos
oligarcas): é no mercado entre candidaturas e coronéis que se evidencia o
atraso do Estado brasileiro. Defender estratégias fundamentadas em
acordos com políticos ultrapassados é propor ao eleitor um oxímoro
conhecido, o de uma “novidade faisandée”, que cheira mal. Assim, os
“programas de governo” exalam populismo sem descer aos problemas
concretos do mundo e da nossa terra. Os candidatos e partidos sabem que a
urna, por enquanto, é apenas a licença concedida para o arbítrio. Os
príncipes absolutistas não precisam prestar contas a ninguém. Pior para a
saúde, a educação, a segurança, os bolsos da cidadania.
*Roberto Romando é filósofo e professor de Ética na Unicamp