Correio Popular de Campinas, 8/11/2005, na coluna de Roberto Romano
Como papel amassado
Roberto Romano
Falemos do pensamento conservador e aproveitemos uma portunidade para comentar o Segundo Congresso dos Magistrados de Pernambuco, dedicado à independência dos juízes. O conservadorismo despreza os indivíduos. Estes últimos só têm valor se imersos em famílias, igrejas, estados. Novalis, poeta inimigo da Revolução Francesa e dos direitos proclama : “Um homem sem Estado é selvagem”. Ou De Bonald: “A sociedade é a verdadeira e mesmo a única natureza do homem”. Sendo o indivíduo uma quimera, só existimos “num corpo indissolúvel, preso aos outros que, por sua vez, estão presos ao solo”. Acrescenta De Bonald: “os indivíduos só vêem os indivíduos como eles… o Estado só vê e só pode ver o homem na família, como ele só vê a família no Estado”. Qual é o programa conservador? Demasiado simples: “conservar as famílias e consumir os indivíduos”. (De Bonald, Théorie du pouvoir politique et religieux).
O povo reúne indivíduos e, para os conservadores, tal soma é perigosa. A massa popular, imaginam os que liquidaram a Revolução Francesa, é criança a ser protegida. O grito romântico foi lançado contra a tese kantiana sobre a maioridade cidadã. Contra o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, Schlegel apresentou um outro : “Comunidade, Liberdade, Igualdade”. A tese conservadora chegou ao Brasil nos lábios de um ditador: “o indivíduo só tem deveres e não direitos. Ele tem deveres para com a natureza humana, para com a sociedade e para com Deus (…) o direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado” (Getúlio Vargas, discurso do primeiro de maio, 1938). Repete-se nos trópicos a lição de Novalis sobre o “Grande Eu, que é um e todos aos mesmo tempo”. O povo criança, no todo estatal, deve ser regido pelos “superiores”. À massa popular é negada a soberania. Os doutores brasileiros que hoje caluniam o povo que, no seu entender, é “tosco” e não sabe votar, herdam a papa fina do pensamento reacionário moderno.
Sem direitos individuais impera o aribítrio dos que dirigem os coletivos. É próprio de sociedades escravas desprezar os indivíduos, em especial os pobres, para dar crédito apenas aos governantes e aos seus prepostos, como a polícia e similares. Nelas, os que ostentam armas em nome do Estado julgam-se acima das leis e dos homens. Os “cidadãos comuns” rebeldes merecem castigo. E sofrem torturas. Conservadora é a sociedade onde ricos devoram a renda nacional e recebem louvores de governantes e das colunas sociais. Políticos das classes ricas, possuem know how de truculência. Os egressos dos setores pobres se acostumaram ao chicote. No poder, usam-no contra os antigos companheiros. O nome dessa prática é traição. Cada velhinho do INSS sofre na carne a covardia dos deslumbrados que se agarram aos palácios e sobem na vida porque esmagam individualidades a quem o STF nega direitos adquiridos. Suma lei, suma injúria.
No debate sobre a independência dos juízes, foi-me indicado o texto de uma sentença que honra a magistratura. Certo jovem, em companhia de outros, tenta pegar mangas em quintal alheio. O menino estava próximo de um prédio velho, usado para serviços de galvanização. A Polícia ouve o tiro produzido pela arma de um segurança que, é regra, se apavorou com um ruído. Não vendo o autor do disparo, os policias prendem o jovem, o torturaram e obrigam-no a entrar em tanque cheio de hidróxido de sódio (soda cáustica), o que lhe provoca deformidade permanente, lesões, dores. Os policiais dão-lhe tapas e pontapés. Surgidas as evidências da tortura, a criança foi conduzida aos médicos. E os policiais dela exigiram que afirmasse ter caído acidentalmente no tonel. Mais tarde, a defesa afirma que a palavra da vítima tem “credibilidade zero” porque tratava-se de um “adolescente e imaturo”. Não disse e nem precisava : era pobre, pertencia ao povo criança. Um torturador, percebendo a qualidade do líquido no qual jogou a criança, constatou que a vítima tinha de fato adoecido. A pele do garoto, afirma o policial, ficou enrugada “como se fosse papel amassado”. (Revistra da EMESPE, julho/dez. 2000, páginas 633 e seguintes).
O juiz, independente e inimigo da fraude e da força bruta que vestem o manto do Estado, representados pelos policiais sem piedade, condena quem merece, fez cumprir a lei. Muito deve ser feito ainda, numa terra tão covarde quanto a nossa. O Brasil foi novamente condenado por tortura pela Comissão de Direitos Humanos da ONU. Aquele organismo se preocupa com “a disseminação do uso excessivo da força pelos oficiais da lei, o uso da tortura para obter confissões, a execução extra-judiciária de suspeitos” em nossa terra. O juiz do caso acima, dr. Nivaldo Mulatinho Filho, digna autoridade que honra a ética e o direito em Pernambuco, tudo faz para que a mancha da tortura suma dos jornais, dos Boletins de Ocorrência e da alma brasileira. Mas quem habita os palácios brasilienses não ouve, não sente, não degusta a tristeza que tomba com a lágrima dos brasileiros órfãos de justiça. Enquanto o governo e o STF não respeitarem os indivíduos e o povo, a Carta Magna, como a pele dos nossos cidadãos pobres, será apenas papel amassado. Os que deveriam declarar a lei e proteger os direitos, tomam a letra pelo espírito e colaboram com o tirano. Eles sim, possuem credibilidade zero.