quarta-feira, 16 de Julho de 2014
Como matar a Ciência em Portugal em três tempos
Com a devida vénia, transcrevo um artigo de opinião de Sofia Roque, bolseira de Investigação Científica, doutoranda em Filosofia, ativista e feminista, publicado no Esquerda.net.
Na verdade, não lhes podemos negar competência, pois aplicam uma espécie
de receita rápida que num só ano consegue condenar a um não-futuro
milhares de investigadores, dezenas de centros de investigação e todo o
sistema do ensino superior que sobrevive em penúria. As políticas de
austeridade significam empobrecimento, as nossas vidas já o sabem, mas
também significam um regresso ao Portugal dos pequeninos, em todos os
sentidos. É este o plano da direita que nos governa: reduzir as funções
do Estado ao mínimo, promover o elitismo e a meritocracia, entregar tudo
nas mãos do capital ou aos interesses do mercado, seja a nossa saúde, a
nossa educação ou o conhecimento científico. O problema é que esta
visão é absolutamente cega e também perigosa, porque fascinada com o
abismo.
Os três tempos da receita letal:
1. Objetivo: promover o estrangulamento financeiro das instituições do Ensino Superior.
Em dois anos, o Governo PSD-CDS reduziu em mais de 380 milhões de euros
as transferências para as instituições de ensino superior. Fruto deste
corte, o investimento público no sector medido em percentagem do Produto
Interno Bruto (PIB) estava, em 2012, abaixo de 0,3%, uma realidade que a
constante diminuição do financiamento nos anos seguintes só veio
agravar. Na verdade, o valor investido nas universidades e politécnicos
está em quebra desde 2010 e o Orçamento de Estado já só é responsável
por cerca de metade das verbas do sector.
A regra atual é a dos cortes e da restrição financeira e o impacto
destas políticas é devastador: desde 2011 houve um corte de 14% no
Orçamento do Estado para a FCT e de 30% para as universidades. No último
OE, a FCT sofreu um corte de 12 milhões de euros, passando o seu
orçamento total para 404 milhões de euros (de 2012 para 2013, a FCT já
tinha perdido 53 milhões de euros). Para completar, o orçamento de 2014
para as universidades contém um erro colossal de 30 milhões de euros que
ainda não foi corrigido. Por causa desta situação, o Conselho de
Reitores já cortou as relações com a tutela inúmeras vezes, demasiadas
para se poder contabilizar o número…
A percentagem do PIB atribuída a despesas em Investigação e
Desenvolvimento, não surpreendentemente, também não tem deixado de
diminuir e apresentou em 2012 um valor equivalente ao de 2008 (dados
PORDATA). Numa entrevista ao Público, em Janeiro passado, Miguel Seabra
não ousou desmentir os números (1,64% do PIB em 2009, 1,5% do PIB em
2012) e esclareceu os propósitos da FCT e do Governo: “queremos é que a
ciência portuguesa esteja cada vez menos dependente do Orçamento do
Estado.”
Consequência: como afirma o reconhecido cientista Carlos Fiolhais,
"reduzir o investimento na ciência é deitar fora a chave do futuro".
2. Objetivo: reduzir drasticamente o apoio à investigação científica e
limitar a autonomia da produção científica, aproveitando para
intensificar a precarização do sector.
Assim, só nos concursos de 2013 reduziram-se em 40% o número das bolsas
individuais de doutoramento e pós-doutoramanto atribuídas. Estes cortes
significam um retorno a valores anteriores a 1994 – pasme-se! No
concurso Investigador FCT 2013,pautado por erros obscuros, injustiças e
critérios pouco transparentes, os contratos atribuídos (pouco mais de
200) cobriram apenas 14% das candidaturas. Já no concurso de bolsas
individuais do mesmo ano, apenas 9% dos 3.433 candidatos a bolsas de
doutoramento tiveram luz verde no concurso, o mesmo acontecendo a apenas
10% dos 2.100 candidatos a bolsas de pós-doutoramento. Assim,
promoveu-se um despedimento coletivo de investigadores e a desagregação
de equipas e projetos de investigação, para além de se negar o apoio à
formação avançada a milhares de investigadores. Como a desproteção
social é a condição maioritária neste sector, esta situação traduz-se em
milhares de pessoas sem apoio no desemprego e em outros tantos milhares
que com a sorte de uma bolsa, ganharam a hipótese de trabalhar sem
vislumbrar direitos laborais. Os concursos de bolsas deste ano ainda nem
abriram e já estamos em Julho e, também por isso, não se vislumbram
bons augúrios.
Consequência: na ciência, a máxima precariedade é a regra. Como indicam
os resultados do Inquérito aos Investigadores promovido pela Associação
de Combate à Precariedade-Precários inflexíveis: hoje, a grande maioria
dos investigadores são eternos bolseiros, dificilmente têm acesso a um
contrato de trabalho e perante a sua condição precária, pretendem
emigrar.
3. Objetivo: promover uma política de terra queimada e liquidar centros de investigação.
Foram divulgados recentemente os resultados da primeira fase do processo
de avaliação dos centros de investigação encetado pela FCT e
encomendado a peso de ouro à European Science Foundation – ESF que não
tarda será a Science Europe, atualmente presidida por quem também
preside a nossa FCT, Miguel Seabra. Este contratou uma avaliação à
distância, surda e muda, com base apenas em papéis e nos números da
bibliocracia. Com a desculpa da avaliação da excelência e da produção
científica dos centros, este processo visa apenas dar um tom de rigor
(qual?) aos brutais cortes de financiamento destas instituições, pois o
que os avaliadores externos determinam é pura e simplesmente quem vai
ser financiado e quem não vai, isto é, quem fica e quem vai à vida.
De um universo de 322 unidades de investigação, a FCT condenou à morte a
curto prazo 154, cerca de metade. Destas, 83 tiveram Bom (num processo
de avaliação enredado em obscuridade, erros e omissões), mas têm a morte
anunciada, pois terão um financiamento ridículo que não permitirá obter
recursos humanos ou equipamentos. As restantes 71 tiveram Razoável ou
Insuficiente - execução imediata. E não escapou ninguém… Sociologia,
Filosofia, Matemática, Física, Engenharia, etc. As outras unidades – 168
- aguardam o seu destino, envoltas num limbo que não as exclui da
possibilidade de ruína (se não conseguirem o financiamento extra,
engrossarão o conjunto das unidades científicas condenadas a breve
prazo). Com este processo, e considerando que as unidades de
investigação são o principal centro de apoio à produção científica, o
número de investigadores já sentenciados à morte é de 5187 num total de
15444. Os 1904 investigadores das 71 unidades liquidadas serão
despedidos gradualmente nos próximos 6 anos.
Consequência: o investimento público canalizado para a investigação
científica nos últimos 20 anos resulta num grande nada, promovendo-se a
emigração forçada da geração mais qualificada de sempre e o fim de
centros de investigação cuja história e produção científica foram
motivos de desenvolvimento do país e da sua projeção internacional.
Divulgo aqui a carta que o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
escreveu à FCT, denunciando a mediocridade e a injustiça deste processo
de avaliação e reclamando o reconhecimento (e financiamento) que lhe é
absolutamente devido.
Estão dados os três passos que este Governo e a FCT destinaram
fatalmente para a ciência portuguesa - o quarto passo já será no ar e em
queda. Ou não, se antes caminharmos juntos numa sobressalto coletivo.