Jornal
da Unicamp – A atual crise política busca atores também entre os que
silenciaram, sobretudo entre os intelectuais de esquerda. E como as
grandes crises parecem ter o poder de alterar a semântica, um seminário
programado antes de sua eclosão, o já emblemático “O silêncio dos
intelectuais”, cujo sentido era mais filosófico que outra coisa, passou a
ter seu sentido atualizado e ganhou um viés político. Os intelectuais
de fato silenciaram diante da crise?
Ferreira Gullar
– Eu não silenciei. Talvez a maior parte da intelectualidade tenha
apoiado Lula. Essa grande parte já era petista ou apoiava o PT. Nas
eleições de 2002, a grande maioria da intelectualidade endossou a
candidatura Lula, até com certo grau de intolerância. Eles consideravam,
por exemplo, que quem não apoiava Lula tinha se bandeado para o
conformismo, para a direita, e outras coisas desse tipo. Eu não votei em
Lula e também estava pouco ligando para esse tipo de crítica.
Intelectuais que adotaram essa posição ficaram com o pincel na mão...Daí
a dificuldade de se manifestar.
Agora,
inclusive, buscaram um caminho para dizer que quem está contente com a
derrota do Lula é a direita. Essa postura incute um grau de má-fé nas
pessoas que se escandalizaram e que agora criticam o PT e Lula por tudo o
que aconteceu. Mesmo não tendo votado em Lula, jamais imaginei que o
seu governo fosse desembocar num escândalo dessa natureza; jamais
imaginei que dentro do PT houvesse corrupção no nível que foi revelado.
Isso é uma surpresa que deixou muita gente estarrecida. Por outro lado,
acho que é uma atitude de grande má-fé dizer que as pessoas que estão
constatando isso estão felizes e são de direita.
Helio Jaguaribe
– Alguns, sim; outros, não. Nesse momento de crise, surge a diferença
entre o intelectual que está comprometido com um conjunto de idéias e de
projetos, e do intelectual que, em função de idéias e de projetos, está
comprometido com o partido. Na medida em que o intelectual sacrifica o
seu compromisso de idéias e de projetos a seu compromisso com o partido,
quando este partido entra em crise – sem poder defendê-lo –, ele fica
silencioso. Nessa mesma medida, isso mostra como é intelectualmente
ilícito o compromisso com o partido que supere o compromisso com idéias e
projetos. O intelectual tem que ser permanentemente um dialogador com o
mundo e com as circunstâncias.
Não
quero personificar, mas a Marilena Chaui assumiu para ela a posição
emblemática do silêncio por compromisso partidário. Eu considero isso
lamentável. Trata-se de uma mulher de grande qualidade, muito
inteligente, não era para fazer isso. Ela devia dizer: “meus senhores,
os ideais que motivaram a criação do PT, que era a idéia de um partido
ao mesmo tempo ético e ao mesmo tempo decidido a grandes reformas
sociais, são permanentes. O fato de que uma certa clique dirigente do PT
tenha naufragado no oportunismo e na concussão, não significa que esses
ideais desapareceram. Vamos refazê-los com o que resta de honesto no PT
e com outros elementos na sociedade”.
Ricardo Antunes
– Essa crise permite descortinar o enorme leque de alternativas
existentes dentro do campo dos chamados intelectuais de esquerda: do
silêncio real, dado pela dúvida autêntica, ao silêncio tático, mais
perigoso. Isso porque, para muitos intelectuais que atuaram ou ainda
atuam no PT, as mutações foram tão intensas que houve um primeiro
momento de paralisia, estupefação, desencanto etc. Mas houve também
aqueles que preferiram silenciar, mesmo quando as evidências se
impuseram.
De
minha parte (como também de vários outros que têm assumido publicamente
uma clara atuação crítica) mesmo tendo sido filiado ao PT por mais de
vinte anos, nunca condicionei minha capacidade de refletir criticamente
frente à política petista e seus descaminhos, quando eles ocorriam. Meus
compromissos, nos embates políticos, procuro mantê-los combinando
coerência e crítica; na universidade, o compromisso é com o conhecimento
e a ciência de talhe crítico e, sobretudo, procurando ter a consciência
de que os interesses fundamentais da sociedade encontram-se no universo
do trabalho, na humanidade que trabalha. É dentro destes marcos que
procuramos pautar nossa reflexão e atuação.
Roberto Romano –
“Não são aplausos que faltam aos intelectuais, mas sim votos aos
partidos que eles apóiam (…) uma coisa é formar o discurso político,
outra é ter poder sobre a vida pública” (Gerard Lebrun, Quem tem medo
dos intelectuais?). Catarina 2ª irritou-se com Diderot que lhe exigia
reformas liberais na Rússia. “Meu amigo, o filósofo pode muito porque
escreve no papel que tudo aceita, sem reclamar. Nós, pobres governantes,
escrevemos em material cheio de cócegas e irritadiço, a pele dos
homens, o que torna o nosso trabalho lento e difícil”. Schumpeter dizia
que os intelectuais como porta-vozes da opinião pública, seja qual for o
seu ofício (advogado, médico, professor etc) podem tratar de qualquer
assunto. Com a suposição perene de serem mais conscientes do que o
governante e o povo reunidos, eles nunca sossegam. Se faz isso, desce ao
nível de propagandista. Paul Benichou publicou dois livros sugestivos
sobre o nosso tema: A Sagração do Escritor e O Tempo dos Profetas.
Entre o sacerdócio da humanidade e os anúncios das graças ou desgraças, o
coletivo dos intelectuais seguiu uma via melancólica no mundo moderno.
É
comum indicar Sartre ou Bertrand Russell, Marcuse ou Mauriac, Malraux e
outros, para descrever o ofício de “grilo falante” dos que defendem “as
grandes causas”. Mas poucos viveram as angústias de Sartre, dividido
entre a apologia da URSS e a busca de uma liberdade rarefeita . Após a
II Guerra Mundial, muitos intelectuais em vez de exercitarem a crítica,
aceitaram viseiras (políticas, religiosas, econômicas) tentando, por sua
vez, colocar as mesmas viseiras no público. Imaginar “bons” escritores
em luta contra “bandidos” (na direita ou esquerda) é lenda que não
deixa entender o “reino animal do espírito” nome dado por Hegel à
“comunidade” dos intelectuais.
No
Brasil de agora os intelectuais que parolavam sobre transparência,
ética, serviço ao povo, acusavam os crimes efetivos ou supostos do
neoliberalismo, emudeceram. No caso do PT, as bases militantes acusam a
direção partidária de todos os males, escondendo de si mesmas o fato de
que os dirigentes não agiriam com desenvoltura se tivessem recebido
críticas cotidianas. Esta seria a função dos intelectuais. Mas devido à
misologia petista, ser intelectual no partido é ser leproso. Bom
intelectual, durante os anos de existência petista, assumia o falar
errado (“menas”, “para mim fazer” etc) o que tornou o analfabetismo uma
virtude. Além dos erros gramaticais, a subserviência teórica: bom
intelectual é o que recolhe as ordens dos superiores e as justifica para
o público. Spinoza dizia ignorar limites para o exercício de seu
pensamento.
Os
intelectuais do PT aceitaram limites. Caso contrário, seriam cobertos
de epítetos gentis (“burguês”, é o mais delicado) e censuras. As mesmas
bases, inimigas da crítica e dos intelectuais, apupam as direções. Os
acadêmicos que dobraram espinhas e línguas, usam truques ardilosos para
escapar da crítica. E fingem não ler notícias. Eles falaram demais
porque, citando Lebrun, “a crítica das instituições e privilégios sempre
terá mais atrativo do que a banal apologia da ordem estabelecida”. Seu
vício e anabolizante encontravam-se na denúncia. Como não podem mais
denunciar, desmascarar, humilhar, destruir os inimigos de seu partido e
devem preservar, blindar, adular a sua grei, eles precisaram de um tempo
para adaptações. Sua má sorte é que, antes de inventarem um vocabulário
novo (a “novilingüa” para recordar Orwell), caíram as máscaras da
virtude que enfeitavam a face luzidia da “companheirada” e apareceu uma
carantonha do poder sem peias. Falar o que, então? “O que não se pode
falar, deve-se calar”… Mas calma: eles não resistem ao palavrório. Breve
estarão nos jornais que fingem abominar e terão acolhida triunfal nas
redações, onde os aguardam muitos “companheiros”.
JU
– Permanecer em silêncio diante das crises sociais significa: a) um
direito legítimo; b) omissão; ou c) um tempo para reflexão?
Ferreira Gullar
– Pode ser as três coisas, mas eu pessoalmente não cobro manifestação
de ninguém. Acho que cada pessoa tem as suas razões. Compreendo,
inclusive, que muitos dos que votaram em Lula tenham se comprometido,
por uma série de fatores, com o partido. Jamais vou cobrá-los por coisas
que não podem fazer. A minha crítica é feita mais de maneira geral,
tentando explicar o que ocorreu com relação aos que silenciaram. Acho
que cada pessoa tem o direito de fazer o que pode e o que considera
melhor. Acho, também, que, para alguns, é um silêncio de reflexão.
O
que aconteceu é bastante grave para a esquerda e para a vida política
brasileira. É uma situação difícil. Sempre duvidei que o PT fosse de
fato um legítimo representante da esquerda. Não que o PT não fosse de
esquerda, mas era uma esquerda com a qual eu não concordava. Para mim,
era uma esquerda que tinha origens muito radicais e era pouco consciente
dos limites da realidade – propondo coisas absurdas, fazendo críticas a
todos os governos, mesmo quando eles estavam certos... Não acho que
isso seja uma característica da esquerda, mas sim uma forma de
demagogia.
Como,
por exemplo, um partido de esquerda pode se opor a que o Brasil assine
um tratado de não-proliferação de armas nucleares? Não tem cabimento,
num país cheio de problemas como o nosso, desviar dinheiro da educação,
da saúde, do saneamento, para fazer arma nuclear. São coisas desse tipo
que jamais pude aceitar. Outras: se opor à criação do Fundef, à Lei de
Responsabilidade Fiscal. Jamais votaria num partido que tem essas
atitudes.
Lula
diz agora que, antes de punir, é preciso avaliar, tem que ter provas,
tem que levar em conta que todo mundo é inocente. É bom lembrar que o PT
foi o contrário disso a vida inteira. O partido colocava no calvário
todos aqueles que se opunham a eles. Espalhava os nomes de deputados
pelo país inteiro quando votavam em alguma coisa que eles consideravam
errado...
Há
um grau de hipocrisia muito grande. Basta ver a propaganda que o PT faz
hoje, cujo slogan é “mudar para continuar a ser o melhor”. Isso é
cinismo. Como pode ser o melhor? Acabou de provar que é corrupto. Na
verdade, vai continuar a ser o pior... Trata-se de uma falsa mudança.
Lutar
por uma sociedade justa é um ideal anterior ao socialismo. O homem
criou a justiça sendo injusto. A necessidade de justiça é fundamento da
sociedade. Eu sou de esquerda, fui do Partido Comunista, mas não foi a
esquerda que inventou a luta pela justiça social. Não é a derrota de um
partido de esquerda que vai acabar com isso. Mesmo com a derrocada do
socialismo, não há porque deixar de lutar por uma sociedade justa.
Eu
acho que nunca haverá a sociedade perfeita, mas isso não significa que
não se possa melhorar a sociedade a cada dia. No mundo contemporâneo, há
países que têm melhores condições e são mais justos do que o nosso. É
só olhar o mundo, nós estamos entre os mais injustos. Não tem que
esquecer isso. Vamos nos concentrar na situação do nosso próprio país e
tentar melhorar as condições de vida do nosso povo, independentemente
dos componentes ideológicos.
Helio Jaguaribe
– Significa, sobretudo, omissão. É claro que todas as pessoas têm
direito a certos silêncios. Ninguém é obrigado permanentemente a falar,
por razões diversas. Mas quando, como no caso a que estamos nos
referindo, o silencio decorre de que o compromisso com o partido é
superior ao compromisso com as idéias e com os projetos, trata-se de uma
omissão que considero intelectualmente inaceitável.
Ricardo Antunes
– Desde que a dúvida seja uma expressão dotada de autenticidade, me
parece legítima. Por vezes o silêncio é necessário, até para avançar na
reflexão crítica. Mas, para um intelectual de esquerda, a omissão, isto
é, o refúgio frente a uma situação desconfortante, onde já há elementos
de compreensão, mas não há a vontade de externar essa percepção, aí o
problema me parece mais complicado. Com relação ao chamado “silêncio dos
intelectuais”, o que causa certa estranheza é constatar que alguns que
sempre falaram, de repente tenham se emudecido.
Se
não queremos aqui condenar os que silenciaram, queremos, entretanto, o
direito de exercitar a crítica. Se assim fizemos durante o governo FHC,
porque deveria ser diferente frente ao servilismo do governo Lula?
Assim
como nunca escondi, como intelectual de esquerda, minha posição nos
embates teóricos e políticos, desde os tempos da ditadura militar, não
seria agora, frente ao transformismo do PT e sua conversão em Partido da
Ordem, que deveríamos silenciar.
Por
fim, tive no passado enorme respeito pelo Lula, mas nunca fui lulista. E
esse nem sempre foi o traço dominante em muitos intelectuais dentro do
PT, que hesitavam em contestar Lula, quando não o bajulavam. Por isso
alguns deles me parecem um pouco acabrunhados hoje. Mas é sempre de bom
alvitre lembrar, especialmente em nosso ofício, o que disse o mestre
Guimarães Rosa: “pão e pães, questão de opiniães....”
Roberto Romano
– Não existe pensamento sem a pausa, sem o silêncio, como também não
existe música. Calar ou falar com sentido requer prudência. Se os abusos
do poder são gritantes, é dever apontar ao público o que se passa nos
gabinetes escondidos, mesmo que isto resulte em processos judiciais,
prisões, exílios, e o resultado seja a solidão. Quando Voltaire
denunciou o caso Calas, não recebeu apoio da sociedade. Ao escrever o
tremendo Eu acuso, Zola não se tornou “popular”. No instante em que
dirigiam o Tribunal sobre os Crimes no Vietnã, Sartre e Bertrand Russell
recolheram, no começo, apenas zombarias.
Os
humanos desejam a felicidade, a paz de alma. Mas a beatitude de quem
silencia injustiças, sobretudo as políticas, é imoral. A vida livre
brota de situações em que domina o medo. A solidão dos que nadam contra
os dogmas, as invectivas da má-fé e do interesse mesquinho, os ganhos
materiais dos que usam seus talentos para bajular os donos do mercado e
da política, todas as exibições da força exercida pela massa, desanimam
os que se candidatam ao papel de intelectual. O mais lancinante é que
muitos desistem e tombam nos braços de uma seita ou partido. E fazem o
que antes criticavam, com acidez cínica.
Existem
duas vias nos dias atuais para os acadêmicos: se sujeitam às
lideranças e servem como justificadores de opiniões, ou se levantam
contra os ventriloquismo que deles se espera. Na Argélia destroçada, as
páginas dos jornais traziam notícias de muitos massacres cometidos. No
jornal Le Figaro, eram salientadas as perversidades dos colonizados,
nunca a dos colonizadores. Quando os primeiros atacavam militares
franceses, o Figaro escrevia : “Hoje o Senhor François Mauriac acordou
feliz. Conseguiu outras mortes francesas”. Tal é o “reconhecimento” ao
intelectual católico que lutou, com Georges Bernanos, contra o racismo
nazista. Tal é o “reconhecimento” ao autor do libelo contra o Estado
francês (Imitation des bourreaux de Jésus-Christ, 1954) onde,
clarividente, ele denuncia o “Estado torturador”.
Os
intelectuais “pastores” (que reforçam os psitacismos e slogans da
organização partidária e fornecem “razões” aos militantes) sempre acham
um jeito de promover o “cerco” aos críticos. Eles se parecem aos
católicos definidos por Merleau-Ponty: todos se dizem “culpados no
presente, inocentes em relação ao pretérito, infalíveis no futuro…”.
JU – Em suma, qual é o papel do intelectual em tempos de crise?
Ferreira Gullar
– Confesso que não participo muito dessas coisas teóricas. Acho que
cada um tem que atuar de acordo com as suas possibilidades. Eu,
pessoalmente, é que sou motivado a participar das coisas. Por outro
lado, conheço outros intelectuais que são pessoas íntegras e que têm
senso de justiça, mas que cujo temperamento não os induz a uma
participação aberta. Acho que cada um tem que ter a consciência de seus
compromissos com a sociedade e agir de acordo com as suas
possibilidades.
Helio Jaguaribe
– É discutir e analisar a crise. É constatar as dimensões em que essa
crise se revela e determinar as causas que conduziram a ela.
Ricardo Antunes
– É refletir livremente sobre seus elementos, tentar compreender suas
origens, captá-las pela raiz. Exercitar o espírito crítico, buscar seus
nexos causais e oferecer alternativas que possam ser assumidas e
implementadas. E não cair na balela de que há uma alternativa para a
totalidade da sociedade. Ao contrário, é buscar as diferenças, as
contradições, os distintos interesses, os diferentes projetos e as
diferentes alternativas. O que é um enorme e imprescindível desafio
neste século atormentado em que vivemos.
Roberto Romano – Creio que a resposta anterior diz o que penso desse aspecto.
JU
– Entre as décadas de 50 e 70, os intelectuais ocuparam um papel
central na cena política brasileira – formularam políticas públicas,
pensaram o Estado e a cultura, e resistiram ao arbítrio. O que mudou de
lá para cá?
Ferreira Gullar
– Acredito que o próprio período histórico – entre 1950 e 1970 – tem
características diversas, que estimularam a participação do intelectual,
dada a grande efervescência social que se verificou no país. Tínhamos a
revolução cubana, a expectativa de transformação, o inconformismo com
relação a uma série de características da sociedade brasileira – o
latifúndio, enfim, toda uma luta que exigiu a participação da
intelectualidade. Em seguida, veio o golpe militar, que também impôs a
necessidade de resistir e de continuar a lutar. Terminada a ditadura, as
coisas mudaram; o próprio término da ditadura indicou uma mudança na
situação do país. Acho que hoje as condições são outras.
Helio Jaguaribe
– Eu creio que mudou o seguinte: no período de que estamos falando,
havia um grupo importante de intelectuais independentes agrupados nessa
instituição que teria um papel tão importante no Brasil, que foi o Iseb.
Depois da crise de 64 e com o exílio de muitos intelectuais, a retomada
da vida intelectual no Brasil se fez, sobretudo, no âmbito das
universidades, implicando num maior profissionalismo, no compromisso com
uma visão setorializada das coisas, de acordo com as várias ciências.
Com isso, ficou reduzida a motivação do intelectual para atuar naquilo
que Gramsci chamava de intelectual orgânico. No momento atual, há poucos
intelectuais orgânicos no Brasil, mas eles ainda existem.
Ricardo Antunes
– Tratava-se de um momento histórico muito diferente. No Brasil, saímos
da ditadura getulista, em 1945, e vivenciamos uma retomada
significativa do pensamento de esquerda. Até 64, foi intenso o debate
intelectual e político, de que foram exemplos, o Iseb no Rio de Janeiro,
o papel cultural e político exercido pelo PCB, o nascimento da
sociologia crítica, havia uma fibrilação intelectual e política intensa,
o embate entre as forças nacionalistas, os setores favoráveis à
internacionalização da nossa economia, a gestação de uma alternativa
socialista. Tudo isso foi travado pelo golpe militar e sua feroz
repressão em 1964. Mas, posteriormente, essas lutas foram retomadas,
como as greves operárias, as ações estudantis, as práticas culturais dos
anos 66/69, e posteriormente, nos anos 70, com a retomada do movimento
operário, do sindicalismo etc.
Talvez
o aspecto mais nefasto daquilo que chamamos de neoliberalismo, esse
culto ativo de um individualismo possessivo que se quer introjetar cada
vez mais na subjetividade dos despossuídos, a monumental onda
conservadora em amplitude global, depois das derrotas de 68, tudo isso
nos levou a uma outra contextualidade histórica, de corte acentuadamente
conservador. É essa “jaula de ferro” que temos hoje que romper. Do
Fórum Social Mundial às lutas no mundo contemporâneo, esse novo Século
continua a nos desafiar, analítica e politicamente.
Roberto Romano
– Mudam o Estado e a publicidade. A privatização afasta aplicações dos
impostos em saúde, educação, segurança, ciência e tecnologia. Muitos
intelectuais (nem todos nem a maioria) lutaram contra o arbítrio
ditatorial, mas a vitória, no regime democrático, no plano econômico (em
doutrina e prática) foi obtida pelos….intelectuais que pensam com a
lógica recusada nos anos 50 e 60 e 70 do século XX. Delfim Netto é lido e
festejado pelos dirigentes petistas. Os livros de Florestan Fernandes
(e de outros) não entram nos palácios e são cultuados no MST.
JU
– Em entrevista ao Jornal da Unicamp em 2004, Celso Furtado argumentou
que o intelectual de hoje não acredita mais no Estado, cujo papel teria
sido esvaziado pela conjuntural global. O senhor concorda?
Ferreira Gullar
– Concordo, mas além das transformações na economia internacional – que
de algum modo provocaram esse desprestígio do Estado como centro da
economia –, houve também a derrocada do sistema socialista, que exerceu
influência sobre o comportamento da intelectualidade. De algum modo,
desabou o ideal de uma sociedade socialista. Não é que você considere
que o cidadão deva se conformar com a desigualdade e a injustiça, mas a
luta por uma sociedade mais justa mudou de qualidade.
Helio Jaguaribe
– Discordo, completamente. Existe uma mistificação neoliberal que
consiste precisamente em dizer que o Estado desapareceu, que o mercado é
onipotente, que as forças são incontroláveis e que simplesmente as
pessoas têm que seguir a grande maré da história. Esta versão é
ideológica. Favorece precisamente aqueles que estão interessados na
supremacia do mercado e, portanto, na internacionalização e, em última
análise, na americanização dos mercados de países como o Brasil.
Ao
contrário dessa posição, o próprio Celso Furtado, independentemente
dessa frase, a meu ver infeliz, sempre sustentou a possibilidade de se
orientar a história, de se ter projeto próprio. Essa frase não é típica
do Celso Furtado. Toda a obra do Celso é precisamente orientada para
reconstruir o Estado brasileiro, dotá-lo de autonomia, e, por meio do
Estado, embora não apenas por intermédio dele, conter os processos de
desnacionalização de nossa cultura.
Ricardo Antunes
– O intelectual em geral é uma abstração. O intelectual de feição
neoliberal, por exemplo, quer o completo definhamento do Estado, naquilo
que concerne aos direitos coletivos e sociais, à educação pública, à
saúde e previdência social etc, para preservar o estado enquanto gestor
do capital em amplitude global. Mas aqui também as gradações e
diferenciações são amplas. Dentre os intelectuais de esquerda, há um
forte debate, que vai desde as correntes fortemente estatistas, que
praticam um certo fetichismo do Estado, até aqueles que, reconhecendo o
papel e o significado do Estado na sociedade de classes (por mais
opacidade que ela possa assumir), reconhecem os limites do Estado e a
necessidade de sua superação. Em plena era da mundialização do capital,
por exemplo, se por um lado o Estado nacional se enfraqueceu frente às
corporações transnacionais, especialmente nos países que estão fora dos
centros da mundialização, por outro lado, quem hoje seriamente contesta a
força destrutiva do Estado imperial norte-americano?
Se
a mundialização do capital é multiforme quando ao
fortalecimento/enfraquecimento do Estado hoje, nas esquerdas o debate
deve voltar com força, neste século XXI, ao menos quando se olha menos
para o presente e mais para o futuro: na busca de uma sociedade marcada
por valores humano-societais, devemos cultuar o estado ou romper com o
culto fetichista que permeou amplas parcelas da esquerda?
Roberto Romano
– Apesar do respeito que sentimos por Celso Furtado, receio que o
enunciado “conjuntura global” seja o equivalente de “corporações”.
Existem juristas internacionais que se dedicam a prever o que acontecerá
com os indivíduos e grupos se o Estado soberano desaparecer. Quem
garantirá os direitos humanos? Quem impedirá que se imponha a escravidão
e que pessoas sejam apenas suporte para experimentos? Quem permitirá
aposentadorias, saúde, etc? Antes do Estado, a Igreja remediava as
situações coletivas mais graves, na Idade Média, com o trabalho de seus
padres, médicos, monges, intelectuais. E depois? Hoje, muitas
corporações possuem mais poder e força do que vários Estados. Elas
tornam-se o núcleo da força sem disfarces. E tal força compra, o termo é
bem este, os intelectuais que a elas se sujeitam. Como aliás, os
intelectuais nazistas também mereceram a denominação. Este é um ponto
que só pode ser encaminhado com o máximo realismo.
É
bom saber, entretanto, que nenhum intelectual nasce do nada. Eles são
formados num contexto ético. Quem deseja saber o que ocorrerá com os
intelectuais e com o Estado, ou com as corporações, analise a maneira
pela qual formamos os nossos alunos.
JU
– Até que ponto a independência é condição sine qua non para o
desempenho da atividade intelectual? Ou seja, ainda há espaço para o
“intelectual orgânico”?
Ferreira Gullar
– Muitas vezes, o sujeito tem uma consciência de determinadas atitudes
que poderia tomar, mas não consegue executá-la pelas condições em que
vive, pelas limitações de sua própria sobrevivência. São dados que não
se pode ignorar. O ideal é você ter autonomia para poder opinar
livremente. Isso nem todo mundo tem, mas eu não acredito também que as
pessoas queiram não ser independentes. Acho que, quando as pessoas não
têm independência, é porque não conseguiram ter. Com isso, não estou
salvando a cara dos que são submissos, corruptos e convenientes. Estou
falando das pessoas íntegras, que muitas vezes não podem se manifestar
por não terem condições para fazê-lo.
Helio Jaguaribe
– Eu creio que sim. A independência é uma condição pessoal. É preciso
ser realista. Uma sociologia do intelectual revelará que, em
determinadas condições históricas, é sempre possível uma inserção
intelectual que seja satisfatória para o atendimento das necessidades
mínimas de cada qual, e que seja totalmente independente.
Ricardo Antunes
– A independência, em todas as suas dimensões, livre dos condicionantes
do mercado, das imposições e injunções políticas, dos constrangimentos
religiosos, é indispensável para que a atividade intelectual possa ser
livre, crítica e profícua. E é por isso que o mundo destrutivo do
mercado, hoje, sonha e age para liquidar com a universidade pública. Se
os partidos freqüentemente oscilam entre a dogmática, por um lado, e o
agenciamento do poder, por outro; se a empresa é por excelência o que
Richard Sennet caracterizou como sendo o lócus gerador da “corrosão do
caráter”, não me parece que possa haver espírito crítico e radical fora
da independência, liberdade e autonomia, três fundamentos da atividade
intelectual.
Roberto Romano
– Os “intelectuais orgânicos” no Brasil e no mundo mostraram para que
servem: apenas e tão somente para universalizar palavras de ordem e
justificar o poder. Eles são uma edição renova de Glauco e de Trasímaco.
Mesmo que em determinadas situações, em proveito próprio, se calem.
JU
– Até que ponto a especialização acadêmica e a idéia de produtividade
impedem que o intelectual tenha uma visão sistêmica do que acontece ao
seu redor? Isto procede?
Ferreira Gullar –
Acho que isso vem, em parte, de alguns problemas da própria cultura
universitária, mas vem também das condições do país da época. Não se
pode comparar hoje com os anos 60 e 70. São épocas muito diferentes, com
condicionamentos diferentes. Basta fazer uma panorâmica das publicações
e das instituições que existiam na época. Havia a expectativa da
possibilidade de mudar a sociedade. Quando essas possibilidades parecem
reduzidas, as coisas mudam. Se desaparece a bandeira do socialismo, que
foi importante durante mais de um século, incendiando a imaginação das
pessoas generosas, é evidente que isso tem uma conseqüência sobre o
comportamento das pessoas.
Quando
terminou a ditadura, surgiu aquela coisa do patrulhamento – as pessoas
queriam, a qualquer preço, que os compositores continuassem a fazer
música política. Mas o problema é que o quadro tinha mudado, as pessoas
queriam fazer também música lírica, canções de amor. Os sectários,
entretanto, queriam que os caras continuassem a fazer música política.
Quer dizer, há uma incompreensão. As pessoas têm que ter o direito de
agir como elas querem e podem agir. O julgamento é correto, mas não acho
certo é se estabelecer padrões que devem ser obedecidos. A vida é
complexa demais. Existem fatores muito variados que podem determinar ou
não o comportamento das pessoas. Não há dúvida de que hoje a época é
muito diferente dos anos 60 e 70, e que não há o mesmo tipo de estímulo
para a participação.
Helio Jaguaribe
– Procede, em parte. Procede na medida em que a profissionalização
acadêmica gera essa coisa extremamente importante que é o intelectual
especializado em determinadas disciplinas – em suma, um intelectual que
se torna um trabalhador operacional como qualquer cientista. Por outro
lado, isso não impede que intelectuais, sobretudo aqueles de formação
humanística, mantenham uma posição de abertura crítica em relação à
sociedade e ao mundo.
Ricardo Antunes
– A questão aqui é difícil. A especialização pode ser muito positiva,
quando ela permite, como no caso de áreas dentro das ciências médicas e
também nas ciências exatas, um avanço real no processo de conhecimento.
Mas
cuidado para não se borrar as claras diferenças e especificidades
existentes entre as ciências duras e as humanidades. Nas ciências
humanas, por exemplo, sua excessiva especialização pode converter-se
numa espécie de taylorização da atividade científica, com resultados
muitas vezes negativos. Mas, pode-se também avançar, num estudo
especifico e concreto, e a partir dele, fazer ilações de maior
abrangência e amplitude.
Mas
quanto à “produtividade”, termo por demais comprometido, penso que
devemos mostrar que, dominantemente, ela é uma forma nefasta de
intromissão do mercado e seus (des)valores para a universidade, com o
objetivo central de tecnologização da ciência, pautando-a pelos
critérios e elementos presentes na razão instrumental.
Roberto Romano
– Tenho dúvidas também sobre tal ponto. Porque é necessária uma “visão
sistêmica” ? Isto não seria o resquício do platonismo e da metafísica,
da ambição filosófica de falar de tudo a partir de um Todo postulado,
mas inatingível? Os fragmentos do saber, conseguido a duras penas pela
física, biologia, química e demais trabalhos do espírito, não seriam
mais úteis do que os delírios dos sistemas, os quais, como bem diz
Francis Bacon, são ordenados com lógica perfeita e bela, como as teias
das aranhas? Basta um vento forte e todo o sistema cai por terra como
castelo de cartas de baralho. O discurso do “holismo” é prestigioso, mas
prestígio e verdade raramente se abraçam.