No cinema humanista dos
irmãos Paolo e Vittorio Tavianni, toda a majestade do romance “Ressurreição”,
editado em 1899: a obra-prima esquecida de Leon Tolstói.
- Nivaldo Mulatinho Filho -
Epígrafes:
“Só resta supor que a reputação de romance de tese e de cunho
evangélico foi útil do curso das polêmicas ideológicas do século XX, a fim de desviar a potência crítica que o livro contém. Lido hoje, à luz do
que presenciamos em nosso tempo, mais de cem anos após ter sido publicado,
‘Ressurreição’ parece erguer a voz com bastante pertinência, reforçada pelas
formas e conteúdos novos que a história, em vez de lhe tirar, lhe acrescentou”.
(RUBENS FIGUEIREDO, na apresentação do livro que ele traduziu,
direto do russo, para a edição brasileira de 2010)
“Ler ‘Ressureição’, um dos maiores romances de todos os tempos, é
uma comovente oportunidade para compreender os nossos dias”
(PAULO SÉRGIO PINHEIRO, na contracapa da mesma tradução brasileira
do romance – 2010. Ele é doutor em Ciências Políticas da Universidade de Paris,
membro de várias organizações internacionais de direitos humanos e autor de um
livro fundamental chamado “Estratégias da Ilusão – A Revolução Mundial e o
Brasil – 1922-1935”, lançado em 1991)
“Quando Celso de Mello lia seu voto no Supremo Tribunal Federal
(STF), eu visitava a trabalho um presídio na Paraíba. Como todos os outros que
visitei no Brasil, havia superlotação e dezenas de pessoas presas por lentidão
da justiça ou falta de advogados. Diante dos meus olhos, é evidente que a
Justiça tarda a prender os poderosos e a
soltar os desprotegidos”
(FERNANDO GABEIRA, na sua coluna do Estado de São Paulo, em
27.09.2013).
Uma borboleta entra no pátio da ala
feminina de um presídio de Moscou, anunciando a primavera, trazendo alegrias e
transtornos para as prisioneiras. Somente Katiucha Máslova, a prostituta
acusada de roubar e matar um homem, fica inerte, com o olhar perdido. Ela vai
ser julgada naquele dia. É a primeira cena da Minissérie ítalo-francesa
“Ressurreição” (2001), escrita e dirigida pelos irmãos Paolo e Vittorio
Taviani, uma adaptação fiel, quase literal do romance russo do século XIX,
agora lançada, na íntegra, em DVD, para o público brasileiro. O rosto da atriz
italiana STEFANIA ROCCA, que vive Máslova, não é aquele que a minha fantasia desenhou,
ao ler o livro, mas a interpretação dela é impactante. Tem febre e fibra. É a
personagem que se faz carne e consciência.
Uma das passagens mais densas do livro, e
também da Minissérie, é a de um dos encontros da prisioneira Máslova, então já
condenada, por evidente erro judiciário, a trabalhos forçados, em regime de
exílio, na Sibéria, com o príncipe Dmitri Ivánovitch Nekhlioudov (vivido por
TIMOTHY PEACH). Ele foi um dos jurados da sessão condenatória e, angustiado,
reconheceu, na bela e fragilizada ré, a camponesa ingênua e romântica, que
conhecera dez anos antes, seduzindo-a na casa das tias dele, de onde ela,
grávida, é expulsa e largada à própria sorte, prostituindo-se para sobreviver.
Considerando-se em grande culpa, até mesmo como jurado, pois o Conselho de
Sentença respondeu equivocadamente aos quesitos apresentados, Nekhlioudov
resolveu assumir os seus erros. Tudo em ações concretas, que, para ele, seriam
a redenção. Uma delas, casar-se com a jovem por quem ele, estudante ainda, com
puras convicções socialistas, encantou-se, e, de alguma forma, sem mentir,
amou. Ele, agora, quer ir para onde a levarem. – “Não vou mais deixar você!”, afirma naquele encontro, ainda no
presídio. A resposta veio imediata.
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Acalme-se!, diz o
príncipe, ao sentir a reação de Máslova, que, num misto de pavor e raiva, zomba
das promessas dele, a melhor pessoa que ela tinha conhecido (e talvez amado). E
também o homem que a fez “parar de
acreditar no bem”. – “Não vou me
acalmar nada!”. Ela o manda embora, de volta “para as suas princesas”. Mas Dmitri Nekhlioudov já tinha rompido
com a noiva rica, confessando-lhe inéditas pretensões de vida, uma vida que
estaria ligada ao novo destino de suas propriedades rurais e aos caminhos de
Katiucha Máslova. Ele iria viajar para Petersburgo, local do julgamento do
recurso apresentado em favor da jovem sentenciada, a cidade onde ele iria
procurar os Ministros da Corte Superior, com o aval da aristocracia moscovita.
Até que ponto o “acalme-se”, dito pela pessoa amada, pode nos resgatar, pode nos
trazer para a realidade, mesmo que a questão seja “só de dor”, como nos versos do poeta? Até onde aceitamos a verdade
crua de que o encantamento ou o amor de quem nos fala pode ser diverso, bem
diverso, do que já foi? Serão muitas as formas de amar?
Dmitri Nekhlioudov terá sucesso na sua luta
contra o erro judiciário que colocou Máslova, vítima dos hipócritas códigos
sociais vigentes, nas malhas de um assombroso sistema prisional?
Em “Ressurreição”, a arte de Tolstói adota
um tema clássico – a queda e possível salvação de uma mulher do campo por um
nobre – para denunciar, como jamais o fizera, nos seus outros grandes romances,
“Guerra e Paz” e “Anna Kariênina", as instituições do Estado autocrático
russo. Ele forma um ataque devastador ao governo, ao exército, aos tribunais,
às prisões. Sublinha a injustiça do
sistema para com os réus pobres. A violência e a crueldade que são toleradas e
estimuladas. E o que se nota, em especial, é que as práticas truculentas dos
funcionários subalternos dos presídios, descritas na narrativa tolstoiana,
editada, pela primeira vez, em 1899, ainda hoje, sobrevivem, mundo afora.
Inexiste qualquer dúvida sobre a
genialidade de Leon Tolstói e não existirá nenhuma enquanto os homens e as
mulheres forem capazes de ler e reler ficção, de ter o que OSMAN LINS chamava
de “paixão
pelo romanesco”. Mas GEORGE STEINER, no seu famoso ensaio sobre Tolstói
e Dostoiévski, de 1958, ressalta que, no autor de “A Morte de Ivan Ilitch”, ao escrever “Ressurreição”, o professor e o profeta “violentaram o artista”. Ainda assim, considera que o romance
marca, com sua forte crítica social, a concepção definitiva dos temas que o
ficcionista russo já havia anunciado em suas primeiras histórias. O
protagonista de “Ressurreição”,
Dmitri Nekhlioudov, tem muito do próprio Tolstói, que havia renunciado aos
direitos autorais dos seus livros, publicados após 1881, data em que ele
revelou uma singular transformação de consciência. Mas, em 1898, resolveu ir
contra seus próprios princípios e negociar os direitos de uma obra sua pelo
valor mais alto que conseguisse, a fim de ajudar os dukhabors (“os lutadores do espírito”), um movimento cristão cujas
ideias o escritor admirava. O livro foi justamente “Ressurreição”, que Tolstói concluiu em 1899, aos 71 anos de idade,
e encaminhou todos os recursos da edição ao fundo de defesa do grupo religioso.
Especializados em levar para o cinema
grandes clássicos da Literatura, os irmãos Taviani realizaram uma adaptação que
a crítica considerou suntuosa do romance “Ressurreição”.
Eles já tinham feito adaptações de Luigi Pirandello (“Kaos”), Goethe (“As
Afinidades Eletivas”) e do próprio Tolstói (“Noites com Sol” e “Um Grito de
Revolta”). No ano de 2012, a dupla italiana ganhou o “Urso de Ouro”, do
Festival de Berlim, com o filme “César
deve Morrer”, lançado no Brasil, em DVD, no ano de 2013, um trabalho
radicalmente experimental que registra a encenação de “Júlio César”, uma
tragédia de Shakespeare, pelos sentenciados de uma penitenciária italiana de
segurança máxima. Para o presídio, aquela foi uma atividade terapêutica e de
reeducação, voltada para os internos, condenados por crime graves. Para os
cineastas, foi uma oportunidade de testar os limites entre a ficção e o
documentário, entre a encenação e a realidade. Entre a liberdade que a peça
teatral ofereceu aos condenados, nas suas interpretações, e as muralhas do
presídio exemplar. Calculem.
“Ressurreição”, por sua vez, é um espetáculo marcado por
uma rigorosa narrativa clássica, medindo cada plano do romance de Tolstói, além
de ter a música envolvente de Nicola Piovani. Reproduz um drama das
consciências culpadas, mas também da redenção e da iluminação espiritual. É um
cinema humanista, provando a comovente compaixão que os irmãos Taviani têm
pelos oprimidos, desde o filme, de 1977, “Pai
Patrão”, baseado em romance homônimo, autobiográfico, de Gavino Ledda.
Era contemporâneo de Leon Tolstói
(1828-1910) um pensador rebelde, Tobias Barreto (1839-1889), líder cultural e
professor, operador do Direito, homem de vida atormentada, que morreu, como se
sabe, em extrema pobreza. Ele escreveu sobre um Brasil patriarcal e
escravocrata – e ele gostava muito de escrever, mesmo que fosse para alimentar
graves discussões. Leiam o texto que se segue: “É preciso que nos convençamos dessa verdade: a balança da justiça
virou balança de joalheiro, mais própria de pesar ouro do que direito” (no
artigo “O Atraso da Filosofia Entre Nós”,
Jornal do Recife, 30 de julho de 1872).
Pode-se imaginar o que Tobias Barreto
escreveria hoje, especificadamente sobre o nosso sistema penitenciário, quando
o próprio Ministro da Justiça, em público, em 2013, reconheceu o horror das
prisões brasileiras, ou seja, a desídia da gestão pública.
Estamos nos identificando, todos nós,
operadores do Direito, com os dramas de consciência do protagonista de “Ressurreição” e devemos buscar as
medidas concretas que evitem deslocar os erros contemporâneos para as gerações
futuras.
Dedico o presente artigo aos
jovens advogados criminalistas, Ivan Oliveira de Medeiros Correia, meu filho, e
Maurício Bezerra Alves Filho, meu amigo.