Um milagre, papa Francisco!
Roberto Romano
Novalis, poeta e teórico político
conservador do século 19, afirma que a Igreja foi o modelo de todas as
sociedades. Segundo ele, as pessoas comuns encontravam na vida católica
"proteção, respeito, escuta". De fato, em milênios ela inspirou povos e
governantes, nem sempre de modo esplêndido (a Inquisição, no setor
judiciário). Não existe poder moderno sem que os hierarcas tenham
indicado as vias e as técnicas de comando. Max Weber adianta que os
processos burocráticos de governo nasceram na Cúria, com a centralização
do mando pelo papa. Carl Schmitt, discípulo conservador de Weber,
mostra que a catolicidade instaura a hegemonia do mando executivo,
portador da suprema decisão (plenitudo potestatis papae) acima dos
bispos. A máquina jurídica e religiosa, construída racionalmente, venceu
as doutrinas conciliaristas que davam aos pastores reunidos peso maior
do que ao romano pontífice.
A tenaz oposição ao absolutismo papal, sobretudo após Lutero,
inspirou as lutas contra o mando irrestrito dos reis e gerou as teses
sobre a monarquia limitada. Exemplo dessa campanha temos na Franco
Gália, tratado calvinista de François Hotman (1574). O parlamentarismo
sempre foi avesso ao Executivo, combatendo-o na figura católica ou na
tese laica do direito divino dos reis. O cardeal Caetano (Auctoritas
Papae et Concilii sive Ecclesiae Comparata, 1511) exemplificara a
dificuldade de conduzir os cristãos ao acordo entre papa (iudex
ordinarium omnes, juiz comum de todos) e bispos. Um defensor da Igreja
contra o Estado civil, o cardeal Bellarmino (ele causou longas
digressões de Hobbes no Leviatã) pondera que "a monarquia temperada é
melhor do que a pura" (De Summo Pontifice). O poder petrino sobre as
igrejas é reforçado em 1870, no dogma da infalibilidade. Weber nele
enxerga a base da organização curial, cujos diplomatas modelaram o
acordo entre a Santa Sé e Mussolini, mais a desastrosa Concordata de
Império com Hitler.
O absolutismo do papa sofre quebras no Vaticano II, mas é
refeito pela mente cálida de João Paulo II e mostra sua fragilidade sob
Bento XVI, o que possibilita a eleição de Bergoglio.
Marco Politi, respeitado na academia e na imprensa, acaba de
publicar um estudo sobre os desafios do novo líder (Francesco tra i Lupi
- Il Segreto di una Rivoluzione). Ele expõe o pontificado de Bento XVI e
narra a conduta de Bergoglio à frente da Igreja argentina. No argentino
ressalta o trabalho do bispo com seus padres e leigos. Após sumarizar
os eventos que abalaram o trono pontifício, Politi descreve com saber
maquiavélico o que chama de "golpe de Estado" cometido por Ratzinger.
Maquiavélico: poucos cientistas políticos perceberam, com semelhante
acume, os atos de um papa contra a Cúria tingida pela corrupção, sede de
poder, baixa cortesania. Ao perder o controle, Bento XVI, no sigilo e
com frio cálculo do tempo (O Príncipe teoriza esses elementos de modo
ímpar), aplica o golpe perfeito. Se o Vaticano está dividido entre
potentados da púrpura, terminemos as escaramuças entre eles e o trono.
Com a renúncia, todos devem entregar os cargos, o que permite ao novo
líder administrar a guerra intestina.
Após a descrição do golpe papal, digna de Gabriel Naudé, Marco
Politi analisa a rede das Igrejas nacionais e seus líderes no conclave.
Ele expõe o desejo dos hierarcas de atenuar o centralismo católico.
Capítulo importante é o quinto, O fim da Igreja imperial. A escolha de
Francisco significa a retomada do colégio eclesiástico, porque não é
mais possível admitir que os "bispos sejam meros prefeitos, subordinados
a um pontífice monarca". Politi mostra o projeto, assumido por
Bergoglio, de refazer o programa conciliar, estabelecendo comissões de
consulta às Igrejas locais na busca de apurar temas da fé, da
disciplina, costumes. Questionários foram distribuídos pelo mundo
católico para ouvir os fiéis e sua hierarquia. O autor exagera a
novidade de tais procedimentos.
Em texto publicado na Revista de Economia Mackenzie (Reflexões
sobre Impostos e Raison d'État, 2003), exponho o caso dos questionários
presentes no Livro do Estado de Almas, feito sob a égide de Carlos
Borromeu (1538-1584). Neles a Igreja tem um guia para saber a condição
econômica, higiênica, social e religiosa dos católicos. As fichas são
bem elaboradas e, diz um especialista de hoje, "só falta o computador"
para sintetizar rapidamente os resultados. Depois, a técnica dos
questionários serve aos soberanos civis como instrumento de sondagem
para fins de impostos, controle e segurança, etc.
Mesmo com a crise do Dictatus Papae, mudar o sentido do mando é
difícil. Como observa Politi, "a ideia de uma hierarquia onipotente, que
nunca erra, está profundamente enraizada na autocompreensão da Igreja
Católica. Pio XII, no exercício do seu poder, gostava de enunciar: 'Não
quero colaboradores, quero executores'". É a dura realidade que analiso
em minha tese de doutoramento, Brasil, Igreja contra Estado (1979),
odiada pela direita e pela esquerda eclesiásticas. Ainda em 2014 haverá
um Sínodo com agenda precisa e, nele, emissários das conferências
episcopais, "vindos de vários continentes, poderão exprimir-se com
clareza sobre pontos específicos".
Francisco deve responder, com atos e doutrina, ao repto do
conservador De Maistre: "Se não há centro nem governo comum, não pode
existir unidade nem, por conseguinte, Igreja universal (ou católica),
pois nenhuma igreja particular tem o meio constitucional de saber se ela
está em comunhão de fé com as outras"(Du Pape). O pastoreio deve manter
a universalidade da Igreja, protegendo as nações e os indivíduos. A
Igreja é modelo de toda sociedade.
Caso Francisco seja bem-sucedido, talvez Brasília, demoníaca
cúria sem Deus nem lei, bastião do absolutismo centralizador, escute os
povos que habitam suas terras. Então, poderemos falar em democracia e
federalismo. Por tal milagre, Francisco mereceria a glória dos
altares...
*Roberto Romano é professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).