sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ciência P, via De Rerum Natura

Opinião

FCT: a má avaliação dá mau nome à avaliação

É difícil de compreender que a comunidade científica como um todo não seja mais vigorosa na sua contestação, exigindo mais assertivamente da FCT a correcção pública dos erros cometidos e uma prática com o rigor e a transparência a que temos direito.
A propósito da avaliação das unidades de investigação portuguesas, levada a cabo pela European Science Foundation sob contrato da FCT, tenho recebido uma grande maioria de mensagens e comentários extremamente críticos dessa avaliação, onde abundam exemplos particulares de erros dos avaliadores ou incoerências na avaliação (infelizmente muitas vezes de remetente anónimo, o que diz algo sobre o ambiente de escassa liberdade e de medo que grassa na academia portuguesa).
A par dessas recebi também alguns comentários que consideram que muita da investigação feita em Portugal é de baixa qualidade (penso que nem todos serão oriundos de falsos perfis criados por empresas de comunicação amigas do governo), que chegou o momento de separar o trigo do joio e que esta avaliação é um passo nesse sentido.

Alguns comentários:

1. Não tenho, pessoalmente, a mínima dúvida de que uma parte da investigação que se faz em Portugal é de escassa qualidade e que uma parte dos investigadores portugueses são fracos ou pior. Mas não sei dizer quantos e muito menos quais. A minha sensação pessoal, é que a maioria tem uma qualidade aceitável (quero dizer boa), mesmo em termos internacionais, mas trata-se apenas de uma sensação. E é provável que eu tenha ouvido falar sempre dos melhores. Só que, para além da minha sensação, há muitos exercícios de avaliação, alguns deles levados a cabo pela própria FCT, relativos a investigadores e a unidades de investigação, que me confortam nessa convicção (veja-se o “Diagnóstico do Sistema de Investigação e Inovação” (2013)). A investigação portuguesa ainda não ocupa lugares cimeiros nos rankings (ao contrário do que por vezes se poderia pensar, tendo em conta o entusiasmo de alguma cobertura mediática ou de alguns discursos políticos, nomeadamente de dirigentes da própria FCT) mas tem vindo a melhorar as suas posições em termos quantitativos e qualitativos e possui áreas que são internacionalmente muito robustas e com excelente reputação.
Dito isto, conheço e ouvi falar de inúmeros casos de investigadores ausentes, improdutivos ou indiferentes e até de investigadores desonestos e já me cruzei pessoalmente com alguns trabalhos de investigação cuja qualidade não passaria no crivo de um bom editor de um jornal diário. Tal como conheço as queixas de bons investigadores de bons laboratórios que se queixam de que alguns dos seus colegas “não fazem nada”.

2. Conheço igualmente a cultura nepotista, amiguista, bairrista, endogâmica e corporativista que existe em muitas organizações portuguesas e, nomeadamente, em organizações da universidade e da investigação portuguesas. A cultura da troca de favores; da mão que lava a outra e as duas a cara; do tu dás uma boa nota ao meu aluno que eu dou uma boa nota ao teu; dos concursos com um vencedor escolhido à partida; das embaixadas discretas ao ministro, aos secretários de Estado e aos presidentes da FCT em vez das discussões públicas, etc.. Como conheço a cultura dos mandarins da investigação, sempre próximos do poder e do dinheiro, eminências pardas por vocação, calados em público e sussurantes in camera, que têm à partida as avaliações garantidas e o financiamento assegurado por condições de trabalho privilegiadas.

3. Servem os pontos anteriores para sublinhar que sei que existem muitos problemas para resolver na prática da investigação portuguesa e que é necessário resolvê-los - e isto sem falar dos grandes problemas sistémicos da política científica, como são o emprego científico, a decadência dos laboratórios de estado, a investigação nas empresas, os programas estruturais, etc.
4. A correcção desta situação exige antes de mais um rigoroso processo de identificação dos problemas, o que pode ser conseguido no âmbito de um processo de avaliação das unidades de investigação. Mas é importante reflectir sobre o objectivo da avaliação. Se o objectivo da avaliação é condenar ou fechar unidades, exclui-las de participar em concursos futuros ou de beneficiar de determinados investimentos, reduzir gastos e/ou despedir pessoas, estamos a desperdiçar uma ferramenta de gestão e a desperdiçar o investimento já feito (na formação das pessoas, na criação da instituição, na criação de uma rede de contactos, em equipamentos, etc.).

A avaliação não pode ser uma expedição punitiva - e esta avaliação parece ter sido conduzida pela FCT exactamente com esse espírito. A avaliação da FCT é um instrumento de exclusão, à boa maneira da gestão empresarial neoliberal, e é, por isso, um instrumento de infusão de medo e de submissão.