segunda-feira, 14 de julho de 2014

Zetética e Dogmática, Roberto Romano


Zetética e Dogmática


Prof. Dr. Roberto Romano da Silva/Unicamp


La tolleranza non comporta affatto la rinuncia alle proprie ferme convinzioni, ma nasce dall ‘idea che la verità abbia tutto fa guadagnare a sopportare l ‘errore altrui (Norberto Bobbio, Lode della Toleranza).


O tema é a zetética e a dogmática. E uma sugestão a mais, relativa à sua possível conciliação. Devemos assumir grande prudência em problemas básicos da cultura. E ainda mais quando os desafios brotam no terreno da filosofia e do direito. Contentar-me-ei em expor alguns prismas pouco debatidos quando a zetética é discutida pelos especialistas desta ou daquela área do saber. Quanto à dogmatica no campo jurídico, não faltarão excelentes analistas, convidados e presentes no plenário, para examinar o problema. Quanto à possível reconciliação de ambas as formas de pensamento, direi minha opinião no final.
  
A zetética foi posta em forma atualizada, na reflexão sobre o direito, por Thedor Viehweg. ([1]) Como se espera de um labor erudito e alerta, a idéia de busca proposta por ele, tem fundamento nas formas céticas da filosofia que, elas mesmas, em suas origens supõem a leitura dos textos platônicos. Há, na intelecção retórica a que se liga a zetética, a marca indelével do ceticismo. ([2]) A atitude básica na análise jurídica é a de não aceitar argumentos abstratos como base última da lei como se fossem princípios imutáveis da moralidade, afastando também a tese de que o discurso da lei pode ser dito racional pelo consenso. Ela recusa, ademais, a prova da certeza estrita da lei baseada em técnicas como a da lógica simbólica. Como adianta o comentador de Viehweg, JamesHerget,  o ceticismo daquela proposta não é completo. Ela nega o sistema perfeito a acabado do direito, mas reconhece que a lei existe na sociedade, que o ensino da lei exige habilidades teóricas, as quais, por sua vez, podem ajudar os operadores do direito e a cidadania.

O ponto inicial, no entanto, gira ao redor da dúvida e do desacordo na interpretação do elemento jurídico. A interpretação, adianta Viehweg, parte do que é problemático. É tarefa árdua conciliar, na maior parte das vezes, os grandes princípios sistêmicos e as decisões legais. A lei, como em todo pensamento cético, é matéria de opinião, mesmo que esta opinião seja a assumida pela comunidade dos operadores do direito. “O estatuto dos livros (a ‘lei’ segundo os leigos) não impõe a si mesmo, nem comunica um significado sem ambigüidade e sem variações para cada contexto. O significado é fornecido pelas pessoas que devem usar a lei; logo, a opinião dos advogados e juízes sobre o que deve ser a lei tem prioridade sobre as fontes formais”. ([3]) Em suma, para dizer com o próprio Viehweg, “o debate, manifestamente, permanece como a única instância de controle” ([4]) O professor alemão, com certeza, sabia o vespeiro em que punha os dedos.  Deixo de entrar nos árduos campos da tópica e da retórica por ele propostos. Meu intento é mais modesto, mas o creio de alguma relevância, porque em análises sobre a zetética noto que, não raro, atribui-se à filosofia coisas distantes do efetivamente enunciado por seus cultivadores, de Platão aos nossos tempos. Claro que ainda existem acadêmicos para os quais o labor filosófico é apenas acessório, perfumaria nos cursos de direito.  Talvez seja saudável nos estender um pouco mais do que o habitual na origem e significados dos conceitos. O problema, os equívocos entre filósofos e juristas, é antigo e nos séculos passados causou batalhas. Há um saboroso escrito de Jean-Louis Gardies cujo título denuncia a tensão entre filósofos e pensadores do direito: “Sobre alguns malentendidos entre Hegel e os Juristas”. Ali, o autor se esmera em recolher farpas de ambos os lados, o que poderia explicar a causa da ordem filosófica ser assumida, nas Faculdades de Direito, como “perfumaria”. Creio existir naquele artigo uma trilha para que as desavenças de lado a lado sejam, pelo menos, clarificadas. Como tal alvo está muito distante, fico no terreno filosófico, nas formulações técnicas sobre a zetética.

Começo o exame semântico ao redor de Platão. O apóstolo Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, chama os judeus de povo semiótico. Os gregos são ditos, por ele,   “povo zetético” ([5]) E dos gregos, Platão foi o zetético por excelência. Inicio, portanto, mencionando o trecho da República  sobre a justiça e o ato da busca, essencial na zetética. Estamos na altura do livro 4, linhas 432 b-d. A justiça é afirmada como a essência do Estado excelente. Sócrates convida Glauco a imitar na sua busca "alguns caçadores (κυνηγέτας) que formam um círculo ao redor da moita (θάμνον). Precisamos de toda nossa atenção para evitar que a Justiça (δικαιοσύνη) não ache uma saída por onde escapar e, travestida, escape de nossos olhos". Tendo recebido a anuência de Glauco, Sócrates recomenda : "abra, pois, os teus olhos, fazendo todo o possível para percebê-la no caso de, talvez, tu a vejas antes de mim, assinalando-a". ([6]) 

Ao longo dos textos platônicos surge a metáfora da caça quando se trata de buscar o verdadeiro, o justo, o bom, o belo, o político. ([7]) Nas Leis,  ele diz que o ensino dos jovens deve prevenir contra a caça aos animais e aos homens. A primeira deve ser regulamentada, a segunda será vista como indesejável. Caçar homens é dar-lhes o estatuto de feras. Os jovens não podem considerar que outros seres humanos são feras, monstros. No diálogo Eutidemo (290b 7 – c6), Sócrates sugere que a arte do general é a mais apta a fazer os homens felizes. Clinias, o interlocutor, não cai na esparrela armada pelo filósofo: o trabalho do general entra mais na arte da matança dos homens. A caçada tem um nome específico no argumento de Clinias : “ nenhuma das artes dos pesquisadores (tès thèreutikès) ([8]) propriamente ditos, não são ligadas em algo além de pesquisar e colocar a mão sobre o bicho. Desde que o agarraram, não são capazes de usá-los e os caçadores e pescadores o passam ao cozinheiro. Do seu lado, os geômetras e calculadores –pois eles também são pesquisadores pois não criam figuras mas descobrem as que existem-  ignoram o seu uso, mas apenas as pesquisam. Eles passam os seus produtos aos dialéticos que podem aproveitar suas descobertas”.  O caçador da verdade e da justiça, portanto, precisa ter seu trabalho completado pelo dialético, mas o caminho do saber é uma caça, uma pesquisa, uma zetétike.

Se o modelo da caça impera nas relações entre indivíduos e grupos, na polis ou no mundo grego mais amplo, temos a barbárie. Agindo assim, não surge nenhuma amizade entre eles e o coletivo está quebrado a partir de seu interior. A caça não tem um fim em si mesma, bem como os saberes amealhados nas pesquisas matemáticas ou éticas. O fim da primeira é dado pelo cozinheiro, o das segundas se encontra no dialético que as sintetiza num sistema lógico coerente e universal. Mas a pesquisa e a sabedoria última se conciliam, como devem ser conciliados os indivíduos e o coletivo. Platão diz no mesmo livro que a cidade só pode ser forte se nela as dores e alegrias do indivíduo constituírem as dores e alegrias de todos. E  dores e alegrias de todos inclui a dos indivíduos. Se na cidade muitos riem e alguns choram, é marca de injustiça. Saber sem pesquisa não existe, pesquisa sem a síntese universal é tarefa infinda e inútil.

Francis Bacon, inspirador  da moderna forma científica, indicou a distinção entre pesquisa e saber sistemático ao figurar animais com os defeitos da pura zetética ou do vazio dogmatismo. Existem, diz ele, intelectuais que acumulam dados e dados sem pensá-los numa síntese. Como as formigas, acumulam e cortam os elementos empíricos ou doutrinários, mas nada brota de seu labor. Existem os intelectuais que tecem verdades lógicas em conceitos finíssimos, os sistemas doutrinários e dogmáticos, os cérebros aranha. Mas como as teias, aqueles sistemas se rasgam diante dos fatos e documentos que os desmentem. Existem, finalmente, os intelectuais que praticam a zetesis, nela recolhem os dados, mas os pensam e produzem conceitos informados pela ordem lógica, com auxílio dos elementos empíricos. As formigas zetéticas não produzem sínteses que orientem a reflexão dos saberes, as aranhas sistemáticas fazem sínteses, sem preocupação com os dados da experiência. As abelhas sintetizam e recolhem o diverso das informações que vêm da ordem empírica. Seus enunciados estão repletos de fatos e pensamentos unidos, com sentido. ([9])

A figura da caça mostra uma atitude epistemológica e axiológica fundamental: no mundo empírico, todos os partícipes da vida coletiva devem caçar os conceitos, sendo que o resultado de tal exercício não é garantido a priori. ([10]) É preciso “agarrar” (lambano) ([11]) os conceitos, como se prende nas mãos uma caça. Somente quem vai além das limitações espaço-temporais e subjetivas (devemos recordar que "empírico" significa "dentro de limites"), adquire um saber sólido sobre os valores e os entes. Ninguém, em estado lúcido, pode acreditar em textos filosóficos ou legais, como se eles trouxessem o verdadeiro, o belo, o justo.

A lingua, tanto a dos gestos quanto a oral, segundo Platão, é impotente (ἀσθενές) para expressar e colher conceitos e realidade. Por tal motivo,  na Carta Sétima (343a) ele afirma : "quem reflete (e é provido de razão) nunca terá a ousadia de depositar na escrita os seus pensamentos (...) deles fazendo algo imutável, escrito." ([12]) A crítica aos textos se espalha nos Diálogos, sendo notável a passagem do Fedro (274b) onde é narrada a recusa do rei Thamus, pela invenção da escrita. ([13]) O tema da impotente escrita muito discutido no século IV, em Atenas.  Platão nada inova no problema. Alcidamas (Peri ton Sophiston) afirma que “escrever, de fato, não é mais que uma imagem semelhante à que fabrica o pintor. Só o discurso falado é vivo e capaz de adaptar-se à ‘situação’”. ([14])

Contra o fetichismo da escrita no saber e na lei, Platão enuncia que "nenhum homem ponderado (σπουδαῖος), preso às coisas sérias (τῶν ὄντων σπουδαίων) se arriscará a deixar, escrevendo, cair no domínio público aporias, expondo-as às maldade e às dúvidas. Quando observamos obras escritas, em forma de leis por algum legislador, ou em outro assunto, notemos o seu caráter (...) Se ele considera tais coisas sérias, assim dispostas em escritos (…) os mortais arruinaram totalmente a sua razão". (Carta 7, 344c). ([15]) Dessa descrença no texto da lei, surgem no diálogo Político o elogio da pessoa animada, racional, que exerce o governo. "A arte de legislar, evidentemente", diz o Estrangeiro ao jovem Sócrates, "pertence à arte real" (δῆλον ὅτι τῆς βασιλικῆς ἐστιν ἡ νομοθετική). Mas de outro lado, o melhor está que a força pertença, não às leis, mas ao  homem prudente, real (ἄνδρα τὸν μετὰ φρονήσεως βασιλικόν)". Diante do espanto mostrado pelo jovem Sócrates, arremata o Estrangeiro: "Nunca uma lei seria capaz de perceber  com acribia o que, para todos ao mesmo tempo, é o melhor e o mais justo e prescrever para todos o que mais vale. Entre os homens, com efeito, como entre os atos, existem dissemelhanças, sem contar que nunca, por assim dizer, nenhuma das coisas humanas permanece em repouso, íntegra, o que não permite à arte, a nenhuma arte, formular nenhum princípio cuja simplicidade valha em toda matéria, em todos os pontos sem exceção e durante o tempo".

A lei, termina o Estrangeiro, “parece um homem presunçoso e ignaro, que não deixa ninguém fazer algo fora do que ele regulou, e também não deixa que ninguém o questione, mesmo que uma idéia nova, exterior aos arranjos normativos por ele impostos, deva ter para o caso individual um resultado melhor”. (294a-c). Não entrarei aqui na vexata questio milenar e no dilema: governam a lei ou os homens? ([16]) Sou bem alerta para os usos modernos e anacrônicos da opção pelo indivíduo soberano, do absolutismo assumido por Tiago Primeiro na Inglaterra do século 17 até Carl Schmitt e a proposta de que o "Füher decide o direito". ([17])

O que interessa, dada a nossa missão, é indicar que intelectos, como o de Platão, afirmam a necessária coragem anímica de não aceitar textos, sejam eles de filósofos ou legisladores, sem exame crítico. Caso contrário, surge o pedantismo da letra e o injusto em decisões legais, tanto para atingir sanções positivas ou aplicar sanções negativas aos cidadãos. A imagem da justiça enquanto caça, a recusa da pseudo-estabilidade da escrita, a busca das situações vivas com pessoas vivas, tal é o campo inaugurado por Platão e, sobretudo, pela sua descendência, no ceticismo. Aliás, para os que assumem a metodologia cética, mesmo Platão deve ser visto como dogmático. ([18])

A primeira pergunta a fazer é porque  enunciações dogmáticas adquirem tal estatuto.  Segundo um filósofo alemão de nossos dias, quando interpretamos um “algoritmo matemático, um formalismo lógico, uma fórmula física ou química, dados estatísticos, sintomas médicos de uma doença, não somos incitados à procura do sentido daqueles simbolismos (…) Trata-se de atribuir um sentido conhecido anteriormente  às fórmulas ditas ‘vazias’”. Tal procedimento, que não se interroga sobre o sentido de fórmulas e técnicas, aparecem nas ciências naturais e axiomatizadas mas também nas ciências humanas e culturais. Ele designa o campo dogmático. O horizonte de tais procedimentos técnicos é o da teologia, da jurisprudência, da filologia, da pedagogia. Aqui os textos e documentos são institucionalizados e servem de base para as próprias instituições vigentes. Assim, temos os Padres da Igreja (na teologia), os códigos legais dos juristas, os dicionários prestigiosos dos filólogos, os manuais dos professores. “Evidentemente, o bom teólogo, o jurisconsulto ou juiz, o filólogo e o professor erudito não buscam o sentido das palavras ou dos dicta dogmáticos, mas por seus estudos na disciplina eles conhecem o sentido daqueles enunciados de antemão. Eles ficam bem assegurados com a visita aos textos e os usam para solucionar problemas de consciência, a decisão de um processo jurídico, a escolha de uma palavra ou frase equivalente numa tradução, e a apresentação em regra de um tema pelo professor”.

Quanto à zetética, diz o mesmo autor, podemos compará-la à dogmática para perceber sua diferença. A dogmática é estritamente disciplinar e jamais interdisciplinar :  ela nada tem a ver com a busca da verdade ou da falsidade, mas se qualifica como boa ou má, elegante ou tola, admitida ou vetada. “Ela assegura a eficácia quando se trata de estabelecer em todo caso um sentido.  Por tal motivo, aqui nunca existe um ‘non liquet’, a impossibilidade de estabelecer um sentido, sem o que o texto dogmático cairá em desuso. As regras e os cânones dogmáticos são específicos segundo a disciplina da qual dependem. Mas em conjunto eles aspiram garantir o estabelecimento de um sentido capaz de solucionar ao problema dado. Para tal fim,  oferecem comumente alternativas ou uma grande quantidade de possibilidades para a construção do sentido. Na teologia é famosa a doutrina dos quatro sentidos da Biblia ([19]); em jurisprudência, a alternativa do sentido histórico (vontade do legislador) ou sistemática (razão da lei), e além disso a interpretação literal, restritiva ou extensiva. A filologia oferece multiplas sendas para as traduções: literais, metafóricas, poéticas, arcaizantes, modernistas, etc. No ensino (…) se adapta o sentido dos manuais à capacidade dos estudantes para uma interpretação fácil e simples (pode ser superficial) ou então densa e complexa (pode ser profunda). Evidentemente as palavras “dogma”e “dogmática” perderam seu prestigio de outrora e por causa da batalha das Luzes  contra a fé, a teologia, as autoridades”. ([20])  
Vejamos a zetética na história do pensamento. Para exercer a razão crítica é preciso suspender o juízo, uma técnica radical ou moderada, mas indispensável. O primeiro uso intencional da zetética, com fins críticos, encontra-se em Pirro e Timão no terceiro século AC. O que ambos visavam com o termo? Recusar qualquer tese que não fosse examinada pela balança do pensamento. Os pirrônicos se intitulam skeptoi, ([21]) cuja tradução latina encontra-se em quaesitores (os que buscam) e consideratores. Vimos na Carta Sétima que, diante de aporias graves do pensamento, como é o caso da verdade e da lei, só pessoas não ponderadas ousam escrever sobre elas, perdendo a essência da questão dificultosa. Quem, por não ter agarrado o conceito, não possui certezas fundamentadas (epistême), ao lavrar o verbo em letras visíveis trai a razão. Quem dispõe de bases sólidas para pensar as aporias, não as "resolve" de imediato, busca prudentemente, sem interrupção, as suas razões.   

O que é uma  aporia ? O termo significa dificuldade de ir além, ultrapassar uma porta (poros), ([22]) não resolver de imediato dificuldades epistêmicas ou éticas. Em termos simples: trata-se de um assunto para o qual as saídas foram fechadas. O que faz o cético, seguindo o veto platônico de confiar nas palavras, sobretudo as escritas? Ele suspende o juízo para investigar a coisa. Ele procura, sendo assim um zetetes, integrando o número dos quaesitores.  Os céticos seguram a pena e a lingua antes de enunciar razões sobre as coisas e as pessoas. E se limitam a dizer "que a verdade ainda não foi achada, não dizem que ela é inacessível. E não desesperam de achá-la um dia e a buscam. Eles são zetéticos". ([23]) E temos a impossibilidade filosófica de aproximação entre zetética e dogmática. A primeira, em filosofia, parte da constatação seguinte: os dogmáticos precipitam as idéias no papel e na lingua, não se demoram no exame de todos os lados, no fato a ser discutido, afirmam como absoluto o relativo, incompleto. E transformam terminam afirmando a sua verdade como única. Recordo uma análise de Erich Auerbach sobre o tema. Auerbach inventa a figura do holofote : o mundo é  palco de infinitas cenas. O apressado joga a luz sobre uma ou outra delas. Ele  persuade a platéia de que fala o único verdadeiro. Mas, argumenta Auerbach, da verdade faz parte toda a verdade. As cenas ocultas também devem ser iluminadas, o que demanda tempo. “O público sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquietação, e todos conhecemos bastantes exemplos disto, do nosso passado recente (Auerbach se refere aos totalitarismos do século 20, RR). Contudo, o truque é, na maioria dos casos, fácil de ser descoberto ; mas falta ao povo ou ao público, em tempos de tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo humano cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, tôda injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria sádica”. ([24])   

A pressa ideológica espalhou doutrinas genocidas no século 20 e definiu judeus, ciganos, eslavos, homossexuais e outros integrantes das cenas coletivas como alvos a serem destruídos com alegria sádica. O truque da propaganda dogmática teve acolhida devido ao tempo rápido na circulação das palavras. Se carrega ódio e intolerância, o verbo mata em cronologia ensandecida. Contra a rapidez doutrinária se estabelece a cautela prudencial da zetética. Um obstáculo na pesquisa filosófica, adiantam os céticos, encontra-se na pressa em chegar ao verdadeiro. Sexto Empírico buscou, entre outros, combater “a procipitação (propéteia) dos dogmáticos” ([25]) Quem é o dogmático, segundo os zetéticos? É quem ousa dizer que encontrou o verdadeiro e o justo, desconsiderando as outras mentes humanas. Na sua pressa em se afirmar e impor aos demais as suas teses, eles são presunçosos, demonstram amor exagerado de si mesmos,  autoestima tombada no excesso denominado hybris, orgulho excessivo que leva à perdição do vaidoso e da sociedade. ([26])


Há na República platônica um ponto essencial quando se trata de garantir a polis : o controle da filáucia. O que produz a tirania? O amor de si mesmo. A filáucia é o contrário da amizade. Nas Leis (Livro 5, 731 d) é sintomático que o sujeito acometido de idiotismo seja comparado ao “amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres”. A paixão impede o saber e a prática do bem. “Há um grande mal (…) que o maior número de homens tem, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência e ninguém dele escapa. Este mal chama-se amor próprio. A ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza, ela causa nossos erros pelo afeto que temos para conosco (…) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas de sua propriedade, mas o justo.” O tirano exerce o auto-erotismo e suprime os inimigos “mas também os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza”.(República,8,567b)”.([27]) O amor que os indivíduos têm para consigo mesmos desatrela a luta pelo domínio, onde todos são inimigos de todos.

A arrogância une-se à propéteia, pressa em falar ou escrever verdades e leis. Ao orgulho os zetéticos chamam, na trilha platônica, filautia, amor  exagerado de si mesmo : os dogmáticos, para os zetéticos, são “phílautoi que, explícita ou implicitamente ‘dizem ter de a si mesmos preferir-se com relação aos outros homens no julgamento das coisas, mas sabemos que sua pretensão é absurda (átopos)’: sendo parte na discussão filosófica sobre o julgamento de aparências conflitantes, eles incorrem em inegável petição de princípio ao assumir aquela preferência, antes mesmo de o julgamento começar. E, de fato, no que respeita à verdade, os dogmáticos são homens que, por seu amor de si (philaútos) ‘dizem tê-la, eles próprios, sozinhos descoberto”. ([28])

De onde vem o termo "ceticismo" ? Provavelmente de Homero que, na Odisséia (Canto 12, versos 244-249), usa spekptomai no sentido de "olhar para todos os lados afim de observar.  A palavra significa olhar atentamente rumo a duas ou mais direções possíveis. Em Sófocles (Édipo Rei, 584) o termo tem o sentido de olhar e refletir. ([29]) Em Platão, voltemos a ele, no contexto da polêmica com Trasímaco (a justiça é atributo do mais forte), após uma investida do sofista, Sócrates lhe diz, com a ironia habitual: "Trasímaco, não sejas duro conosco. Se eu e meus amigos cometemos erros na consideração do problema, fiques seguro que erramos invontáriamente. Porque não podes supor, seguramente, que se a nossa busca (σκέψει ) jamais enganaríamos uns aos outros, fazendo concessões na busca (ζητήσει), desperdiçando nossa chance de encontrá-lo. Estamos à busca da justiça (δικαιοσύνην δὲ ζητοῦντας), uma coisa mais preciosa do que o mais fino ouro, e  seríamos loucos (ἀνοήτως ) por dar passagem um ao outro e não dedicar o mais sério (σπουδάζειν) de nós para descobrí-la". (República I, 336e) 


A pesquisa (zetesis) do excelente e do justo exige o que é mais sério. Já vimos: para o filósofo, redigir leis e verdades não se encontra entre as tarefas mais sérias da existência. Pelo contrário, designam atividades ensandecidas porque procuram encarcerar a mente, como na mumia, em bandagens rígidas, dogmáticas. Chegamos ao ponto mais delicado do ceticismo. Tudo pode ser motivo de busca, zetesis, mas sempre num mar revolto que, ele, campo do fenômeno, não pode ser procurado porque se oferece de imediato para todos os que pensam. Não podemos dizer como as coisas são "realmente" por detrás de sua aparência, o ser em si das coisas é algo "azetetos". De outro lado, nossas impressões também são postas como algo"azetetos", não podemos perguntar sobre elas: as coisas aparecem, mas saber o como e o porque elas surgem é impossível. ([30]) Em todos os lados do ato de conhecer e fazer é preciso a suspensão do juízo para não cair na ilusão dogmática que, no fim das contas, é delírio e loucura.

Quando se evoca em filosofia a atitude zetética, as ressonâncias não trazem apenas a idéia de busca, de pesquisa, mas de juízo crítico, pesagem das teses e antíteses, decisão de jamais "resolver" aporias da mente e da ética. Note-se, pois, que aparece algum ruído quando, ao comparar a dogmática à zetética, se indica que nesta última temos as ciências (exatas ou humanas) e na primeira as ordens legais indiscutíveis. Nullius addictus jurare in verba magistri. A exigência de Horácio (Epistolas I, 14) serve aos que, nos tempos modernos, recolhem as lições de Platão. A recusa do princípio de autoridade invadiu as ciências e artes, destas à política. Dizer que um enunciado é verdadeiro porque dito ou escrito por Aristóteles ou um mestre do direito, significa renunciar ao uso da própria razão.

Como diz Montaigne, pioneiro da liberdade anímica, "o juízo tem, em mim, uma sede magistral". A metáfora do tribunal da mente passa a ser determinante no mundo noético. Atitude crítica exige a pesagem das palavras. Não por acaso o símbolo assumido pelos zetéticos da modernidade, a balança, é o mesmo da justiça. O cuidado para não aceitar verdades impostas exige que os termos sejam ensaiados antes de sua circulação no mercado político e social. Os Ensaios receberam o nome de "conatus", esforço na ação física ou intelectual. Em Montaigne e na ordem moderna o "eu liberta-se, pensando, e pensa, marchando"([31]) A filosofia está sempre em movimento, nunca parada, dogmática. ([32]) A liberdade, diz um comentador do filósofo, "não é um estado, repouso, mas um ato ou função, um aspirar, um esforçar-se".

Temos outro elemento na filosofia cética ao redor do ensaio. Tal palavra deriva do latim exagium. Ela era usada na avaliação das moedas em seu toque, título, quilate. Ensaiar é examinar : monetam inspicere. Na Casa da Moeda um ensaiador as examina com a balança, também símbolo dos céticos. É preciso,  confidencia Montaigne, ensaiar (exagiare) as idéias, pesá-las, descobrir o metal precioso nelas posto ou a escória tida pela maioria como preciosidade. Na pesagem das palavras está suposta outra noção. O vocábulo "pensar" liga-se ao ato de pesar. Pensar vem de pensare, ponderare, pondus. Um pensador pesa juízos, como o ensaiador, as moedas. "Eu não conto meus empréstimos, eu os peso".

No mercado comercial, político, religioso, diz Montaigne, "não se olha mais o que as moedas pesam e valem, mas cada um as recebe segundo o preço que a aprovação comum e a cotação lhe dá". A propriedade das idéias é de todos os homens. Mas nem todos são alertas para pesar o seu valor e se elas servem para as operações para quais são movidas.  Não raro idéias pouco valiosas compram decisões governamentais, magistrais, religiosas. Montaigne evoca o envenenamento noético. Doutrinas falsas mostram-se  letíferas e perigosas. Contra o dogmatismo sectário que tende a encarar as suas próprias teses como absolutas, é preciso a relativização, a crítica. Todo o ideário de Montaigne se resume na figura da balança: "Que sei eu? Como eu coloco numa balança". Veneno. Palavra para designar fanatismos fantasiados de ciência moderna, sobretudo no século vinte.


Tais aporias nos levam à uma terceira senda entre a zetética e a dogmática. Imanuel Kant tentou evidenciar, já no primeiro prefácio à Crítica da Razão Pura, que  as duas devem ser ligadas ao controle da razão para o bem coletivo. A primeira, no seu entender, é despótica. A segunda causaria desordem. ([33]) Nem cética e nem dogmática, a crítica examinaria os fundamentos e as pretensões dos conceitos que pretendem ostentar o título de ciências, em todo e qualquer campo intelectual e volitivo. Os profissionais do Estado aludidos, que esposaram as teses da eugenia, médicos, juízes, engenheiros, usaram a razão. Mas não pesquisaram os limites daquela força intelectual. Por outro lado, não examinaram a própria consciência na busca de imperativos éticos que os impedissem de cair na animalidade. Como diz Goethe no Fausto,  uma pessoa assim usa a razão, mas de maneira a se tornar mais feroz do que todas as feras :  Er nennt‘s Vernunft und braucht’s allein, Nur tierischer als jedes Tier zu sein

É contra a pretensão das escolas ditas superiores pelos governos (medicina, direito, teologia) que se voltam as três críticas kantianas. Os profissionais da medicina, do direito, da teologia (não raro, da filosofia) usam os enunciados racionais na ausência da crítica. O dogmatismo, diz Kant, é uma “confiança cega no poder que tem a razão de se ampliar a priori  sem crítica, por meio de conceitos puros, preocupada apenas com o seu aparente sucesso”. E confessa o mesmo Kant: “eu encontrava pouco a pouco muitas proposições que consideramos objetivas mas que, de fato, são subjetivas, isto é, contêm as condições sob as quais somos nós mesmos que entendemos e concebemos o objeto”. Dois caminhos:  tombar no ceticismo que suspende sempre o juízo ou se afastar da trilha dogmática, desesperando da ciência e da ética,  ou examinar o poder da razão, os seus limites. Este foi o caminho de Kant : nem zetética pura nem dogmática, mas a crítica da razão pura, antes dos enunciados científicos, morais ou artísticos. Mas para I. Kant “o ceticismo, com fundamento no juízo circunspecto, advertido pela experiência, é a passagem necessária do dogmatismo para a filosofia crítica” ([34]) Kant nada disse a mais do que outros pensadores adiantaram. Pierre Bayle, ao falar a propósito de Pirro e dos céticos adianta que eles foram chamados de “céticos, zetéticos, eféticos, aporéticos, ou seja, examinadores, inquisidores, suspendentes, dubitantes. O que mostra que eles supunham ser a verdade possível de ser encontrada, e que eles não decidiam que ela era incompreensível” ([35])

Contra os dogmáticos de todas as escolas, pensa Kant, o procedimento cético é um antídoto eficaz. Como Platão, no entanto, ele não absolutiza a dúvida. Em Platão, no mesmo Eutidemo que citei acima, o argumento cético traz sempre admiração (ἀεὶ θαυμάζω) a Sócrates : os céticos não apenas arruinam (ἀνατρέπων)  os pensamentos alheios, como os seus próprios. ([36]) A corrosão das perguntas incessantes, a zetesis infinda, termina por não chegar a nenhum ponto sólido no saber e na ação. Kant acolhe o repto platônico ao ceticismo mas, como Platão, usa as técnicas que abalam as certezas como instrumento para arrancar do intelecto escórias doutrinárias. O ceticismo absoluto, segundo Kant, “ao renunciar a afirmar todo conhecimento, anula todos nossos esforços para assegurar a posse de um conhecimento do que é certo”([37]) Na guerra contra o dogmatismo, o procedimento cético não chega à vitória completa : “seu sistema é posto, por ele mesmo, em dúvida, visto que suas objeções só repousam em fatos, e fatos contingentes, e não em princípios capazes de nos obrigar à renúncia ao direito das afirmações dogmáticas” ([38]) Mas o método que consiste em suspender o juízo presta relevantes serviços à crítica. Se o ceticismo absoluto prejudica o conhecimento e a moral ele “é útil e oportuno enquanto método, se o entendermos como o modo de tratar uma coisa como incerta e conduzi-la ao mais alto grau de incerteza na esperança de encontrar no caminho o traço da verdade. Este método filosófico consiste em descer às fontes das afirmações e objeções e aos fundamentos sobre os quais elas repousam, método que permite esperar atingir a certeza”. ([39])  A zetética é o modo pelo qual se encaminha a resolução de um problema antigo, o do ensino filosófico. Não é possível ensinar a filosofia, mas a filosofar. “Ninguém pode se dizer filósofo no sentido estrito, ou mestre da sabedoria, de modo que  não é possível ensinar filosofia como doutrina constituida no sentido dos saberes positivos, as apenas a filosofar segundo um encaminhamento zetético, todos e cada um podem ser tornar filósofos na acepção do conceito cósmico da filosofia que visa os fins últimos da razão humana”. ([40])

Para o conhecimento certo é necessário arrancar as camadas doutrinárias que se acumularam na mente humana. A imagem mais própria para esta situação vem dos textos platônicos e foi usada por Rousseau: a estátua do deus Glauco. ([41]) A ferocidade dogmática não é vencida pelo método cético. Mas este último afasta certezas dos que operam com a razão sem críticas e limites. O procedimento kantiano não discrepa, assim, do uso feito por Descartes na dúvida metódica e, mesmo, hiperbólica. ([42]) Mesmo Pascal usa a dúvida cética, na medida em que ela serve para distinguir os vários tipos de seres humanos. Existem os que encontraram Deus, os que o procuram sem o encontrar e, finalmente, “os outros que vivem sem procurá-Lo. É preciso reconhecer que a expressão de Pascal é muito apropriada, na medida em que ela dá conta também da natureza ‘zetética’ da dúvida pirrônica, sempre aberta à pesquisa, o que é o caso do segundo tipo descrito pelo apologista,  enquanto o terceiro, se não alude simplesmente ao gênero mais comum dos ‘belos espíritos’, rebeldes, irreligiosos e libertinos nos costumes, pode bem se aplicar à forma de dúvida que permite economizar a crença, rebatendo o espírito ao nível dos fenômenos e neutralizando todo apelo aos ‘dogmata, pela simples constatação do equilíbrio instaurado entre as diferentes opiniões e os diversos fenômenos, uns opostos aos outros”. ([43])

O lado corrosivo da dúvida cética, presente na filosofia moderna em autores como Descartes e Pascal ([44]) (embora, finalmente, ela tenha sido abandonada) levantou suspeitas gerais contra a filosofia crítica, demasiado próxima aos movimentos das Luzes e da Revolução Francêsa. ([45]) Não por acaso as escolas arrogantes e os governos idem ergueram barreiras, entre elas a da censura, contra os textos kantianos. Já no intróito da Crítica da Razão Pura, Kant proclama que nosso tempo é o da crítica, à qual tudo deve ser submetido, pois não mais nos contentamos com a aparência do saber. A razão não pode, por nenhuma defesa, atacar a liberdade da crítica sem arruinar a si mesma e sem atrair suspeitas que a prejudicam. Contra o dogmatismo e o ceticismo, a crítica permite provar sua ignorância relativamente a todas as questões possíveis de uma certa espécie. Quem não submete a sua razão à crítica, termina sempre com saberes inquestionados, mas no mínimo derrisórios. ([46])

Faltou aos operadores do Estado e aos acadêmicos, a crítica de sua própria razão, o reconhecimento de seu próprio caráter, a distância de seus atos em relação a toda beleza. A pessoa que praticou um ato ilegítimo e tenta se desculpar “percebe sempre que o advogado que fala em seu favor não pode reduzir ao silêncio a voz interna que a acusa, se ela tem consciência, de estar em seu bom senso quando cometeu o ato injusto em plena liberdade”. A consciência moral é a faculdade judiciária que julga a si mesma. Quando se diz, adianta Kant, “este homem não tem consciência”, o que se afirma é que ele não obedece o veredicto do seu juiz interno. E tal sentença, no tribunal da consciência, é infalível. É impossível o engano, o que foi feito, traz a chancela da vontade que não se dobrou ao imperativo moral da própria consciência.  Tal é a essência do antissemitismo, do racismo e de outras expressões que encontraram nos dogmas da ciência eugênica as suas razões. ([47])

Assim, todos os  que praticam atrocidades em nome da ciência ou da razão de Estado, não merecem desculpas. Sabemos o quanto, em Nuremberg e depois, aqueles servidores do poder tentaram salvar a própria pele descarregando todo o mal sobre indivíduos poderosos, como Hitler, ou em organizações burocráticas (foi o que Carl Schmitt alegou no seu julgamento), ([48]) ou no “espírito do tempo”. Eric Voegelin mostra o quanto tais desculpas são esfarrapadas, não poupando em sua análise do elo entre Hitler e os alemães as igrejas, as universidades, os tribunais, a inteira sociedade alemã. ([49]) Não é segredo para ninguém que o programa para a denazificação da Alemanha foi um fiasco, quando não pura absolvição silenciosa de notórios nazistas, aproveitados na ordem democrática por seus conhecimentos burocráticos, financeiros, etc. Voegelin també não poupa este crime que significa uma anistia silente dos carrascos. ([50])

Zetética e dogmática, uma conciliação possível? ([51]) Talvez, desde que ambas passem pela crítica da razão, científica, moral, artística. E para a tarefa, pensadores da filosofia, das ciências naturais e humanas, do direito e da teologia têm dedicado os seus melhores esforços, pelo menos desde o distante século XVIII a era das Luzes. ([52]) Em sua conclusão do livro relevante sobre os embates da zetética contra o pensamento dogmático, Marcello Gigante recorda a importância atual da filosofia que duvida. Mas indica que ela não pode ser proposta a quem deseja viver e sobreviver, sobretudo quando ela afasta as opiniões firmes. “Já David Hume escrevera que ‘um pirrônico deve reconhecer algo, que toda a vida humana deve perecer se os seus princípios devessem ser universalmente e prontamente prevalecer. Todo discurso, toda ação acabaria imediatamente e os homens ficarão numa letargia total, até que a necessidade da natureza, insatisfeita, ponha fim à sua existência miserável’”.  O cético enxerga a diversidade, alí onde o dogmático visualiza a igualdade dos entes. Gigante narra uma visita sua a Nova York : “no World Trade Center, a última maravilha do mundo, os dois prédios exibem mais de cem planos, e me apareceram em julho diversos e iguais, iidem et alii, segundo a distância e o ponto de observação. Durante o passeio pelo Hudson, um parecia menos alto do que o outro; em terra firme, na distância mínima, os dois colossos, ousado e elegante êxito das estupenda técnica dos nossos dias, surgiam como eram, iguais. Após a dúvida, tive a certeza, depois da aporia, o dogma: os edifícios têm a mesma posição, a mesma estrutura, a mesma altura mesmo que, às vezes, observados à distância, forneçam a sensação de serem diversos; a diversidade se revela um aparecer, a igualdade um ser (…) Vejo, erro, conheço, distinguo, julgo: o processo gnoseológico conduz à uma certeza que está no limite, única e não dúplice, verificada e não contradita pela experiência”. ([53])

O exemplo é terrível. Após o 11 de setembro, a certeza sobre os prédios gêmeos, tão acarinhada por Gigante, sumiu na poeira das bombas e dos aviões. E agora, mesmo o idealizador dos ataques que os destruíram desapareu na sombra da morte. Seu nome e figura estarão de volta em novos atentados ? Não sabemos. David Hume tem razão: viver sempre na dúvida conduz à letargia e à morte. Mas viver sob o sono dogmático violenta fenômenos e consciências. Kant, desperto por Hume do sono metafísico, tentou uma terceira via entre a zetética e a dogmática. Vale a pena, antes de exibir saberes infalíveis na ordem médica, política, econômica, jurídica e outras, meditar sobre as três críticas kantianas. E recordar a lição preciosa da zetética: a tolerância. Esta, como diz Noberto Bobbio, é o caminho  para se atingir a verdade. Ao comentar as teses polêmicas de Alistair MacIntyre ([54])  que defendia o retorno da reflexão sobre a virtude no pensamento ético, Bobbio, no mesmo átimo em que discute a doutrina kantiana da moral e do direito confessa, do seu modo polido: “sempre hesitei em aceitar drásticos contrastes, porque eles favorecem unilateralmente atitudes relativas a intangíveis assuntos, como os ligados à filosofia, onde a verdade nunca é peremptória, definitiva e indiscutivelmente posta em um lado e também por respeito à interpretação histórica, este imenso depósito disposto aleatoriamente com mil coisas, sendo perigoso acima de tudo, e inconclusivo, isolar um entre muitos” ([55])

A crítica kantiana alicerça o seu programa na liberdade e na autonomia de todos os entes humanos.  Ela não se dirige apenas aos especialistas, as elites sábias que manipulam massas domesticáveis. ([56]) Nela, o alvo é a maioridade universal do gênero humano. E tal fim se atinge com a procura, a caça da verdade. Sem mais.

Roberto Romano



[1] Cf. Viehweg, Theodor: “Ideologie und Rechtsdogmatik”in Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechstheorie Gesammelte Kleine Schriften (Baden Baden, Nomos Ed.,1995), página 85 e seguintes. Na tópica, tal como pensada por Viehweg se encontra no horizonte, além da tópica aristotélica, a balança cética. É o que pensam alguns próximos ou adversários de Viehweg :  “Die Unterscheindung zwischen Dogmatik und Zetetik geht zurück auf die griechische Skepsis” Ottmar Ballweg, citado por Agnes Launhardt : Topik und Rhetorische Rechtstheorie, Eine Untersuchung zu Rezeption un Relevanz der Rechtstheorie Theodor Viehwegs (Düsseldorf, Juristischen Fakultät der Heinrich Heine Universität, 2005) docserv.uni-duesseldorf.de/servlets/.../Derivate-3244. Não tive acesso, até agora, ao texto impresso desta tese de doutoramento. Como limite, podemos evocar a crítica de Francis Bacon ao empírico-formiga, que vai de caso a caso, acumula casos e não se eleva à síntese, ao sistema. Como correção do sistemático, o intelectual aranha, o estilo tópico é importante, mas não basta quando se trata de pensar complexos de fatos e normas.
[2] Cf. Herget, James E. : “Rhetorical Theory” in Contemporary German legal philosophy (Philadelphia. University of Pennsilvania Press, 1996), página 62 e seguintes.
[3] Herget, op. cit. página 65.
[4] Topik und Jurisprudenz ein Beitrag zur Rechtswisenschaftlichen Grundlagenforschung (München, Beck Ed, 1974), página 43.
[5] πειδ κα ουδαοι σημεα ατοσιν κα λληνες σοφίαν ζητοσιν : Quoniam et Judæi signa petunt, et Græci sapientiam quærunt (II Corintios, 22). Pouco antes, Paulo interroga: “onde está o sapiente? Onde o gramático? Onde o inquiridor (na Vulgata, conquisitor) do tempo? Não fez Deus loucura da sabedoria mundana?”. Disputador do tempo, no grego é grafado como zetetés tou aionos:   συζητητς το αἰῶνος (o inquiridor do tempo). O termo une “syn” (identificado a, unido a) e zeteo (procurar, buscar). Synetetes é o que procura e debate junto às demais pessoas, em assuntos filosóficos ou religiosos. συζητ-ητής , οῦ, ,  A. joint inquirer: disputant, Cf. Henry George Liddell. Robert Scott. A Greek-English Lexicon. revised and augmented throughout by. Sir Henry Stuart Jones. with the assistance of. Roderick McKenzie (Oxford. Clarendon Press. 1940). Tais pessoas, mergulhadas na semiótica ou na zetesis, são condendas pelo apóstolo, visto que ambas as atitudes procuram a sabedoria e o ensino evangélico não é sábio, mas louco segundo os homens, ou “o mundo” οχ μώρανεν θες τν σοφίαν το κόσμου (não fez Deus loucura a sabedoria do mundo?”. Cf. 1 ad Corintios in Novum Testamentum Graece et Latine (Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1981), página 862. Trad. João Ferreira de Almeida (Brasilia, Sociedade Bíblica do Brasil, 1969), página 197. O veto aos debates fica bem claro em Romanos, 14-1: τν δ σθενοντα τ πίστει προσλαμβάνεσθε, μ ες διακρίσεις διαλογισμν. Infirmum autem in fide assumite, non in disceptationibus cogitationum. O termo diakrisis (de diakrinō) também possui conotação jurídica de disputa sobre o sentido de um processo e de sua decisão. 
[6] Cf. República (Harvard University Press, Loeb Classical Library, Plato V, I, 1978), páginas 364-365). Os comentadores do trecho, de Thompson a Hume, concordam com a caracterização da busca : "There cannot be two passions more nearly resembling each other than hunting and philosophy". (Nota do editor no texto na Loeb citada, nota f, página 365).
[7] Cf. Louis, Pierre: Les Métaphores de Platon (Rennes, Imprimeries Réunies, 1945), páginas 214-215. No Brasil, Maria Sylvia Carvalho Franco pesquisa há muitos anos o tema da animalidade em Platão. Não tenho a competência suficiente para fazer daquele tema análises tão refinadas quanto as por ela expostas em simpósios especializados. Breve virão a lume os seus escritos e o leitor poderá, com eles, aprofundar o símile entre feras e homens na política pensada por Platão. Existem trabalhos sobre a animalidade como técnica de derisão nos textos platônicos. Tais caminhos exegéticos, embora interessantes, podem levar à uma hermenêutica forçada dos escritos. É o caso do instigante estudo de A.W. Saxonhause, que busca comparar a proposta socrática de uma Calípolis, na República, à comédia de Aristófanes. Vale a pena, no entanto, ler o trabalho de Saxonhause. Cf. “Comedy in Calipolis, animal imagery in the Republic in The American Political Science Review, vol. 72, n. 3, sept. 1978. Página 888  a 901. Também pode ser lido em PDF : ancphil.lsa.umich.edu/-/downloads/faculty/.../comedy-callipolis.pdf

[8] Clinias fala de thèreutikè (technè), usando um adjetivo que qualifica o que se relaciona com  thèreuein (caçar, perseguir). Thèreuein significa « caçar » no sentido próprio (o verbo deriva de thèra, “caça aos animais selvagens” que também deriva de   thèr, « bicho selvagem” ou « monstro ») e no figurado. Thèreutikè pode ser traduzido por « arte do pesquisador » e thèreuein por « pesquisar », o que faz menos surpreendente a assimilação feita por Clinias entre geômetras e outras sábios a “pesquisadores”e não mais a caçadores, como requeria uma tradução clássica. Para os esclarecimentos indicados aqui, cf. Bernard Suzanne : Platon et ses dialogues  http://plato-dialogues.org/fr/tools/voc/dialektikos.htm#note17

[9] Um trabalho importante, neste sentido, é o de Paolo Rossi : "Ants, spiders, epistemologists". In: Francis Bacon, terminologia e fortuna nel XVII secolo. Seminario internazionale, a cura di Marta Fattori. Roma, Ateneo, especialmente página 254 e seguintes. O símile dos animais na doutrina sobre o conhecimento vem dos pré-socráticos. Plutarco, retroage a Democrito para rastrear as bases desta imagem. "Talvez sejamos ridículos", diz ele, "quando nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles, prova-o Democrito, somos discípulos nas coisas mais importantes : da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas, das aves canoras, cisne e rouxinol no cantar". Cf. "Democrite" in "Les Écoles présocratiques". Édition établie par Jean-Paul Dumont. (Paris, Gallimard, 1991) . O próprio Plutarco tem um pequeno texto satírico sobre a superioridade ética e racional dos animais sobre os homens. Cf. "Os animais são racionais". Moralia, Loeb Classical Library, V.12, trad. Cherniss, H. e Hembold, W. páginas 481 e seguintes.

[10]  A palavra pré-socrática e platônica adequada para o conhecimento discutível, é eoikos. No tempo e no espaço, podemos ter sobretudo semelhanças, plausibilidades, possibilidade. Cf. Bryan, Jenny: Likeness and likelihood in the presocratics and Plato (Cambridge Classical Studies, Cambridge University Press, 2011).

[11] O termo grego para agarrar (λαμβάνω)  repercute na filosofia posterior, até os nossos dias. Em Hegel, Begriff tem elos com o ato de agarrar conceitos, com o verbo Begreifen (compreender, agarrar, tocar) em cujo núcleo ocorre greifen (agarrar, capturar). Conceituar significa captar a própria consciência: “o conceito nada mais é do que o Eu ou a pura auto-consciência” (Lógica)  É o que levou  W. Wallace, a ler o conceito como Self-activity. Cf. Hegel, G.W.F : Fenomenologia do Espírito,  trad. de J. Hyppolite (Paris, Aubier, 1941),  2, página 263, nota 10.

 

[12] Uso a edição eletrônica do Perseus Project (Plato, Letter 7). “Não apenas a escrita é incapaz de transmitir um saber (…) mas também a palavra. Encontramos menos na Carta VII uma condenação da escrita e mais uma condenação de toda formulação, escrita ou falada, que se queira definitiva, e uma recusa de se endereçar  a todos os que, quaisquer que sejam as suas capacidades intelectuais (boa memória, facilidade para aprender) são naturalemente estranhos à uma certa experiência (…) O pensamento não se move no tempo e no espaço, ela encontra sua firmeza em seu próprio movimento, não em seus resultados. Cf. Dixsaut, Monique : Platon, le désir de comprendre (Paris, Vrin, 2003), páginas 18- 25.
[13] Analiso mais profundamente o tema do silêncio, da escrita e da filosofia no artigo "Sobre o Segredo e o Silêncio", Revista USP número 88, dezembro/janeiro/fevereiro 2010-2011, páginas134-146.
[14] Cf. Laborderie, J. : Le Dialogue Platonicien de la Maturité (Paris, Belles Lettres, 1978), páginas 86 a 89. Sobre Alcidamas, cf. H. L. Brown : “Alcidamas & Extemporaneous Speech” in Peithôs’s Web. http://fxylib.znufe.edu.cn/wgfljd/%E5%8F%A4%E5%85%B8%E4%BF%AE%E8%BE%9E%E5%AD%A6/pw/index.htm

[15] Não apenas na Carta Sétima Platão assume tal figura do sério e do jogo, mas também  nas Leis (769a).
[16] O clássico texto, sobre o assunto, é de Marcello Gigante: Nomos Basileus (Napoli, Bibliopolis, 1993, primeira edição 1953).
[17] Cf. Meuter, Günter: Carl Schmitts ‘nomos basileus’ oder: Der Wille des Führers ist Gesetz. Über den Versuch, die konkrete Ordnung als Erlösung vom Übel des Positivismus zu denken, (Institut für Staatswissenschaften  Fakultät für Sozialwissenschaften Universität der Bundeswehr München: Neubiberg, 2000), em  http://www.rz.unibw-muenchen.de/~s11bsowi/pdf/IfSWerkstatt5.pdf, S. 8, 35. E também Scheuerman, William E. : Carl Schmitt, the end of law (Rowman & Littlefield, London/New York, 1999)
[18] Cf. Gigante, Marcello : Scetticismo e Epicureismo (Napoli, Bibliopolis, 1981), página 153.
[19] Literal, alegórico, tropológico ou moral, anagógico (mostra o que virá).
[20] Geldsetzer, Lutz: “Entre philosophie et herméneutique, la leçon de l ‘historiographie du 20eme siècle”, in Rivista di storia della filosofia, número 2, 2003, Convegno Internazionale, Verona, 21-22 setembre, 2001. www.phil-fak.uni-duesseldorf.de/philo/geldsetzer/verona.pdf

[21] “Der Skeptizismus hiess auch pyrrhonische Philosophie und ephektische Skepsis von skeptein, suchen, forschen” (Sextus Empiricus, Pyrrohonieae hypotyposes, I, 3, 7). É assim que Hegel indica o ceticismo nas Lições sobre a História da Filosofia: ele é uma busca, uma pesquisa. O filósofo moderno também cita Sextus Empíricus quando se trata de melhor definir os céticos: eles são “indagadores (zethticoi) e sua filosofia recebe, às vezes, o nome de indagadora”.  Cf. Vorlesungen uber die Geschichte der Philosophie, II, in Werke in zwanzig Bänden (F.A.M., Shurkamp Verlag, 1971), páginas 361 e seguintes.
[22] Πόρος (passagem, leito de um rio, via, caminho), donde palavras conhecidas por nós, como empório (lugar onde opera o ἔμπορος, o viajante, o que negocia). Não é o caso de nos estender aqui sobre os vários prismas da aporia. Segundo Viète, é preciso distinguir muitas formas de análise matemática : “a análise zetética, isto é, o método que permite inventar verdades novas, difere da análise porística, que tem por alvo a invenção, não de uma solução, mas de uma demonstração para uma solução, ou por uma propriedade supostamente verdadeira. No trabalho matemático, as duas pesquisas seguem vias muito dissemelhantes: com frequência é por um caminho oblíquo que se descobre um resultado, e tal descoberta deve ser frequentemente seguida de uma tentativa de demonstração mais rigorosa”. A prudência recomenda que não se tente “resolver”aporias de maneira direta. Descotes, Dominque : “Pascal et le problème du plagiat” in  Couton, Marie, Fernandes, I., Jérémie, C. , Vénuat, M. :  : Emprunt, plagiat, réécriture aux Xve, XVIe, XVIIe siècles, pour un nouvel  éclairage sur la pratique des Lettres à la Renaissance, (Clermont-Ferrand, Presses Universitaires Blaise Pascal, 2006) página 294.
[23] V. Brochard : Les sceptiques Grecs (Paris, Vrin, 1986), página 97.  Os discipulos de Pirro eram os zetéticos (buscavam a verdade), os céticos (continuam buscando a verdade), eféticos (continuam suspendendo o juízo), e os aporéticos (permanecem na incerteza). “The very term 'sceptic', at least sometimes, was meant to suggest, among other things, that a sceptic is not going to claim that nothing can be known. 'Skepsis' is a word which in Greek ordinarily was used to refer to one's looking at or considering or reflecting on something. But it also came to be used to refer to one's inquiry into a matter, and thus became, along with 'zêtêsis', a term to refer to any kind of inquiry, but in particular the kind of methodical inquiry philosophers and scientists are engaged in. And it surely is no accident that ancient sceptics not only were called, or called themselves, 'sceptics', but also ‘zetetics’ (DL IX, 69; Pyrrh. I, 7). Given the formation of the words, a sceptic or zetetic should be a person who is prone or inclined to inquire into things, or shows particular ability or persistence in doing so”. Cf. Frede, Michael: “The Sceptics”in Furley, David (Ed.) From aristote to Augustine (London, Routledge, 1999), página 253.
[24] Auerbach, Erich: Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971), páginas 352-353.
[25] Cf. Porchat Pereira: Rumo ao Ceticismo (São Paulo, Unesp Ed., 2006), página 231.
[26] Cf. Romano, Roberto: “Os laços do Orgulho, reflexões sobre a política e o mal” Revista Unimontes Científica, volume 6, número 1, 2004,
[27] O item das Leis é extraído da tradução de L. Robin das Oeuvres de Platon. (La Pleiade, p. 784). O trecho entre parêntesis é de Roberto Romano : “Uma questão de costumes” in Lerner, Julio (ed.) Cidadania, verso e reverso. SP, Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, 1998, pp. 192-193. Um livro importante para o assunto, é o de Jean-Claude Fraisse: Philia, la notion d´amitié dans la philosophie antique (Paris, Vrin, 1984).
[28] Cf. Porchat Pereira: Rumo ao Ceticismo (São Paulo, Unesp Ed., 2006), página 231.
[29] Cf. Lambros Couloubaritsis : "La problématique sceptique d´un impensé: H Skepsis" in Voelke, André-Jean (ed.)  Le scepticisme antique, perspectives historiques et systématiques,  Actes du Colloque International sur le scepticisme antique (Genève. 1990), páginas 17 e ss.
[30] Cf. Burnyeat, M.F. : "Can the sceptic livre his scepticism?" in Schofield, M. e outros (Ed.) : Doubt and Dogmatism (Oxford, Clarendon Press, 1980), páginas 39-39.
[31] Cf. Silvio Lima : A Essência do Ensaio (Lisboa, Livraria Académica, Colecção Studium, 1946), página 57. Cf. também Tournon, André: “Route par ailleurs”, Le ‘nouveau langage’des Essais (Paris, Honoré Champion, 2006).
[32] Cf. Starobinski, Jean: Montaigne en Mouvement (Paris, Gallimard, 1982).
[33] Cf. Leonel Ribeiro dos Santos : Metáforas da Razão, ou economia do pensar kantiano (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), página 614.
[34] Gordin, Cristian : “La figures et le moment du scepticisme chez Hegel” in Les études philosophiques, 2004, número 70, p]aginas 341/356. E também no site CAIRN. INFO. http://www.cairn.info/article.php?ID_ARTICLE=LEPH_043_0341

[35] Dictionnaire historique et critique, artigo Pyrrhon citado por Paganini, Gianni: The  return of scepticism: from Hobbes and Descartes to Bayle (Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 2003), página IX. Do mesmo autor, cf. “Pierre Bayle et statut de l ‘ath]eisme sceptique”in Revista Kriterion, vol. 50, no. 120, Belo Horizonte, Dezembro/2009.  Texto reproduzido no site Scielo :

[36] Eutidemo, 286c. Uso a edição do Projeto Perseus. Cf. também Euthydème, trad. Leon Robin, Platon Oeuvres Complètes (Paris, Pléiade, volume 1, 1953) página 581.
[37]  I. Kant, Lógica. Uso a tradução francêsa de L. Guillhermit (Paris, Vrin, 1966), página 94.
[38] Citado por Dumont, Jean-Paul : Le scepticisme et le phénomène (Paris, Vrin, 1985) página 73.
[39] Citado por Dumont, op. cit. página 74.
[40] Ruiz, Alain e Françoise Knopper  : Les voyageurs européens sur les chemins de la guerre et de la paix du temps des Lumières au début du XIXe siècle (Bordeux, Presses Universitaires de Bordeaux, 2006), página 40.
[41] O célebre prefácio ao Discurso sobre a Origem e o Fundamento da Desigualdade entre os homens : “Car comment connaître la source de l'inégalité parmi les hommes, si l'on ne commence par les connaître eux-mêmes ? Et comment l'homme viendra-t-il à bout de se voir tel que l'a formé la nature, à travers tous les changements que la succession des temps et des choses a dû produire dans sa constitution originelle, et de démêler ce quíl tient de son propre fonds d'avec ce que les circonstances et ses progrès ont ajouté ou changé à son état primitif ?  Semblable à la statue de Glaucus que le temps, la mer et les orages avaient tellement défigurée qu'elle ressemblait moins à un dieu qu'à une bête féroce, l’âme humaine altérée au sein de la société par mille causes sans cesse renaissantes, par l'acquisition d'une multitude de connaissances et d'erreurs, par les changements arrivés à la constitution des corps, et par le choc continuel des passions, a, pour ainsi dire, changé d'apparence au point d'être presque méconnaissable; et l'on n'y retrouve plus, au lieu d'un être agissant toujours par des principes certains et invariables, au lieu de cette céleste et majestueuse simplicité dont son auteur l'avait empreinte, que le difforme contraste de la passion qui croit raisonner et de l'entendement en délire”. Quanto à imagem platônica, cf. República X, 611 c-d: a alma, após muitos desvios, “se assemelha ao deus marítimo Glauco, cuja antiga (ρχαίαν)  natureza pode dificilmente ser percebida por quem olha para ele agora, porque as partes originais (παλαι) de seu corpo estão quebrados e mutilados e apertados de todos os modos pelas ondas, e outras partes se apegaram a ele, pedaços de conchas e pedras do mar, de tal modo que ele se parece mais com uma fera do que ele foi na natureza (στε παντ μλλον θηρί οικέναι οος ν φύσει) – tal é, eu digo, nossa visão da alma batida por males incontáveis”.  Uso a edição do Projeto Perseus. Noto a presença, nos dois textos, moderno e antigo, da ferocidade como elemento.
[42] Para o tema, cf. Paganini, Gianni: Skepsis, le débat des modernes sur le scepticisme, Montaigne, Le Vayer, Campanella, Hobbes, Descartes, Bayle (Paris, Vrin, 2008).
[43] Paganini, op.cit. página 94 e 95.
[44] Em Pascal, a dúvida é perigosa para os governantes que enganam para obter obediência. “O que poderia ocorrer se o povo descobrisse que as leis costumeiras, das quais ele admite a justiça, nada mais são na realidade a não ser regras convencionais a que se acostumou gradativamente?” L. Thirouin, Le hasard et les règles, le modèle du jeu dans la pensée de Pascal (Paris, Vrin, 1991), página 50. “A pretensa ordem estabelecida parodia a ordem, sendo bem justamente qualificada de ‘loucura’ ou ‘vaidade’”. (idem, página 84). Como em Platão, a lei escrita não é  séria, mas é um jogo. “Imaginamos Platão e Aristóteles vestidos como pedantes. Mas eles eram gente honesta e, como os outros, riam com seus amigos. Quando se divertiram ao fazer suas Leis e sua Política, o fizeram jogando. Era a parte menos filosófica e menos séria de sua vida (…) Se escreveram sobre política, era como se precisassem regular um hospital de loucos. E se fingiram que o assunto era importante, é porque sabiam que o doidos a quem falavam pensavam ser reis ou imperadores. Eles entraram em seus princípios para moderar sua loucura, levando-a ao mal menor” (Pensées).  Pascal recorda as técnicas médicas para o tratamento da loucura na Idade Média e na Renascença. Cf. Brabant, Hyacinthe : “Les traitements burlesques de la folie aux XVIe et XVIIe siècle”in Folie et déraison à la Renaissance, Colloque International, (Buxelles, Editions de l ‘université de Bruxelles, 1976), página 75 e seguintes.
[45]  O livro mais instigante sobre o movimento de censura e de auto-censura que foi imposto ao filósofo da Razão Pura foi publicado pelo professor Domenico Losurdo. Cf. Censura e compromeso nel pensiero politico de Kant (Napoli, Bibliopolis, 1983). 
[46] “O método específico do ensino em filosofia é zetético, como o nomeavam os antigos, ou seja, ele é um método de pesquisa. E apenas numa razão exercitada ele se torna, em alguns domínios, dogmático, ou seja, derrisório”. I. Kant, Anúncio do programa de curso de I. Kant no semestre de inverno, 1765-1766, trad. francêsa de M. Fichant (Paris, Vrin,1973 ) páginas 68-69.
[47] “O antissemita” diz Jean Paul Sartre, “foge de sua responsabilidade como foge de sua própria consciência; e, escolhendo para a sua pessoa a permanência mineral, ele escolhe para sua moral uma escala petrificada de valores”.  O militante, esteja ele na base ou no alto da sociedade e do Estado,  ao “aderir ao antissemitismo, não adota apenas uma opinião, ele se escolhe como pessoa. Ele escolhe a permanência e a impenetrabilidade da pedra, a irresponsabilidade total do guerreiro que obedece seus chefes, mas ele não tem chefe…o judeu, aqui, é apenas um pretexto, em outro lugar serão usados o negro, em outro o amarelo” , Réfléxions sur la Question Juive (Paris, Gallimard, 1954) páginas 31 e 63.

[48] Schmitt se refere, em texto escrito para servir de resposta à uma pergunta a ele enviada pelo Dr. Robert W. Kempner. A pergunta? “Porque os Secretários de Estado seguiram Hitler?”. Resposta de Schmitt: “a burocracia ministerial alemã, proveniente dos mais altos graus da carreira empregatícia (…) expoente típico do estrato decisivo da burocracia alemã, que em 2933 se colocou, sem resistência digna de nota, ao serviço de Hitler. Para aquela burocracia ministerial (…) a legalidade ainda não era o simples oposto da legitimidade, mas uma forma de manifestação desta última”. Schmitt, Carl : “Il problema della legalità” in Le categorie del ‘politico’(Bologna, Il Mulino, 1972), página 279. Modo fácil e muito elegante (Schmitt é sempre elegante, adiantando teses tremendas, pelas quais as vítimas pagaram) de jogar sobre a burocracia alemã a culpa do Holocausto e de outras ações genocidas. As quais foram justificadas antes mesmo do Terceiro Reich, com o uso frio da razão, por Schmitt e seus pares. Cf. Stolleis, Michael : Public Law in Germany, 1800-1914 (Oxford, Berghahn Books, 2001) e The Law under the Swastika: Studies on Legal History in Nazi Germany (Chicago, University Press, 1998).
[49] “Não temos de lidar com o nacional-socialismo e seus crimes hediondos, nem com as atrocidades, nem com a exumação do passado, nem com a justa indignação das vítimas –esses são todos fenômenos situados na continuidade e causalidade da História; nosso problema, porém, é a condição espiritual de uma sociedade em que o nacional-socialismo pôde chegar ao poder. Então, o problema não são os naciona-socialistas, mas os alemães, entre os quais personalidades do tipo nacional-socialista podem tornar-se  socialmente representativas e podem funcionar como representantes, como políticos, como chanceles do Reich, etc”. Voegelin, Eric : Hitler e os Alemães (São Paulo, E Realizações Ed.2008), página 106. “O antissemitismo”diz também Sartre, “é a expressão de uma sociedade primitiva, cega e difusa, que subsiste, latente, na coletividade legal” Refléxions sur la question juive, ed. cit. página 84.
[50] “Os 43 banqueiros e industriais alemães condenados como criminosos de guerra por seu apoio à ítica nazi (Relatório da Comissão americana Kilgore, 11 de outubro de 1945) foram anistiados, liberados, e postos à frente da economia alemã” (Adenauer na trilha de Hitler, Cahiers internationauxm número 53), citado por Richard. Lionel : Le nazisme et la Culture (Paris, Ed. Complexe, 1988) página 162, nota 3). Sobre o tema, cf. Vincent, Marie/Bénedicte (ed.) : La dénazification (Paris, Perrin, 2008). Para todo o assunto, a obra magistra de Saul Fridländer : L'Allemagne nazie et les Juifs ; v.1, ( Paris, Le Seuil, 1997).  O segundo volume foi editado também pela Seuil em 2008. O livro deve sair em tempo breve, no Brasil, pela Ed. Perspectiva de São Paulo.
[51] São interessantes as reflexões de Tercio Sampaio Ferraz, num exercício de autobiografia de seu pensamento jurídico  sobre a distinção entre dogmática e zetética : “Viehweg (…) afirmava que ambas eram modos de saber e não métodos, eram modo de invocar ou focar o saber humano (…) Eu começava a perceber com certa clareza que o que se chamava de dogmática juridica tinha relação com o que Viehweg estava chamando de zetética, e isso me obrigou a repensar a filosofia do direito (…) não mais em termos de uma reflexão externa sobre o direito mas uma reflexão que acabava interferindo no próprio direito.” In Formalismo, Dogmática Jurídica e Estado de Direito-Um debate sobre o Direito Contemporâneo a partir da obra de Tercio Sampaio Ferraz Jr, Caderno Direito GV, v 7, n 3, maio 2010, página 145 e seguintes.. Como limite, podemos evocar a crítica de Francis Bacon ao empírico-formiga, que vai de caso a caso, acumula casos e não se eleva à síntese, ao sistema. Como correção do sistemático, o intelectual aranha, o estilo tópico é importante, mas não basta quando se trata de pensar complexos de fatos e normas.
[52] Seria preciso efetivar uma análise das elites universitárias, religiosas, econômicas, judiciais, políticas. As teses sobre este setor, a sua eficácia técnica em detrimento do ideário democrático, levaram ao genocídio. Sartre fala da “ideologia da elite”, resultado “de um grupo de dominantes tecnopolíticos, de sábios positivistas, filosófos funcionários. A história tendo feito da ciência orientada para a Verdade uma potência da qual ‘os homens comuns’ se apropriaram (com o fundo humanista da Luzes) em grande prejuízo dos que dominam mas eram incautos, estes últimos compreenderam então que ela era uma eficaz ‘função social’. Eles precisaram tomá-la nas mãos e reorientar esta busca da Verdade contra o próprio povo. Como ? Fazendo com que os filósofos funcionários produzissem em compensação um Verdadeiro informe: o povo guardou assim seu ‘anel’tradicional (o Verdadeiro), e os dominantes agarraram a potência científica, doravante reduzida à produção de saberes. Desde então, o povo, berr(a)ndo com certeza, recomeçou a buscar ‘nos costumes’, ‘nos monumentos’, etc. tateando, as causas de seu mal e de suas dores sem nunca chegar ao alvo, pois ele é abusado por esta Verdade totalmente imprópria para fazê-lo se apropriar de sua condição. A ideologia da Elite, em suma, iria preencher sua função ilusionista”. Barot, Emmanuel : Aux racines de l’idéologie in www.univ-tlse2.fr/philo/IMG/.../BAROT_Aux_racines_de_l_ideologie.pdf  Para as teses de Mosca, Schumpeter e outros, cf. Parry, Geraint : Political Elites (New York, Allen & Unwin, 2005, primeira edição 1969).


[53] Gigante, Marcello: Scetticismo e Epicureismo, ed. cit. páginas 223-224.
[54]  MacIntyre, A. : After Virtue–A Study in Moral Theory (Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1984).
[55] Bobbio. Norberto : “In praise of La Mitezza” in Ricoeur, Paul (Ed.)  : Tolerance between Intolerance and the Intolerable (Oxford, Berghahn Books, 1996) página 5
[56] Romano, Roberto : “Kant e a Aufklärung”in Corpo e Cristal, Marx Romântico (RJ, Guanabara Ed., 1985), página 64 e seguintes.