Antônio Ribeiro de Almeida Júnior; Oriowaldo Queda
Revista Educação & Cidadania 2004, vol.3, n1-2, 57-69
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude da lei; (...) ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”
(Constituição, 1988)
O trote não é, nem nunca foi, uma questão menor ou localizada, como geralmente se pensa. Ao contrário, o trote é um problema social grave . Como tal, o trote tem merecido a atenção de parlamentares brasileiros, quando propõem a criminalização do mesmo. Projeto de lei semelhante, considerando o trote como delito, está sendo apresentado na França (Hirigoyen 2002:218-219). Mas, mesmo estas propostas não atingem o núcleo das questões. Imaginar o trote como um problema apenas pelos danos causados pela sua excessiva violência é um equívoco sério e perverso. Não são apenas as violências físicas que devem ser consideradas, mas também a disseminação e o reforço de preconceitos, os efeitos na formação intelectual e moral, no convívio dentro da universidade, na formação da personalidade e as conseqüências disto tudo para o exercício profissional.
O trote é um problema resultante de processos sociais (des)educativos . Este aspecto corresponde ao maior silêncio a respeito do trote. Claro que a violência também é silenciada, nem tanto pela mídia que a acha interessante como mercadoria, mas pelas instituições onde o trote ocorre. Para a mídia, os vestibulares, o trote e seus conexos têm um período privilegiado de vendas durante o ano, à semelhança do carnaval ou da páscoa.
No restante do ano, a questão quase desaparece. Se entendêssemos a relação entre a existência do trote e os processos (des)educativos subjacentes, não haveria porque tratar apenas da violência do trote ou do momento em que ela ocorre. Numa sociedade de cidadãos educados, não haveria espaço para a manifestação de algo como o trote.
O que precisa ser discutido não é o trote isoladamente, mas ele dentro da Universidade. Há reciprocidades entre o trote, a pesquisa, o ensino e os comprometimentos da Universidade com as grandes corporações. Na mídia, a discussão sobre o trote não remete ao contexto social e histórico. Nela, o trote parece querer apenas provocar o temor e a preocupação à semelhança do que ocorre com as mais variadas manifestações de violência. Nela ainda, o trote é tratado como algo capaz de prender a atenção, de manter a audiência. Isto quando ele é notícia, pois as imagens dele podem também ser utilizadas como argumento de venda, como publicidade. Neste caso, a (des)educação pode ir ainda mais longe. Às vezes, uma boa capacidade para tratar o trote como notícia não se reflete num manejo adequado das imagens do trote como publicidade. A EPTV (Rede Globo Campinas) tem realizado coberturas jornalísticas apropriadas sobre o trote, mas, ao mesmo tempo, patrocina o site: Virando Bixo (voltado a tirar dúvidas de assuntos relacionados ao vestibular). Entrar na universidade não é o momento de virar “bicho”, mas de desenvolver as capacidades humanas dos alunos. Capacidades que o trote tenta aniquilar.
O trote é um reflexo de comportamentos sociais que banalizam a violência. No caso da nossa sociedade, sabemos que estes comportamentos são generalizados e podemos esperar que, em relação ao trote, eles se manifestem também de modo geral. Imaginar que o trote e a sua violência são problemas de uma ou outra escola acaba encobrindo os fatos. Esta despreocupação manifesta-se, por exemplo, na falta de tratamento da violência nas escolas de ensino fundamental e médio que, como o trote, é também pensada como menos importante .
Efeitos sociais da mídia
Está longe de existir um consenso sobre os efeitos psicológicos e sociais da mídia. Seguindo as proposições de Paul Lazarsfeld , muitos autores acreditam que estes efeitos são relativamente pouco importantes e que o centro das questões está na interpretação das mensagens. Eles afirmam que, para aqueles que produzem as mensagens, não é possível controlar a interpretação que os receptores farão delas. Por este motivo, vêem com ceticismo qualquer crítica sobre a mídia que aponte para a manipulação ou para uma influência marcante desta sobre a sociedade. No entanto, há um grupo significativo de autores que acredita que a mídia produz vastos efeitos sociais e psicológicos. Eles chegam mesmo a afirmar que, pela sua onipresença, ela é capaz de criar o ambiente cultural no qual estamos imersos. Embora os efeitos das mensagens não possam ser completamente controlados, estes não são totalmente imprevisíveis ou desconhecidos. Para alguns destes autores, haveria como que uma espécie de naturalização dos valores pregados pela mídia .
Ao aceitar este segundo ponto de vista, aceitamos também que a mídia tem enorme impacto sobre a educação dos mais jovens. As crianças permanecem longos períodos escutando rádio, música, lendo revistas e jornais, utilizando vídeo-games ou navegando na internet. Mas, é a televisão que merece maior cuidado: pesquisa realizada na Inglaterra revelou que as pessoas assistem a ela por cerca de 25 horas/semana (O´Sullivan, Dutton & Rayner 1998:4). Ela pode ser considerada como o principal veículo educacional da atualidade. Mas, qual é o seu currículo? Qual é o currículo oferecido pela mídia em geral?
Até certo ponto, a mídia é plural, refletindo as divisões de interesses e visões de mundo dos atuais donos do poder e da riqueza. Mas, a propriedade dos grandes veículos de comunicação está concentrada em poucas mãos. Não é difícil perceber que existe seleção ideológica dos profissionais de mídia. As grandes empresas e os governos também pressionam para que somente aquilo que lhes interessa, ou pelo menos aquilo de que eles não discordam, venha a público .
De qualquer forma, é possível notar que a televisão e a mídia, de uma forma geral, oferecem uma dieta pesada de violência para os telespectadores (Gerbner & Gross 1976). Pior ainda, em muitos casos, a violência é apresentada como algo “engraçado”. Ridicularizar pessoas, principalmente mulheres, negros, índios, pobres, idosos e outras minorias, também é apresentado como algo “divertido” (Queiroz 1995). É freqüente que aquele que ridiculariza seja colocado numa posição de destaque. Ele pode ser mostrado como alguém mais inteligente e ou mais bem humorado.
A propaganda tornou-se um dos mais poderosos elementos da (des)educação da população. Além de vender produtos, ela propõe valores, instiga estilos de vida, divulga comportamentos, sugere o que deve ser considerado normal e o fora do normal (Kilbourne 2000; Jhally 1990; Williamson 1998), etc. Por meio de imagens, pode-se insinuar que o amor e a sexualidade são, de fato, formas de exercício de poder, como se pode também insinuar que uma atitude sádica em relação ao sofrimento alheio é algo normal. Podemos citar as Vídeo-cassetadas, as Pegadinhas, Todos contra um e Big brother, como modelos deste sadismo virtual. Tal sofrimento pode ser colocado na condição de entretenimento ou de comédia, entre outras possibilidades.
Analisar o tratamento que a mídia tem dispensado ao trote é oportuno e relevante. Principalmente, porque, geralmente, este não tem sido pensado como problema social. Para muitos, se ele causa algum transtorno, isto se deve aos seus excessos e não as suas características próprias. A postura da mídia é ambígua e, em certos momentos, acaba estimulando o trote.Os colégios, os cursinhos e os seus publicitários divulgam imagens do trote de forma irresponsável e incompatível com a promoção da cidadania. Nas propagandas, o trote é mostrado como um momento de felicidade, como símbolo do sucesso individual no vestibular. Os atos de violência são convertidos em momentos de alegria. Mostram-se fotos de alunos com os cabelos raspados, com o corpo pintado, fazendo pedágio, etc. com a maior naturalidade, sem nenhuma crítica. Muitos alunos do colegial e do cursinho acabam criando uma expectativa favorável em relação ao trote, sincronizando suas emoções, como é proposto por Paul Virilio (Folha de S. Paulo 06/04/03). Ele passa a ser visto como uma comemoração legítima, como algo que deve ocorrer de uma forma ou de outra. Portanto, o resultado é uma naturalização do trote, uma naturalização da violência. Esta naturalização é, talvez, a violência fundante.
Quase todos admitem que a entrada na universidade deve ser comemorada. Por isto, o trote pode aparecer como um fenômeno natural, como a chuva e o vento. Existe de per si, não tem origens nem causas . É como algo que faz parte da natureza do mundo e, por isto, não pode ser modificado. Nada disto é verdade. Ao contrário, na realidade, o trote é uma construção social que se funda em formas de interpretar o mundo e as relações entre as pessoas.
É preciso, portanto, refletir sobre o que está sendo comemorado e em qual situação. Os alunos que ingressam na universidade, e que nela devem se integrar, acabaram de passar por um processo seletivo onde a competição, o individualismo, a ausência de solidariedade são fortes e exigidas como condição do sucesso. Neste cenário, passar no vestibular torna-se uma vitória extraordinária e a comemoração uma conseqüência natural, que leva ao esquecimento da realidade de uma competição entre desiguais. Neste contexto, a comemoração parece ser inevitável. Ela assume um caráter de exorcismo da realidade social. A comemoração do sucesso individual no vestibular leva ao esquecimento do fracasso social que este tipo de seleção implica.
Pior ainda, quando fatos graves ocorrem, alguns órgãos de mídia têm muita dificuldade para realizar uma cobertura minimamente correta sobre o assunto. Explorá-se aspectos superficiais do problema. Como se fosse possível, tenta-se promover uma falsa distinção entre o “trote violento” e a “brincadeira”. Esquece-se também que a maior parte da violência do trote ocorre num contexto privado. Fora dos olhos do grande público e, portanto, em condições difíceis de apurar, dada a cumplicidade entre os seus praticantes. Em paralelo, ao trote visível, geralmente considerado “brincadeira”, há um trote invisível muito mais perverso. O mais comum é que aquele que julga praticar ou apoiar o trote “brincadeira” torne-se cúmplice daquele que pratica o “trote violento”, encobrindo seus atos.
A própria idéia de que há um trote “brincadeira” deve ser questionada. Será que ter o cabelo raspado, quando não se quer, é uma “brincadeira”? Será que ter o cabelo raspado várias vezes durante o curso de graduação, como vem acontecendo em algumas escolas, é uma “brincadeira”? Será que ter o corpo pintado durante meses seguidos é uma “brincadeira”? Será que ter um pincel atômico enfiado no ouvido é uma “brincadeira”? Será que um pedágio que coloca na mesma condição alunos bem situados socialmente e mendigos é uma “brincadeira”? Será que arrecadar dinheiro para bebedeiras é uma “brincadeira”? Será que expor alunos ao risco de atropelamento é uma “brincadeira”?
Claro, em alguns momentos, a mídia acerta e faz críticas conseqüentes ao trote como nos artigos: “Vagabundagem universitária começa no trote” (Folha de S. Paulo 25/02/97); “A covardia do trote” (Folha de S. Paulo 18/02/98); “Trote e selvageria” (Folha de S. Paulo 05/02/98); “A punição do trote” (Folha de S. Paulo 07/03/98); “Trotes : o afogamento do espírito” (Folha de S.Paulo 22/04/99); “Escárnio, ironias e videoteipe” (Revista Veja 07/07/99); “Tolerância zero, o remédio para o trote” (Revista Veja 21/04/99). Mas, logo em seguida, comete deslizes como nos artigos: “Trote e brutalidade” (O Estado de S. Paulo 23/04/99); “Até pais participam do trote na USP” (O Estado de S. Paulo 19/02/02).
O fato é que, sem pesquisa mais acurada, nenhuma lista deste tipo poderia fazer justiça aos órgãos de imprensa. No livro O calvário dos carecas, Glauco Mattoso reconhece que o jornal O Estado de S. Paulo tem travado uma extensa luta contra o trote (Mattoso 1985:77), enquanto nas referências acima, este jornal aparece, nos dois artigos, representando uma cobertura incorreta. O mesmo ocorre com relação à revista Época, à Rede Globo e ao jornal Folha de S. Paulo dos quais alguns equívocos serão mostrados abaixo. Em alguns momentos, estes veículos de comunicação têm produzido matérias corretas sobre o trote para, logo em seguida, voltarem a mostrar complacência para com ele. O mesmo também acontece com outros veículos de comunicação que não estão citados aqui.
Existe uma enorme ambigüidade em relação ao assunto. Pouca gente é capaz de discernir o adequado do inadequado. Muitas vezes, o repúdio ao trote, mostrado nos editoriais, não é coerente com o conteúdo das reportagens sobre o trote. Há também colunistas regulares e contribuições individuais que acabam abordando o assunto com maior ou menor propriedade.
Há ainda as matérias que tratam do assunto indiretamente, como a do TV Folha que será abordada neste artigo, e as propagandas que utilizam imagens do trote. Nestes dois últimos casos, em geral, os problemas são sérios e as distorções da linha editorial são grandes. Outras vezes, os próprios editoriais deslizam e acabam aceitando parte do trote como “brincadeira”. As razões para esta discrepância precisam ser investigadas. Temos como hipótese que tal discrepância revela a falta de formação cidadã dos jornalistas.
Na realidade, faltam pesquisas científicas e investigações jornalísticas sérias. Há muito mais a descobrir do que aquilo que aparece na mídia. Há instituições de ensino onde o trote é severo, há décadas, sem que quase nada tenha sido publicado a respeito. As publicações concentram-se em torno dos feridos e mortos, deixando de lado a violência cotidiana e menos espetacular de certas práticas do trote. Nestes casos de feridos e mortos, onde a dúvida moral não tem muito espaço, a mídia tem cumprido relativamente bem o seu papel, classificando estes atos como violentos. Outras vezes, a cobertura do trote está preocupada, quase que exclusivamente, com esta violência e com o caráter sensacionalista da mesma. O pânico de pais, mães e outros interessados, torna-se instrumento de vendas.
Mas, em relação à violência mais freqüente, que promove o ambiente social no qual os mortos e feridos aparecem, a mídia está longe de realizar um trabalho sequer razoável. Muitas vezes, ela prefere qualificar esta violência como “brincadeira”. E, por isso mesmo, como algo aceitável ou mesmo desejável. No entanto, se bem investigada, esta violência cotidiana e não espetacular talvez se revele tão grave quanto aquela que produz feridos e mortos. Para isto, que tal responder, com precisão, as seguintes perguntas: quais são os custos psicológicos e sociais da exposição de jovens às atividades do trote? Quais prejuízos acadêmicos o trote causa? Em função dele, há desistências de alunos, reprovações, notas mais baixas? Que tipo de imaginação social o trote estimula? Há relações entre trote e autoritarismo? Quais são as vítimas mais freqüentes do trote? O trote é uma forma de exclusão social? Em outras palavras, os mais afetados são os socialmente mais fracos, pobres, mulheres, negros e outras minorias? Quais as relações entre trote e preconceitos? Quais os efeitos do trote na formação moral dos alunos? Quem são os principais trotistas entre os alunos? E entre os professores? Que tipo de mentalidade o trote revela? Quais são os mitos que os trotistas pregam para justificar seus atos? Os ingressantes são realmente livres para recusar o trote? A aceitação do trote não se assemelha à aceitação da escravidão e, por isto, deve ser proibida como é proibida a aceitação desta?
Em nosso livro Trote na ESALQ, mostramos que o trote ocorre numa relação complexa entre a instituição e o aluno e não numa mera relação aluno – aluno. Em nossa opinião, o trote é um ponto de partida para que o aluno incorpore a cultura da instituição de ensino, seus valores, sua ideologia, etc.Para a mídia, seria necessário debater: quais são as posturas adequadas no tratamento do trote? Como utilizar imagens do trote em veículos de grande circulação? Quais os efeitos das imagens atualmente em uso sobre os adolescentes? Como fazer publicidade de colégios, de cursinhos e de produtos para universitários, sem mostrar o trote como algo natural e alegre? Quais outras imagens poderiam ser empregadas para representar a entrada na universidade? Como fazer campanhas publicitárias para combater o trote? Como noticiar o trote sem cair na ambigüidade?
Muitas vezes, na cobertura da mídia, fica a impressão de que a violência espetacular é um raio num céu azul. Coisa de um ou outro pervertido. Fato isolado. Não se desvenda suficientemente a relação entre o trote visível e o invisível. Não se desvenda a relação entre a violência cotidiana e a que produz feridos e mortos. Há muito mais a revelar sobre o trote e sobre a formação dos jornalistas.
Alguns dirigentes universitários também foram trotistas durante sua graduação e não vêem maiores males no trote. Ao contrário, sentem-se favorecidos pela existência deste. Sentem que os alunos trotistas, que precisam de cobertura para atuar, são aliados na luta pelo poder dentro da universidade. Apesar dos méritos acadêmicos que possam ter, às vezes, este dirigentes carecem de maior sensibilidade e formação humanística. Por isto, tendem a encobrir a violência existente nas unidades sob sua administração. Em alguns casos, no exercício de suas atividades cotidianas dentro dos campi, acabam aliando-se aos trotistas. O que queremos dizer é que os dirigentes das universidades precisam manter fortes vínculos com o corpo discente. Não apenas para os assuntos propriamente acadêmicos, mas também para a elaboração de atividades extra-curriculares (atividades culturais, de extensão, congressos, etc.). Em certos campi, são os alunos trotistas que ocupam os órgãos de representação discente, com o apoio e orientação dos trotistas que chegaram à docência e mesmo ao topo da hierarquia universitária.
O trote pode ser entendido como uma porta de entrada para formas perversas de corporativismo. Espécies de “máfias profissionais” recrutam participantes por meio do trote. Maus alunos são premiados pela sua submissão ao trote, enquanto bons alunos acabam excluídos por terem resistido a ele. Talvez, por isto, o trote seja tão persistente. Os ataques a ele não se dirigem aos alvos corretos. Ao atacar o trote, devemos ter sempre em mente que os alunos são apenas soldados de uma hierarquia que conta também com generais.Em muitos casos, o trote funciona como um tipo de teste moral ou de sua falta. Aqueles que são dotados de princípios éticos e humanos mais arraigados, e por isto não querem se submeter ao trote, acabam sofrendo processos de exclusão mais ou menos violentos, que ocorrem dentro da escola. É como se as corporações de trotistas não quisessem os alunos éticos. Talvez porque eles sejam perigosos para os trotistas. Talvez sua honestidade e ética representem um risco. Mas, tal tipo de consideração e de investigação raramente aparecem na mídia. O que se vê, em muitos casos, são argumentos triviais e sem nenhuma profundidade.
Recentemente, a Rede Globo retratou a vida na universidade por meio da novela “Coração de Estudante”. Nesta novela, houve várias cenas de trote e da relação dos ingressantes com os trotistas. A violência das cenas pode ser constatada pela foto abaixo publicada na página 7, do TV Folha, do dia 24 de fevereiro de 2002. Na foto, podemos ver uma garrafa de bebida nas mãos de um estudante ao fundo. Em muitas ocasiões durante o trote, o consumo de álcool é imposto aos alunos ingressantes. Certamente, este consumo está na raiz de muitas violências. Durante seus cursos universitários, muitos alunos consolidam tendências anteriores para o consumo exagerado de bebidas alcoólicas ou adquirem esta forma de doença. Em nossa pesquisa, dentro da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), constatamos que 82% dos ingressantes consideram como uma forma de violência as pressões para a ingestão de bebidas alcoólicas.
Nesta foto, a Folha de S. Paulo mostra o trote como algo muito divertido. Tudo parece uma brincadeira. Nela, o ingressante está imobilizado, com os braços e as pernas presos por outros estudantes. Ele tem no rosto uma expressão que está entre a dor e o prazer. Situação característica do masoquismo/sadismo . Em relação ao trote, não se leva a sério o problema do masoquismo/sadismo. Por que a vítima se submete? Por que reproduz o mesmo comportamento no ano seguinte? Como a instituição utiliza o sadismo e o masoquismo a seu favor?
Geralmente, as escolas de jornalismo e outras ligadas ao ramo de comunicação são consideradas como promovendo uma formação humanística forte. Este tipo de escola tende a ter um trote “mais leve”. Pode-se pensar, muitas vezes, que por isto os profissionais de mídia encarem o trote como um problema menor e relativamente inofensivo. Faltaria a eles a experiência com o “trote violento”. Mas, é provável que as coisas não se passem deste modo. Devemos perguntar pela qualidade da formação humanística que os alunos de comunicação e jornalismo recebem. Nestas escolas, também devem estar presentes a mesma busca de profissionalização que existe em outras escolas. Esta profissionalização pode muito bem significar apenas a aquisição de formação técnica. Isoladamente esta formação levaria a um tipo de profissional cuja atividade tende a reproduzir as injustiças sociais pré-existentes, sem muitos questionamentos. Um profissional profundamente insensível em relação aos problemas vinculados à violência e, especialmente, insensível para com a violência praticada pelas camadas mais abastadas da população.
Seria bom que a formação destes profissionais levasse a uma reflexão séria sobre os problemas do trote. Eles vêm de longa data e as soluções apresentadas como novidades já resultaram em fracassos no passado. Como é o caso também de muitos outros assuntos que têm sido tratados pobremente pela mídia.
Quando expostos a assuntos polêmicos que envolvem valores, buscando uma pretensa e inalcançável imparcialidade, muitos jornalistas são levados a dar espaço para defensores de atitudes que agridem princípios da sociabilidade mais básica . É provável que os mesmos problemas de sensibilidade e de formação, que levam às práticas trotistas, manifestem-se nestas dificuldades dos jornalistas para cobrir o trote e outros assuntos polêmicos. A imaginação social fica aprisionada e o caráter sistêmico dos fenômenos e de seus efeitos não é revelado.
Mídia – USP e trote: outras tragédias se anunciam
Há também uma série de perguntas a respeito da instituição universitária, pois em nossas pesquisas chegamos à convicção de que o trote é uma relação entre a instituição e seus alunos (Almeida Jr. & Queda 2003). Na instituição investigada, o trote vem de longa data? Como age esta instituição com relação ao trote? Ela pune efetivamente? Ela realiza campanhas efetivas contra o trote? Ela de fato educa seus alunos para a cidadania? Quais os resultados destas ações? Elas levam à permanência do trote? Em caso positivo, o que mantém o trote? Durante o trote, os ingressantes são solicitados a reverenciar a instituição? Qual a relação entre esta louvação e o grupo trotista? Quem não louva a instituição torna-se, de algum modo, excluído ou ameaçado de exclusão? Há professores que defendem alguma forma de trote, o trote “brincadeira”, por exemplo? Seu ensino é técnico, profissionalizante, um mero adestramento, despreocupado com a formação para a cidadania?
A própria mídia interna a Universidade não é capaz de tratar o trote de modo adequado. Esta mídia que deveria ser concebida com fins educacionais e, portanto, como espaço para a reflexão dos alunos, não se comporta como tal no caso do trote. As campanhas a respeito do trote na USP são um exemplo assombroso desta distorção. Nelas, podemos perceber o desprezo que o assunto desperta em certos grupos dentro da Universidade e como isto leva à expressão de preconceitos inaceitáveis. Na campanha de 2003 da USP, pretensamente contra o trote, foram utilizadas fotos que revelam o espírito e as ações que, “incompreensivelmente”, resultam na manutenção do trote, quando este já se encontra proibido por lei.
Em 1999, o afogamento do estudante de medicina da USP Edison Tsung Chi Hsueh causou enorme trauma. Houve muita pressão para que fossem tomadas atitudes para coibir o trote. Em meio a estes esforços, cinicamente, redescobriu-se o óbvio: o trote envolve inúmeras práticas extremamente violentas. Tratava-se de cinismo porque, há muito tempo, sabia-se a respeito desta violência. Principalmente, os membros da comunidade acadêmica sabiam dela. Afinal, muitos deles experimentaram o trote na própria pele, quando não o impingiram à pele alheia. Mas, o cinismo não se restringiu a isto, ele procurou camuflar que todo o trote é, em essência, violento, afirmando que existem “brincadeiras” e que estas devem ser estimuladas.
Passados mais de quatro anos, os problemas que causaram a morte de Edison continuam existindo dentro da USP e, em alguns casos, eles até se agravaram. As medidas tomadas, como a proibição do trote pela portaria GR nº 3154 do Reitor da USP, são claramente insuficientes. As campanhas educativas são pífias. Elas fracassam por não produzirem argumentos e ações contra os alunos trotistas e contra o trote, reforçando a posição destes. São campanhas guiadas pelo medo de enfrentar as questões e servem também para aliviar as consciências. As ações parecem calculadas para melhorar a imagem da universidade e não para resolver o problema do trote. A verdade é que os trotistas continuam impunes. Nada que realmente possa acabar com o trote é feito. A preocupação em esconder as mazelas é maior do que a preocupação de encontrar soluções reais para o problema.
Há escolas onde o trote envolve inúmeras violências. Todos os anos ocorrem vários incidentes sérios, sem que ações mais fortes de educação ou de repressão tenham lugar. Afinal, o trote está proibido. Os próprios dirigentes da universidade julgam ter problemas mais relevantes e urgentes para resolver, isto quando consideram que o trote é um problema, pois há aqueles que continuam acreditando que o trote é uma “tradição” ou uma “brincadeira”, ambos “saudáveis”. Há ainda os “mais sofisticados intelectualmente” que continuam acreditando que os “ritos de passagem” carregados de violência são uma necessidade, justificando “cientificamente” a existência do trote. Por exemplo, entre os
Postais e Manual do Calouro da Campanha Veterano Consciente Trata Bixo Como Gente – USP 2003
Criação dos cartões postais: Daniela Queija, George Amaral, Sandra T. Abe, Milla Orlandi
Você não precisa estudar Você não precisa estudar psicologia direito para defender para entender o seu bixo
Seja o melhor amigo do seu bixo Você não precisa estudar medicina
para cuidar do seu bixo
professores, é comum a crença de que o trote é um importante auxiliar no processo de “amadurecimento” do aluno, ajudando-o a romper vínculos familiares infantilizantes. Para promover esta ruptura, o uso de um pouco de violência não seria algo que se poderia recriminar. Acreditamos que o trote dificulta os processos reflexivos que provocariam, eventualmente, a maior independência e estabilidade psicológicas.
O Jornal da USP tem dado um show de insensibilidade na cobertura dos eventos relacionados ao trote. Na edição de 25/02 a 03/03/02, ele trouxe como título de capa a frase “Uma Semana de Barulho Cultural” (sic). Ao lado desta frase, há a foto de um aluno de primeiro ano pintado como se ele fosse um quadro psicodélico, emoldurado por traços. A sugestão é de que o trotista responsável por tal violência seria, na verdade, um artista sensível, produzindo cultura. Na contracapa da mesma edição, há uma foto de um aluno (com traços asiáticos) mergulhando numa piscina. Só para lembrar, Edison era um aluno de ascendência chinesa e morreu num trote semelhante ao exposto na foto. A diferença estava no tamanho da piscina, bem menor na foto. Parece ser característico da mentalidade trotista querer estabelecer distinções claras e fáceis entre violência e brincadeira, como as diferenças entre os tamanhos das piscinas. Nesta mesma edição, várias práticas humilhantes e perversas do trote são mostradas como “brincadeiras” e seus praticantes tornam-se heróis do “bom trote”.
Fotos Jornal da USP
Os que defendem o trote, em suas variadas versões, julgam poder silenciar quando críticas ocorrem. O silêncio também pode revelar que a crítica não atingiu o alvo com a força necessária, mesmo quando ela é pertinente. Contudo, quando o ataque ao trote ameaça o núcleo de crenças instaladas no seio da direção universitária, reações intempestivas podem ocorrer. Em resposta ao editorial “Trote na USP” da Folha de S. Paulo de 05/03/03, a Pró-Reitora de Graduação da USP, professora Sonia Teresinha de Sousa Penin, assim se manifestou: “Compromissada desde sempre com a luta contra o trote violento, a Universidade de São Paulo agradece a manifestação desse jornal assim como outras manifestações que possam contribuir para debelar a violência e a cultura de violência existentes na sociedade brasileira. Mas encarece a necessidade de as informações prestadas à população reproduzirem a verdade dos fatos, bem como de não se limitarem à dimensão negativa dos atos violentos, senão de abrangerem, também e com o mesmo destaque, as ações que visam desestimular – e vêm desestimulando – a prática desses atos.” (Folha de S. Paulo 07/03/03 p. A3)
A USP tem recursos suficientes para coibir o trote, se ela assim o desejar. Mas, aparentemente, para boa parte dos dirigentes da USP, os relatos assinados pelos próprios trotistas são as únicas provas aceitáveis da ocorrência do trote. Isto é, somente se um trotista confessar seus atos mais terríveis, ele poderá ser punido. Ficamos na dúvida sobre a causa da punição. Ela se deve ao trote aplicado ou à quebra da lei do silêncio? O que seria da justiça se ela dependesse apenas das confissões dos criminosos? Fotos, filmes, sites na internet, depoimentos de vítimas, textos escritos pelos trotistas, nada disso parece suficiente para desencadear punições contra eles. As provas não faltam e não são difíceis de encontrar. Por exemplo, bastaria olhar para os “manuais do bicho”, produzidos pelos trotistas, para encontrar discursos extremamente agressivos e ameaçadores. O próprio Jornal da USP é um documento com fotos que comprovam a violência do trote. Se não faltam as provas, o que falta é a disposição e a competência para eliminar o trote, para punir os seus promotores e para educar os jovens universitários. E, no caso da mídia, falta disposição e competência para investigar e articular os argumentos contra o trote, acabando com a ambigüidade em relação a ele.
É preciso parar de propor alternativas enganosas como o “trote cidadão”, o “trote cultural”, o “trote ecológico”, “bicho também é gente” e outras formas de trote que só servem para encobrir a continuidade das práticas violentas. Se a entrada na universidade precisa ser comemorada, coisa que é questionável, devemos pensar isto fora das práticas e das palavras que caracterizam o trote. O que não acontece com o Jornal da USP e outros veículos de mídia que insistem em utilizar estas palavras. Por exemplo, na edição de 24/02 a 02/03/03 há uma reportagem como o título: a nova casa dos “bixos”. Seria a universidade uma casa de bichos? Na edição de 25/02/01, o Jornal da USP publicou outra matéria com o título: “De braços abertos para receber os bixos. Com muita festa, descontração e respeito.” Respeito que começa chamando-os de “bixos”? O erro não é casual, mas recorrente, caracterizando uma linha editorial que dá suporte ao trote e aos trotistas.
Chega de falar em doutores, veteranos, bichos ou bixos, calouros, trote, etc! Um novo vocabulário deve ser criado. Há muito a fazer. Os cursinhos e colégios devem parar de utilizar imagens do trote para se promover, como também a universidade deve afastar os trotistas das atividades de “recepção”. Uma outra imaginação sobre o ingresso no ensino superior está por ser articulada. A universidade deve ser um local da democracia e não do terror e da insegurança. O trote é uma porta de entrada para um mundo de violência que a universidade recusa-se a ver. Ele libera a agressividade, demolindo as inibições culturalmente estabelecidas, dando asas a pretensões sem razão. Roberto Romano lembra-nos que muitos jovens universitários são “movidos pela ideologia da vantagem pessoal e do soberano desprezo pelas leis e pela população.” (Correio Popular 04/03/03) O acesso a universidade parece tornar os alunos imunes às punições, em lugar de torna-los cidadãos mais responsáveis. Muita coisa está errada nesta situação e não apenas entre os alunos, mas também entre os decanos.
Quando olhamos o trote, a liderança que a USP exerce torna-se questionável, pois outras instituições têm feito muito mais para formar cidadãos. As escolas de comunicação e jornalismo precisam tratar deste assunto de forma séria, pois os profissionais de mídia precisam ser educados a respeito do trote e a respeito de outras formas de violência cotidiana.
|