quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Artigo de uma corajosa e lúcida juíza. Existem, sim, no Brasil, juízes e juízas !



São Paulo, quarta-feira, 05 de agosto de 2009



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TENDÊNCIAS/DEBATES

Abaixo a censura judicial!

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE


Esse quadro exige uma reflexão sobre o papel do Judiciário, especialmente no que diz respeito a direitos que sustentam a democracia



A SANÇÃO aplicada a padre Vieira, o silêncio, parece que está voltando à tona. Ele perdeu o direito à palavra quando questionou o modo do proceder do tribunal e suas intervenções públicas tocaram em temas considerados proibidos.

Passaram-se séculos, estamos sob a égide do Direito internacional e constitucional, mas se tornou rotineiro abrirmos jornais e descobrirmos que magistrados proíbem jornalistas de escrever sobre determinada pessoa, que a imprensa está proibida de dar informações sobre determinado fato, que não é possível a publicação de qualquer dado sobre um determinado político, que uma empresa é condenada por publicar entrevista com possível candidato, que tal livro ou jornal não pode circular, que tal manifestação pública não pode ocorrer etc.

É assustador, pois essas interdições partem do Poder de Estado que deveria garantir a Constituição Federal, que declara, em seu artigo 1º, que instituímos um Estado democrático.

Constituição que estabelece, dentre os direitos fundamentais, a liberdade de expressão, independentemente de censura prévia -esta é proibindo em termos absolutos. A liberdade de imprensa, em alguma medida, condensa outras: as de pensamento, informação e expressão.

A história desses direitos está interligada e, nos dias de hoje, é obrigatório que seja relembrada, pois indica ser a construção de um patamar civilizatório da humanidade.

A Declaração de Direitos do Estado de Virgínia, de 1776, reconheceu explicitamente a liberdade de expressão por meio da imprensa.

Em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contemplou esses direitos, estabelecendo que a livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode falar, escrever e imprimir livremente, respondendo pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos em lei.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, acolheu esses direitos e, expressamente, o direito de informação. Acrescente-se ainda o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

A Constituição Federal consagrou que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato", que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença", e que "é assegurado a todos o acesso à informação" (artigo 5º, incisos IV, IX, XIV).

Nossa Carta acrescentou ainda que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação não sofrerão nenhuma restrição, observada a própria Constituição Federal, e que nenhuma lei conterá dispositivo que possa embaraçar a plena liberdade de informação jornalística, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (artigo 220).

O Brasil viveu uma ditadura, quando a censura da imprensa e da liberdade de pensamento imperou.

Preocupa pensar que o Judiciário possa vir a cumprir o papel que era exercido pelos órgãos de repressão, usando uma poderosa ferramenta para cerceamento da liberdade de expressão, que é o acosso judicial, ou seja, a perseguição pela via judicial, consistente em pressão realizada, especialmente contra jornalistas, mediante ações judiciais, de natureza criminal ou civil, que pretendem produzir o efeito de paralisar a ação e o pensamento e gerar a autocensura.

O Estado democrático de Direito pressupõe a transparência, o debate aberto e público e a troca de informações, notadamente em relação aos poderes públicos.

Não é possível criar uma sociedade livre, justa e solidária sem o patamar da liberdade de expressão. Impedir o exercício desse direito significa retirar dos cidadãos o controle sobre os assuntos públicos e, como consequência, ceifar a democracia.

Por certo que, para a garantia da democracia, o Judiciário deverá aplicar medidas para os casos abusivos, mas a liberdade de expressão não está sujeita a censura prévia, somente a responsabilização posterior. Para tanto, a Constituição assegurou medidas para as hipóteses abusivas, como o direito de resposta e a indenização por dano moral e material ou à imagem (artigo 5º, incisos V e X).

Esse quadro está a exigir uma reflexão sobre o papel do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito a direitos que sustentam a democracia, como a liberdade de expressão, de informação e de imprensa. O papel do Judiciário é o de fortalecer e enriquecer a democracia, e não ceifá-la.

Inaceitável pensar em voltar ao tempo de abrir jornais e ler receitas ou versos de Camões.


KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito em São Paulo, cofundadora e secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.