É bom recordar que "laico" vem de laós, povo. Este último, na Grecia democrática, era soberano e desconhecia instituições a ele superiores. Após a Reforma Luterana, na qual o "laós" se tornou o sacerdote coletivo (em especial em outros ramos da mesma Reforma, não luteranos) veio a idéia, com o Renascimento da história Grega e Romana, de se instituir a soberania popular. Combatida por todos os absolutismos, civis ou religiosos, a tese da referida soberania passou a se determinar nas revoluções inglêsa (século 17), norte americana e francesa (século 18). O tom do laicismo não se deve aos democratas radicais, tanto na França quanto na Inglaterra e nos EUA. Alí, os revolucionários eram religiosos depositavam sua fé seja num Deus transcendente, nas religiões ditas "positivas" ou num Deus imanente, a Deusa Razão. Quem mais lutou pelo espírito secular, para que o Estado e a sociedade civil fossem alheios à religião dominante ou subalterna, foram os revolucionários moderados. Não se encontra moderação laica em Robespierre ou nos puritanos ingleses. Ela tem origem em Diderot e Voltaire, e nos "tolerantes", como Danton. Questões filosóficas permeiam o debate, devendo ser esclarecidos os seus pressupostos lógicos, ontológicos, jurídicos, para se falar no problema, hoje em dia. Creio que o debate deve ser travado, com respeito a todas as posições. Neste sentido, embora candente, o artigo do Dr. Livianu é exemplar. Precisamos ter, em outras ressonâncias doutrinárias, vozes que respondam com a sua objetividade, sem ataques a pessoas ou a setores sociais ou políticos. RR
Programa "Entre Aspas", na Globo News, com mediação da jornalista Mônica Waldvogel, e como interlocutor o Cardeal Odilo Scherer, já se encontra on-line em
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1098477-7823-MP+PEDE+A+RETIRADA+DE+SIMBOLOS+RELIGIOSOS+DE+REPARTICOES+EM+SP,00.html
Folha de S.Paulo - Opinião
Edição escrita - p.A-3
Edição eletrônica: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0708200909.htm
São Paulo, sexta-feira, 07 de agosto de 2009
TENDÊNCIAS/DEBATES Sagrada laicidade ROBERTO LIVIANU
POR QUE será que certas forças conservadoras têm defendido com tanta veemência a manutenção de símbolos de uma única religião em prédios públicos? Por que negar a norma constitucional que determina a separação entre Estado e religiões no Brasil? A quem interessa esse retrocesso? No ano que vem, o decreto 119-A completa 120 anos de vida. Ele significou um marco histórico, a partir do qual o Brasil optou pelo Estado laico. E determinou pela primeira vez a separação entre Estado e religiões. Por força dessa norma, cemitérios passaram a ser administrados pelo Estado e instituiu-se a figura do casamento civil. Isso aconteceu em um contexto de transformações sociais e políticas trazidas pelo novo Estado republicano -que, aliás, no ano seguinte ao decreto, adotaria a laicidade na própria Constituição Federal. A partir daí, várias questões têm vindo à tona para testar o quanto o Estado brasileiro é realmente laico. E para medir qu al a magnitude da separação entre Estado e religiões no país. Na verdade, desde a reforma protestante, no século 16, Martinho Lutero alertou sobre os problemas relacionados à adoção do direito canônico como instrumento regulador da sociedade. Preocupava-se com a necessidade de ter leis laicas. Porque as leis canônicas se lastreiam em dogmas, verdades históricas absolutas e inquestionáveis. E a comunidade precisa de regras baseadas na racionalidade e mutáveis, porque o comportamento humano é dinâmico e, por isso, mutável. Antes dessa separação, também os conceitos de crime e pecado se confundiam. As penas criminais eram, na verdade, castigos a serem impostos àqueles que violavam interesses da igreja ou do Estado, principalmente. E a pena principal era a de morte. As ideias do modernismo determinaram profunda revisão de conceitos, colocando a dignidade humana como foco de preocupação dos povos. Apesar disso, no Brasil, setores conservado res, avessos ao respeito à Constituição, dizem que a maioria do povo é católica e que isso deve determinar um tratamento privilegiado para a Igreja Católica. Chegam a propor, ainda que veladamente, na forma de acordo internacional, a violação do artigo 19 da Carta ao pretender uma reformulação do regime jurídico da relação Estado-religiões. Isso é negar a essência da democracia. Porque, no sistema democrático, a voz da maioria prepondera na escolha do governante. Mas o eleito, passadas as eleições, deve governar para todos, incluídas as minorias, e não apenas para a maioria que o escolheu. Essa concepção, que parece óbvia, é realidade concreta na França desde a revolução de 1789, tendo sido banidos de prédios públicos os símbolos religiosos. Da Justiça, das escolas, de todos. Também já se enterrou lá a ideia do ensino religioso em escolas. E não é só na França. O mundo ocidental como um todo caminhou nessa direção. E até mesmo em países monarquistas, como Inglaterra e Dinamarca, a manutenção de uma religião oficial não impediu a existência de ordenamento jurídico laico. Lá se respeitam na plenitude as liberdades públicas e os direitos civis dos cidadãos, sendo autorizado o casamento homossexual na Inglaterra e o aborto na Dinamarca, entre outros direitos. É triste constatar que, aqui no Brasil, quase 120 anos depois da opção pela república laica, deparamo-nos diariamente com incontáveis desrespeitos à cidadania. Que a neutralidade religiosa, que deveria ser a tônica das ações dos nossos agentes políticos, ainda seja meta distante de ser alcançada. Precisamos reafirmar a cada dia nossa opção republicana laica. E precisamos mostrar às próximas gerações de brasileiras e brasileiros que cada um tem o direito à liberdade plena. De manifestação, de associação. De crer ou não crer. E que ninguém tem o direito de se opor ao exercício desse di reito. Que se opor a esse exercício significa negar a república, a democracia e a tolerância religiosa brasileiras. Portanto, em boa hora o Ministério Público Federal pediu à Justiça que sejam retirados símbolos alusivos a uma religião das dependências de prédios públicos federais. O espaço público é de todos, e não só dos adeptos daquela religião. Os agnósticos e ateus, assim como as minorias adeptas a todas e quaisquer religiões, têm direito de estar nesses locais sem se constrangerem com a existência de símbolos de uma religião à qual não aderiram. Trata-se de respeitar cada brasileiro e cada brasileira no exercício pleno de suas liberdades públicas, que devem ser defendidas sempre de forma intransigente. ROBERTO LIVIANU, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça em São Paulo e coordenador, no Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), de projeto sobre Estado laico. |