"O projeto é um primor de formalismo, de um lado, e de populismo, de outro"
Roberto Romano da Silva é professor na Universidade Estadual de Campinas. Cursou o doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, EHESS, França. É pós-doutor e livre docente pela Unicamp. Escreveu os livros Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot. Campinas: Ed. Unicamp., 1997. Identidade Social e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: PMPA, Conservadorismo Romântico. 2ª. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. Caldeirão de Medéia. São Paulo: Perspectiva, 2001. Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII. São Paulo: Senac Ed., 2002. O Desafio do Islã. São Paulo: Perspectiva, 2004. De Roberto Romano já publicamos a entrevista “O Brasil e a democracia”, na 39ª edição, de 21 de outubro de 2002..
IHU On-Line- Por que o senhor acha a proposta do MEC "por demais misteriosa"?
Roberto Romano- Milito no movimento estudantil desde 1962. Acompanhei as tentativas de reforma universitária no governo João Goulart e sofri, como todos os brasileiros, a imposição de mudanças na estrutura universitária sob os militares. Depois, segui as tentativas de reforma nos períodos Sarney, Collor, Itamar, e nos dois governos FHC. Em todas as tentativas mencionadas, incluindo a militar, os que eram favoráveis ou contrários aos projetos tinham documentos diante de si, seja para aprovar, seja para combater as iniciativas governamentais. O que se passa agora é que a sociedade e a população, incluindo, sobretudo, os campi, receberam um projeto já definido, sem maiores justificativas anteriores: teóricas, jurídicas, científicas, educacionais, tecnológicas . O que se notou foi uma série de balões de ensaio por parte do MEC, sem aprofundamento analítico ou debate amplo. Agora, o Ministério dá “prazos” para sugestões e prazos curtos. Não estamos tratando de matéria sem importância, mas de algo muito complexo e difícil. Além disso, onde foi parar a democracia prometida nas campanhas eleitorais? A reforma é “misteriosa”, porque os documentos foram esotéricos (lidos apenas por alguns), as informações foram dadas gota a gota e não ocorreu debate amplo com especialistas e com lideranças sociais e políticas.
IHU On-Line- Que tipo de ensino a reforma universitária tem como meta?
Roberto Romano- Adequar o ensino da universidade aos reclamos da sociedade. Dito assim, o enunciado é tão abstrato que pode recolher aprovação unânime. Mas como serão escolhidas as pautas e as metas? Por determinações de poder ou pelo conhecimento imanente das coisas? Por exemplo: enquanto o Brasil tem bom conceito na pesquisa matemática universitária, o ensino de matemática no ensino médio é a maior calamidade. Num país mais responsável, este problema seria tratado como prioridade nacional. Não há uma linha sobre uma estratégia refletida e programada sobre o ponto, em todo o projeto. E este é um elemento social gravíssimo. As pessoas são excluídas do saber matemático como são excluídas de todo o resto. Ora, falar em “atender demandas sociais” sem dar-se conta de que o Brasil nunca entrará para o rol dos países autônomos em ciência e tecnologia sem ampla inclusão das massas no campo das matemáticas, é repetir generalidades vazias. Assim, em todos os campos do saber. Ao projeto pode ser aplicado o dito de Péguy[1] aos moralistas kantianos: eles têm as mãos limpas, porque não têm mãos. O projeto é um primor de formalismo, de um lado, e de populismo, de outro. Assim, os problemas da pesquisa e do ensino passam ao largo, e ficam intocados.
IHU On-Line- Por que chegamos a ser uma sociedade na qual só 10 % dos jovens com idade universitária estão na universidade e 75% deles estão matriculados em universidades privadas?
Roberto Romano- Quando falei nas tentativas de reforma universitária na época de João Goulart, visava justamente a recordar que o problema das elites e das massas não foi resolvido antes da ditadura de 1964. Pelo contrário, o ideal acadêmico era perfeitamente elitista, como o demonstra a essência da USP, por exemplo. Nela, existia o setor dedicado à pesquisa “pura” e ao ensino das elites e os setores voltados para a população pobre. A massa dos negros estava excluída por definição. Basta recordar o dito de Julio de Mesquita (em A crise nacional, reflexões em torno de uma data, 1929), um patrocinador da USP, do jornal O Estado de S. Paulo, que se referiu assim sobre os negros: “A massa impura e formidável de negros, subitamente investidos das prerrogativas constitucionais, fazendo baixar o nível da nacionalidade na mesma proporção da mescla operada”. Lamentável, mas assim pensavam as elites que fundaram a USP e outras universidades brasileiras. Embora elitista, a universidade não conseguiu excluir dos campi muitos indivíduos pobres ou da classe média desguarnecida de capital. Vários professores eminentes vieram das camadas populares. A escola de segundo grau brasileira, conforme análises do próprio BIRD, era uma das melhores da América do Sul até 1965. Com o acordo MEC-USAID[2], houve o desmantelamento da escola pública do segundo grau e se iniciou o privilégio das escolas privadas. Com isso, os que freqüentavam as escolas públicas de segundo grau perderam a oportunidade de passar nos vestibulares. Estes, por sua vez, eram vencidos por estudantes de escolas privadas (com ensino de melhor gabarito) e com a ajuda dos “anabolizantes” cursinhos para o vestibular, caros e excludentes. Tal sistema afetou, inclusive, o ensino nas boas universidades públicas. Acostumados, por exemplo, nos cursinhos, ao uso de “macetes” para resolver problemas (por exemplo, de matemática), os “bons” estudantes precisavam “desaprender” tudo o que internalizaram na mente durante os cursinhos, com as “cruzinhas” idiotizantes. Apenas bem mais tarde as universidades mais alertas (a Unicamp é uma delas), tornaram o vestibular menos uma questão de memorização e mais de ajuizamento lógico, imaginativo, etc. Na desgraça que hoje separa estudantes pobres em universidades privadas (pagando por vezes muito caro para um ensino medíocre) dos que estudam em boas universidades confessionais ou públicas, boa parte da classe média tem culpa no cartório, junto com os militares.
IHU On-Line- A proposta do MEC está olhando para o ensino superior isolado, sem levar em conta a educação básica?
Roberto Romano- Sim, o que é um desastre.
IHU On-Line- Representantes das universidades privadas têm manifestado que o projeto, especialmente a existência do conselho comunitário, afronta a autonomia universitária. Qual é sua opinião a esse respeito?
Roberto Romano- O chamado “conselho comunitário” é uma afronta a todas as universidades, públicas e privadas. Quem não entendeu que pesquisa não se faz com ditames de líderes sociais, nada aprendeu sobre universidade no mundo. Uma coisa é ouvir a sociedade e os seus reclamos e reivindicações; outra é assistir docentes e pesquisadores a obedecer às ordens de pessoas cujos interesses, não raro, são ditados pelos mesmos defeitos que tornam a sociedade brasileira uma das mais permeáveis à troca dos favores, à subserviência diante de oligarcas, etc.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a inclusão social que de fato acontece com a implantação da proposta do MEC? Quais seriam os caminhos que apontaria como mais necessários para uma inclusão social real na universidade?
Roberto Romano - Será mesmo que uma universidade rebaixada em termos de rigor na pesquisa e no ensino “incluirá” alguém em algum lugar? Ou apenas assistiremos à ampliação, para as universidades públicas e confessionais, da realidade atual de muitas universidades privadas, cujos diplomados não conseguem emprego compatível com o diploma que adquiriram? Esta é uma realidade dura, inclusive em países líderes em termos educacionais. Leia-se o livro, hoje um tanto antigo, mas sempre atual, de Bill Readings: The University in ruins[3]. Creio que a medida mais eficaz seria estabelecer cotas para os que estudaram em escolas de ensino fundamental e ensino médio públicas. Isso obrigaria os governos a olhar com mais cuidado para o ensino básico.
IHU On-Line - Quem ganha com a reforma universitária? Como essa reforma se enquadra nas demais ações que estão sendo realizadas no governo do PT?
Roberto Romano - Quem ganha, não tenho certeza. Quem perde? O país inteiro que precisará enfrentar o espetáculo da incompetência no trato com a medicina, as técnicas, os saberes teóricos, nos próximos anos. A reforma universitária repete o modus operandi deste e de outros governos anteriores: tentou impor-se à força ou na base da cooptação e da propaganda. Com resistência, as autoridades percebem que erraram. No caso deste reforma, ainda é tempo para mudar os rumos.
IHU On-Line - Algum outro aspecto que queira abordar e não foi perguntado...
Roberto Romano - Aproveito para alertar os pares, estudantes, funcionários das universidades: não se pode jogar fora um patrimônio de saberes, como o acumulado nos últimos 50 anos pela universidade, em nome de manipulações políticas e lutas ideológicas. Faço minhas as palavras de uma das nossas mais altas competências científicas, o neurocientista e brasileiro de coração, Ivan Izquierdo[4]: “A ciência brasileira caminha na direção da excelência, e essa rota deve ser mantida. Algumas correntes reclamam que o sistema orientado para o apoio aos melhores é elitista. Admito que é uma política elitista, mas no bom sentido do termo. Podemos montar uma seleção de futebol sem critério elitista? Se assim o fizermos, teremos um time fraco. Em situações como esta, não se pode, entre aspas, democratizar. Temos que ir em busca dos melhores.” (Entrevista publicada no Boletim da UFMG, n.º 1.468, de 13/1). Se tais sábias palavras não forem ouvidas, as mortes por incompetência podem levar milhões de brasileiros, em futuro próximo, para uma pior miséria e sofrimento.
[1] Filósofo e poeta francês, intelectual católico, morto em 05-09-1914 (Nota de IHU On-Line).
[2] Acordo firmado em 1965 pelo Ministério da Educação(MEC) e a US Agency for International Development (USAID), agência estadunidense para o desenvolvimento, com o objetivo de reestruturar a educação pública brasileira (Nota de IHU On-Line).
[3] Readings, Bill. The University in Ruins, Cambridge, London: Harvard University Press, 1996 (Nota do IHU On-Line).
[4] De Ivan Izquierdo também publicamos a entrevista “Obstáculos ao estudo da mente”, na 87ª edição, em 09-12-2003. A Editora Unisinos publicou, de Ivan Izquierdo, os livros Tempo de viver (2002); Silêncio, por favor! (2003); e Questões sobre memória (2004). (Nota do IHU On-Line).