Jornal da Tarde, 14/05/2007, artigo de Roberto Romano
"O católico se realiza na obediência à hierarquia"
Bento 16 é “intolerante”, frase reiterada sem cessar pela midia e comentaristas políticos na última semana. Urge entender o problema na lógica religiosa. A Igreja reúne um corpo dogmático complexo, éticas surgidas antes do cristianismo. Entender vetos e aprovações pontificais aos costumes é tarefa árdua, mas necessária. O papa é dito intolerante porque não conjuga valores eclesiásticos e modernidade. Reflitamos sobre tal juízo. O ato de medir define a cautela científica, artística, religiosa, política. Para obter a cifra de fenômenos naturais ou políticos, místicos ou éticos, o metro certo é o mais próximo ao objeto ou ações examinados. “A medida deve ser ao mesmo tempo fiel, cursiva e precisa (…) e supõe sempre múltiplos fatores que interagem uns sobre os outros”. (1) Pesar o religioso com balança válida para a política, a economia, etc., é perder a sua especificidade. A ética religiosa, ao nascer, sempre nega o mundo e só depois a ele se adapta, sempre numa relação tensa.
O católico se realiza na obediência à hierarquia. Na Igreja, o alívio é tão certo quanto as proibições, equilíbrio conquistado em séculos de prática. Rigidez e elasticidade fornecem eficácia à cura d´almas. Na Igreja vigoram três pontos inegociáveis: 1) Extra ecclesiam nulla salus. Só quem pertence ao instituto da graça, obtem graça. 2) O cargo legítimo, nunca o carisma pessoal do sacerdote, decide a salvação. 3) A condição do pecador é indiferente ao poder gratificante da Igreja. Esta “cristianizou o ocidente usando um sistema de confissão e penitência, unindo a técnica jurídica romana e a idéia germânica da compensação pecuniária, sem igual em todo o mundo”. Ela absolve mas exige “obediência e subordinação à autoridade, como virtude cardeal e condição decisiva da salvação”. (2) Chama a atenção no catolicismo, diz E. Canetti, a ordem lenta e calma relacionadas à grande amplitude. “Seu alvo principal (oferecer lugar para todos) está contido no seu próprio nome. Deseja-se que todos se convertam a ele, e cada qual é aceito sob certas condições que não podem ser consideradas duras. (…) O catolicismo conserva um último vestígio de igualdade que contrasta curiosamente com sua índole rigidamente hierárquica”. (3)
As análises acima são confirmadas pelas homilias de Bento 16. Ele fala de obediência, afirma a misericórdia mas reitera que Igreja está longe de uma tolerância sem limite. “Consciente de sua missão divina, é dura contra quem a desonra pelo escândalo de sua vida, espírito cismático ou difusão de novas doutrinas e heresias”. (4) A Igreja romana, segundo Fichte, “é um modelo de consequência”. Quem aceita as suas premissas deve ser coerente, obedecendo-as. (5) Ser católico e negar as exigências hierárquicas, alegando a modernidade, fere o rigor lógico ou existencial. “Todo partido é perigoso em matéria doutrinária”. (6) Quem assim se expressa é Richelieu, o idealizador do Estado moderno. A Igreja recusa partidos progressistas ou conservadores no seu interior. É possível pertencer plenamente ao mundo moderno. Pierre Bayle indicou a tese de que ateus podem ser exemplos de elevada ética. É impossível ser católico e não acatar a lógica da instituição, diz Bento 16 para escândalo dos pretensos católicos de hoje. Ele seria intolerante se exigisse a obediência dos ateus, agnósticos, protestantes, budistas, espíritas. A intolerância, na visita, não se instala diretamente no seu discurso, mas nas tentativas de atrelar o Estado laico à lógica que deve conduzir os verdadeiros católicos. A Igreja, na debatida Concordata, age como partido que deseja impôr seu programa ao Estado brasileiro. Nisto, sua universalidade é arranhada por bispos afoitos, como o que decretou, sem prudência, ser o Ministério da Saúde brasileiro um ministério da morte…
Notas
(1) Dagognet, F. : “Pourquoi nous persistons à valoriser la mesure?” in La mesure, instruments et philosophie, Jean-Claude Beaune (Ed.).
(2) Weber, M. : Economia e Sociedade.
(3) Canetti, E. : Massa e Poder.
(4) Lecler, J. : Histoire de la tolérance.
(5) Fichte, J.G. : Contributo para modificar o juízo do público sobre a Revolução Francêsa
(6) Richelieu : Testamento.